C. H. Mackintosh  (1820-1896)

08/05/2024

1. Educando os filhos

"No dia em que estiveste perante o SENHOR, teu Deus, em Horebe, quando o SENHOR me disse: Ajunta-me este povo, e os farei ouvir as minhas palavras" - a maior e mais importante questão para o antigo Israel, para a Igreja no tempo presente, para cada um, para todos, em todo o tempo e em todos os lugares, é ser leva doa um contato direto, vivo, com a Palavra eterna do Deus vivo- "e aprendê-las-ão, para me temerem todos os dias que na terra viverem, e as ensinarão a seus filhos". 

(Deuteronômio 4: 10)


É magnífico notar a íntima ligação entre ouvir a Palavra de Deus e temer o Seu nome. É um desses grandes princípios fundamentais que nunca mudam, nunca perdem o seu poder ou valor intrínseco. 


A Palavra e o nome vão juntos; e o coração que ama um reverencia o outro e inclina-se perante a sua santa autoridade em tudo. "Quem não me ama não guarda as minhas palavras" (Jo 14:24). "Aquele que diz:Eu conheço-o e não guarda os seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade. Mas qualquer que guarda a sua palavra, o amor de Deus está nele verdadeiramente aperfeiçoado" (1 Jo 2:4-5).


Todo aquele que ama verdadeiramente a Deus guardará a Sua Palavra em seu coração, e sempre que a Palavra é assim guardada no coração, a sua influência será vista em todos os atos da sua vida, do caráter e da conduta. O objetivo de Deus em nos dar a Sua Palavra é que ela possa governar a nossa conduta, formar o nosso caráter e moldar o nosso caminho; e se a Sua Palavra não tem este efeito prático sobre nós, é inteiramente inútil falar de O amarmos; sim, é nada mais, nada menos que zombaria, que Ele deve, mais cedo ou mais tarde, ressentir.


E notemos especialmente a responsabilidade solene de Israel quanto a seus filhos. Não só deviam "ouvir" e "aprender" por eles mesmos, mas tinham também de ensinar seus filhos.
Isto é um dever universal e permanente que não pode ser descurado com impunidade.
Deus liga grande importância a este assunto. Ouvimo-lo dizer de Abraão: "... Eu o tenho conhecido, que ele há de ordenar a seus filhos e a sua cada depois dele, para que
guardem o caminho do SENHOR, para agirem com justiça e juízo; para que o SENHOR faça vir sobre Abraão o que acerca dele tem falado" (Gn 18: 19).


Estas palavras são importantíssimas, pondo diante de nós a apreciação divina pelo ensino doméstico e a devoção da família. Em todas as épocas e sob todas as dispensações, Deus tem-se comprazido em dar expressão à Sua aprovação à própria educação dos filhos do Seu povo - ao seu ensino fiel segundo a Sua santa Palavra. Não vemos na Escritura que seja permitido aos filhos crescerem em ignorância, desleixo e obstinação. Nós sabemos que Deus é soberano. Cremos nos Seus desígnios e propósitos eternos. Reconhecemos plenamente as grandes doutrinas da eleição predestinação; sim, estamos absolutamente tão convencidos delas como da verdade de que Deus é ou de que Cristo morreu e ressuscitou. 


Além disso, cremos que o novo nascimento deve ter lugar,em todos os casos - tanto nos casos dos nossos filhos como em todos os demais; estamos convencidos de que este novo nascimento é uma operação inteiramente divina, efetuada pelo Espírito Santo, pela Palavra, como nos é ensinado claramente no discurso do Senhor com Nicodemos, em João 3, e também em Tiago 1:18 e 1 Pedra 1:23. Mas tudo isto toca, ainda que da maneira mais simples, a solene responsabilidade de os pais cristãos ensinarem e treinarem os seus filhos diligente e fielmente desde a sua mais tenra idade? Seguramente que não. Ai dos pais que, sob qualquer alegação ou fundamento, quer seja uma teologia parcial, quer uma errônea aplicação da Escritura, ou qualquer outra causa, negam a sua responsabilidade ou descuram o seu clara dever a respeito deste negócio!


Decerto, não podemos fazer os nossos filhos cristãos; e não devemos fazer deles formalistas ou hipócritas. Mas nós não somos chamados para fazer deles coisas alguma. Somos chamados simplesmente para cumprir o nosso dever para com eles, e deixar os resultados com Deus. Somos ensinados e mandados a criar os nossos filhos "na disciplina e admoestação do Senhor".


Quando devemos começar a criá-los desta maneira? Quando devemos começar a sagrada tarefa de treinar os nossos pequeninos? Seguramente, ao princípio. No próprio momento em que entramos no parentesco, entramos também na responsabilidade que esse parentesco impõe. Não podemos negar isto. Não podemos alijar-nos dela.
Podemos descuidá-la e ter de recolher as tristes consequências do nosso descuido de diversas formas. É uma coisa séria o sagrado parentesco da paternidade - muito interessante e muito agradável em dúvida;mas muito séria por causa da responsabilidade que acarreta. 

É verdade, bendito seja Deus, que, nisto como em tudo mais, a Sua graça nos basta; e "Se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e não o lança em rosto; e ser-lhe-à dada" (Tg 1:5). "Não que sejamos capazes, por nós mesmos", nesta importante questão, de pensar ou fazer qualquer coisa; mas a nossa capacidade é de Deus; Ele satisfará todas as nossas necessidades. Nós só temos que depender d'Ele para as necessidades de cada hora. Mas devemos cumprir o nosso dever. Alguns não gostam da palavra familiar "dever".


Pensam que tem um sonido legalista.Esperamos que o leitor não pensará assim, porque é um erro muito grave. Consideramos a palavra como moralmente salutar e muito apropriada; e cremos que todo o verdadeiro crente a ama. Uma coisa é certa; é só no caminho do dever que podemos contar com Deus. Falar de confiar em Deus, quando se está fora do caminho do dever, é um conceito miserável e uma ilusão.
E, na questão do nosso parentesco, como pais, descurar o nosso dever é atrair sobre nós as consequências mais desastrosas. Cremos que todo o assunto de educação cristã está resumido em duas expressões, a saber: conta com Deus quanto aos teus filhos; e educa a teus filhos para Deus. 

Aceitar a primeira sem a segunda é antinomianismo; aceitar a segunda sem a primeira é legalidade; aceitar as duas juntamente é puro, prático cristianismo - verdadeira religião à vista de Deus e do homem.
É doce privilégio de todo o pai cristão contar, com toda a confiança possível, com Deus, para seus filhos. Mas temos de recordar que há, no governo de Deus, um vínculo inseparável de ligação entre este privilégio com a mais solene responsabilidade acerca da educação. Para um pai cristão falar de depender de Deus para salvação de seus filhos e integridade da sua carreira futura, neste mundo, enquanto o dever de educação é descurado, é simplesmente uma miserável ilusão.

Insistimos sobre isto de um modo muito sério com todos os pais cristãos, mas especialmente com aqueles que acabam de entrar no gozo do parentesco.
Existe o grande perigo de faltarmos aos nossos deveres para com os nossos filhos, de os deixarmos ao cuidado de outros ou de os descurarmos completamente. Não nos agradam os incômodos que esse dever nos acarreta; e desejamos alijar-no deles. Mas descobriremos que a aflição, o incômodo, e a dor, resultantes da negligência no cumprimento do nosso dever serão mil vezes piores do que tudo que possa estar envolvido no seu cumprimento. Existe uma profunda satisfação em trilhar a senda do dever para todo o que ama a Deus. Cada passo dado nessa senda fortalece a nossa confiança para continuar. 

E por outro lado podemos contar com os infinitos recursos que temos em Deus, quando guardamos os Seus mandamentos. Só temos de recorrer, dia a dia, hora a hora, ao tesouro inesgotável de nosso Pai, e receber ali tudo quanto necessitamos, em graça, sabedoria e força moral para podermos desempenhar retamente as santas funções do nosso parentesco. 

"Ele dá mais graça." Esta verdade é sempre a mesma. Mas se nós, em vez de buscarmos graça para desempenhar o nosso dever, buscamos a comodidade negligenciando-o, apenas ajuntamos dor que se acumulará rapidamente e algum dia cairá pesadamente sobre nós. "Não erreis: Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia na sua carne da carne ceifará a corrupção; mas o que semeia no Espírito do Espírito ceifará a vida eterna" (GI 6:7-8).
Isto é o relato resumido de um grande princípio do governo moral de Deus - um princípio de aplicação universal, que se aplica, com poder singular, ao assunto de que falamos. Assim como semearmos, na questão da educação dos nossos filhos, assim, seguramente, ceifaremos. Não há maneira de escapar a este princípio.


Mas não desanime qualquer prezado pai crente cujos olhos possam examinar estas linhas. Não há razão alguma para isso; antes, pelo contrário, há todo o motivo para radiante confiança em Deus. "Torre forte é o nome do SENHOR; para ela correrá o justo e estará em alto retiro" (Pv 18:10). Andemos com passo firme no caminho do dever; e então poderemos contar, em constante confiança, com o nosso Deus, sempre fiel e cheio de graça, para as necessidades de cada dia, à medida que eles passam. E, a seu tempo, ceifaremos o precioso fruto do nosso labor, segundo o decreto de Deus, em prosseguimento dos decretos do Seu governo moral.
Não tentamos estabelecer quaisquer regras ou regulamentos para a educação.
Não temos confianças neles.
Os filhos não podem educar-se por regras fixas. Quem poderá incorporar em regras tudo que está envolvido nessa expressão: "Criai-os na doutrina e admoestação do Senhor"?
Aqui temos, de verdade, a regra de outro que compreende tudo, desde o berço à idade viril. Sim, repetimos: "desde o berço"; pois estamos plenamente convencidos de que toda a verdadeira educação cristã começa desde a mais tenra idade. 


Alguns têm uma pequena ideia de quão cedo e de que modo agudo começam as crianças a observar; e de como dão conta quando nos contemplam com os seus expressivos olhos tão queridos. E, demais, quão sensíveis eles são à atmosfera moral que os rodeia! Sim; e é esta própria atmosfera moral que constitui o grande segredo de ensino das nossas famílias.Os nossos filhos deverão ser autorizados a respirar, dia a dia, a atmosfera de amor e paz, pureza, santidade e verdadeira justiça prática. Tudo isto tem um efeito assombroso na formação do caráter. É uma grande coisa para os nossos filhos verem os seus pais andar em amor, em harmonia, em terno cuidado um pelo outro; em amável consideração para com os servos; em amor e simpatia pelos pobres. 


Quem pode medir o efeito moral sobre uma criança do primeiro olhar de cólera ou de palavras duras entre o pai e a mãe? E nos casos em que o espetáculo diário é de alterações e contenda, o pai desmentindo a mãe, e a mãe depreciando o pai;como podem os filhos crescer em uma atmosfera de tal natureza?
O fato é que não está ao alcance da linguagem humana expor tudo o que está envolvido no tom moral de todo o círculo da família- o espírito, o estilo, e a atmosfera de toda a casa, a sala, a casa de jantar, o quarto das crianças, a cozinha, em que as circunstâncias permitem tais comodidades, ou onde a família tenha de se acomodar em duas casas. Não se trata de uma questão de classes, posição ou riqueza, mas formosa graça de Deus resplandecendo em tudo. Pode ser que o jantar seja de simples vegetais ou de um bom bife; estas coisas não estão, presentemente, em discussão. 


Mas o que queremos acentuar perante todos os pais e mães, todos os chefes de família, elevados ou humildes, ricos ou pobres, cultos ou ignorantes, é a necessidade de educarem os seus filhos numa atmosfera de amor, paz, verdade e santidade, pureza e bondade. Desta forma a família será a manifestação prática do caráter de Deus; e todos os que estiverem em contato com eles terão, pelo menos, diante de seus olhos um testemunho prático da verdade do cristianismo. Mas, antes de deixar o assunto do governo doméstico, há um ponto especial para o qual desejamos chamar a atenção dos pais cristãos - um ponto de grande importância, embora muito descurado entre nós, e este é a necessidade de inculcar nas nossas crianças o dever de implícita obediência. 


É um ponto em que nunca é demais insistir,visto que não só afeta a ordem e o conforto das nossas casas, mas, o que é infinitamente mais importante, diz respeito à glória de Deus e à demonstração prática da Sua verdade. "Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais no Senhor, porque isto é justo" (Ef 6:1); "Vós, filhos, obedecei em tudo a vossos pais, porque isto é agradável ao Senhor (Col 3:20).
Isto é absolutamente essencial, e é nisto que temos de insistir firmemente logo desde o princípio. A criança deve ser ensinada a obedecer desde a sua mais tenra idade. Deve ser ensinada a submeter-se à autoridade divinamente dada, e isto, como o apóstolo estabelece" em tudo" .Se isto é negligenciado logo ao princípio, mais tarde se verá que é quase impossível consegui-lo. Se a vontade for permitida a atuar, crescerá, com rapidez incrível, e o seu crescimento diário aumenta a dificuldade para manter a criança debaixo de controle. 


Por isso, o pai deve começar imediatamente por estabelecer a sua autoridade sobre a base de força moral e firmeza; e, uma vez isso conseguido, pode ser tão dócil e terno quanto o coração mais sensível pode desejar. Não cremos na austeridade, severidade e rigor. Não são, de nenhum modo, necessários, e acompanham geralmente uma má educação e a prova de um mau temperamento. Deus pôs nas mãos dos pais as rédeas do governo, e a vara da autoridade; mas não é necessário - se nos podemos assim exprimir - estar continuamente a puxar as rédeas e a manejar o chicote, que afinal são as provas seguras de fraqueza moral. Sempre que ouvirdes um homem falar continuamente da sua autoridade, podereis estar seguros de que a sua autoridade não está propriamente estabelecida. Existe uma verdadeira dignidade quanto ao verdadeiro poder moral que é perfeitamente inconfundível.


Além disso, nós julgamos ser um erro para um pai estar perpetuamente a opor-se aos desejos de um filho em assuntos de pouca importância. Uma tal linha de ação tende a abater o espírito da criança, enquanto que o fim de toda a boa educação é dominar a vontade.
A criança deve ter sempre a impressão de que o pai procura só o seu verdadeiro bem; e se tem que lhe recusar ou proibir alguma coisa não é com o propósito de o privar dos seus prazeres, mas simplesmente para o seu próprio bem. Um dos grandes objetivos do governo doméstico é proteger cada membro da família no gozo dos seus privilégios e no próprio comprimento dos seus deveres relativos. 


Ora, visto que o dever divinamente estabelecido de uma criança é obedecer, o pai é responsável por ver que este dever é cumprido, porque se for descurado, outros membros do círculo doméstico devem sofrer com isso.
Não pode haver aborrecimento maior numa casa do que uma criança desobediente e obstinada; e, em regra geral, onde quer que se encontre um caso assim, pode atribuir-se a má educação. Nós sabemos, evidentemente, que as crianças diferem em temperamento e disposição; que algumas crianças têm uma vontade enérgica e um temperamento obstinado, e portanto são difíceis de manejar. Compreendemos tudo isto perfeitamente; mas fica completamente em suspenso a questão da responsabilidade dos pais insistirem sobre a obediência implícita. Podem sempre contar com Deus para a necessária graça e poder para levarem por diante este ponto.
Até mesmo no caso de uma mãe viúva, cremos, com toda a certeza, que ela pode pedir a Deus competência para governar a sua casa e os seus filhos. De nenhum modo, pois, deve prescindir-se da autoridade paterna.

Acontece algumas vezes que, por um carinho irrefletido, o pai é tentado a lisonjear a vontade da criança; mas é semear para a carne, e deve produzir corrupção. Não é de nenhum modo, verdadeiro amor aceder à vontade da criança; nem pode contribuir para a sua verdadeira felicidade ou legítimo prazer. Uma criança a quem é consentido fazer a sua vontade obstinada é em si mesma infeliz e um doloroso contágio para todos os que têm de lidar com ela. As crianças devem ser ensinadas a pensar nos outros; e a procurar promover a sua comodidade e felicidade de todos os modos. Quão impróprio é, por exemplo, para uma criança entrar em casa e subir as escadas assobiando, cantando e gritando, em absoluto desdém pelos outros membros da família que podem sentir-se seriamente incomodados e aborrecidos com tal conduta! Nenhuma criança convenientemente educada pensará em agir de tal modo; e onde quer que uma tal conduta, indômita, desregrada e imprudente é consentida, há um grave defeito/no governo doméstico.

É essencial para a paz, harmonia e comodidade da família que todos os membros se "considerem uns aos outros". Nós temos a responsabilidade de procurar o bem e a felicidade dos que nos rodeiam e não a nossa própria. Se todos apenas recordassem isto, que famílias diferentes teríamos, e que história diferente teriam as famílias para contar! Toda a família cristã deveria ser o reflexo do caráter divino. A atmosfera deveria ser precisamente a própria atmosfera do céu. Como seria isto? Simplesmente cada um, pais, filhos, patrões e criados procurando andar nas pisadas de Jesus e manifestando o Seu Espírito. 

Ele nunca buscou a Sua própria satisfação; nunca buscou os Seus próprios interesses em coisa alguma. Fez sempre o que agradava ao Pai. Veio para servir e para dar. Andou fazendo bem, e curando os oprimidos do diabo. Assim foi sempre com o bendito senhor - o benévolo, terno, compassivo Amigo de todos os filhos e filhas da necessidade, fraqueza e dor; e se ao menos os vários membros de cada família cristã fossem formados segundo esse perfeito modelo, realizaríamos, pelo menos, alguma coisa do poder e eficácia de cristianismo pessoal e doméstico que, bendito seja Deus, pode sempre ser mantido e manifestado, não obstante a irremediável ruína da igreja professante. 

"Tu e a tua casa" sugere a grande regra de ouro que se vê em todo o Livro de Deus, desde o princípio ao fim.
Em todas as épocas, sob todas as dispensações, nos dias dos patriarcas, nos dias da Lei, e nos dias do cristianismo, encontramos que, para grande conforto e estímulo, a santidade pessoal e doméstica devoção ocupam o seu lugar como alguma coisa grata ao coração de Deus e a glória do Seu santo Nome. 

Julgamos que isto é consolador, em todos os tempos, mas particularmente numa época como a presente, em que a igreja professante parece submergir-se rapidamente no crasso mundanismo e declarada infidelidade; em que aqueles que desejam sinceramente andar em obediência à Palavra de Deus e agir segundo a grande verdade fundamental da unidade do corpo encontram grandes dificuldades para manter um testemunho coletivo. 

Em vista de tudo isto, bem podemos bendizer a Deus, com corações transbordantes, porque a devoção pessoal e familiar pode sempre ser mantida, e porque do coração e da casa de todo o cristão pode ascender ao trono de Deus uma corrente constante de louvor, e porque uma corrente de ativa benevolência corre para um mundo necessitado, triste e afligido pelo pecado. Que assim seja, mais e mais, pelo poderoso ministério do Espírito Santo, para que Deus possa ser, em todas as coisas, glorificado nos corações e lares do Seu amado povo!

2. A Igreja e a Grande Tribulação

Talvez não exista uma doutrina errônea que tenha sido mais prejudicial às almas dos filhos de Deus do que aquela professada pelos que supõem que a igreja de Deus passará pela "grande tribulação". 

Tal declaração subverte a revelação de Deus acerca da Igreja como corpo e noiva de Cristo, reduzindo o povo celestial ao nível de associações judaicas, e os priva de uma atitude de expectativa e anseio pela vinda de Cristo a qualquer momento. 

Tais pessoas mergulham em um ponto de vista político da vinda do Senhor, ao olharem para os acontecimentos ao invés de olharem para a Sua Pessoa, ou ao se preocuparem mais com o aparecimento do anticristo do que com o de Cristo. Desta forma, as afeições, consciência e esperança da alma ficam seriamente danificadas por tal doutrina. 


Nada pode estar mais claro nas palavras de despedida que o Senhor dirigiu aos Seus discípulos antes de subir para o Pai, do que o fato de que os deixou de posse da bendita expectativa de poderem vê-Lo muito em breve. Entre a vinda do Espírito Santo e a volta do Senhor dos céus, Ele não colocou uma série de eventos que tivessem que se cumprir. 

Por isso nos é dito que os primeiros cristãos esperavam pelo Filho de Deus vindo dos céus. A parte das Escrituras que tem sido pervertida para dar base a essa doutrina é Mateus 24. 

Porém, um breve exame dela mostrará que a "vinda" à qual os discípulos se referem, em suas perguntas ao Senhor, não era a Sua vinda para nós, mas a Sua vinda para Jerusalém, quando viremos com Ele e quando todo olho O verá descendo sobre as nuvens dos céus com poder e grande glória (Mt 23:39; 24:3).


Aqueles que são ali mencionados passarão pela tribulação. Eles são os "Seus eleitos", que é um termo aplicado por Isaías ao remanescente de judeus consagrados. 

As referências feitas nos versículos que se seguem mostram com clareza que se referem ao tempo da "angústia de Jacó" (Israel), o qual ele terá que passar e do qual será livrado: 

"no sábado" (v.20); "na Judeia" e "fujam para os montes" (v.16); "carne se salvaria" (v.22); "a abominação da desolação, de que falou o profeta Daniel" (v.15); "grande aflição (tribulação), como nunca houve desde o princípio do mundo até agora, nem tão pouco há de haver" (v.21). 

Ela é precedida pela pregação do "evangelho do reino" (v.14), não pelo evangelho da graça, conforme é agora pregado. 


Trata-se da "hora da tentação" caindo sobre todo o mundo, da qual o Senhor promete nos salvar. "Como guardaste a palavra da Minha paciência, também Eu te guardarei da hora da tentação que há de vir sobre todo o mundo, para tentar os que habitam na Terra" (Ap 3:10). 

É interessante observar que quando nosso Senhor fez referência à Sua rejeição pelos judeus - Judá e Benjamim, as duas tribos - Ele disse, "Eu vim em nome de Meu Pai, e não Me aceitais; se outro vier em seu próprio nome, a esse aceitareis" (Jo 5:43). 

Esta, sabemos por outras passagens, é a forma como será introduzida a incomparável tribulação, e, em justa retribuição, as próprias tribos que rejeitaram o Messias irão passar por ela. As dez tribos só serão reunidas depois disso, quando o Senhor descer dos céus (Mt 24:31).

3. Por que nos reunimos somente ao Seu Nome?

Esta é uma pergunta feita com frequência àqueles que se reúnem ao nome do Senhor Jesus. Muitos têm expressado o desejo de que fosse escrito um tratado claro sobre tão importante assunto e, por conseguinte, apresento afetuosamente as considerações abaixo a todos os amados filhos de Deus. A primeira razão de nos reunirmos somente ao Seu nome é:


O VALOR DE CRISTO


Foi Deus Quem O exaltou e Lhe deu "um nome que é sobre todo o nome, para que ao nome de JESUS se dobre todo o joelho... e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai" (Fl 2:9-11). Assim, nosso bendito Deus e Pai Se deleitou em honrar Aquele que é "a cabeça do corpo da igreja: é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência" (Cl 1:18). 

Neste nome, tão precioso para todo crente, se reuniam todos os cristãos nos dias dos apóstolos. E quando foram abertas as cortinas do futuro, o que viu João, o servo de Jesus Cristo? Ao ver a Jesus Cristo disse: "E o Seu rosto era como o sol, quando na sua força resplandece. E eu, quando O vi, caí a Seus pés como morto; e Ele pôs sobre mim a Sua destra, dizendo-me: Não temas; Eu Sou o primeiro e o último" (Ap 1:16-17). Uma porta se abriu no céu! Que visão! A visão da glória futura do Cordeiro em meio aos milhões e milhões de redimidos - "um Cordeiro, como havendo sido morto" (Ap 5:6). "E cantavam um novo cântico" (Ap 5:9). Que privilégio estar ali e ouvir esse volume de indescritível gozo unindo-se a esse cântico! 


Nenhum dos que foram redimidos para Deus se recusará a cantar: "Digno és". Hostes angelicais exclamarão em alta voz: "Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e ações de graças" (Ap 5:12). Sim, será possível ouvir toda a criação redimida dizendo: "Ao que está assentado sobre o trono, e ao Cordeiro, sejam dadas ações de graças, e honra, e glória, e poder para todo o sempre" (Ap 5:13-14). 

Assim será adorado o nosso adorável Senhor e assim será reconhecido no céu e por toda a criação. É este o conceito que Deus tem do Cristo ressuscitado, que uma vez morreu por nossos pecados - "o Justo pelos injustos, para levar-nos a Deus" (1 Pd 3:18). E assim será feita a vontade de Deus no céu. Se alguma alma preocupada e ansiosa estiver lendo estas linhas, deve notar bem que esta é a glória redentora de Cristo. E quem são esses milhões de milhões de adoradores, redimidos por Seu sangue? Malfeitores moribundos, Maria Madalenas, pecadores da cidade. E será que Jesus é digno de trazer a esses tais para a glória? Sim! O mais Santo, Santo, Santo Deus diz que Ele é digno! 


E toda a criação exclama: "Amém" Oh! Você, querido leitor, dá crédito a Deus agora? Este Cristo ressuscitado é tão digno que Deus diz: "seja-vos pois notório... que por Este se vos anuncia a remissão dos pecados. E de tudo o que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justificados, por Ele é justificado todo aquele que crê" (At 13:38-39). 

Portanto, a salvação é inteiramente por Cristo. Bem aventurados aqueles que podem dizer: "TEMOS a redenção pelo Seu sangue, a remissão dos pecados" (Ef 1:7 Versão Almeida Atualizada). Não presumo poder expor, por meio da pena ou da palavra, a gloriosa preeminência de Cristo. 

Aponto para as Escrituras que tão claramente mostram a dignidade de Cristo. Mas muitos que lerem este livreto perguntarão: "Qual é o cristão verdadeiro que duvida, por um instante que seja, de quão digno é Cristo, ou da grandeza de Seu exaltado nome? Com certeza há uma corda no coração de todo o cristão que vibra em resposta ao nome de Jesus. 


Porém a pergunta é: "Quanta, ou quão grande, é essa dignidade? Pode haver cem cristãos em um pequeno povoado ou mil em uma cidade - quero dizer, aqueles que realmente têm a redenção pelo sangue de Cristo, cujos pecados são perdoados. Ora, se Jesus é digno do louvor e da adoração unida de toda a criação, se todos os milhões de redimidos no céu se reunirão ao redor de Sua adorável Pessoa, então, não é Ele digno da adoração unida de cem em uma vila e de mil em uma cidade, sobre a Terra? Certamente no céu todo nome e divisão deixará de existir. E por que não também na Terra? 


Portanto, é um grande erro supor que nos separamos de todo nome e divisão porque cremos que somos melhores do que os queridos filhos de Deus que estão nessas divisões. Longe de nós pensar assim. Não! É porque JESUS É DIGNO! Sim, digno do sacrifício de se deixar todo nome ou divisão e se reunir ao Seu nome bendito - à Sua Pessoa bendita somente. 

Sim, meus caros crentes, Ele é digno de que vocês não reconheçam outro nome a não ser o dEle. Que será que pensam os anjos, sabendo e deleitando-se, como fazem, no nome exaltado de JESUS, quando veem nossas atitudes sobre a Terra? As divisões neste mundo devem apresentar um obscuro contraste quando comparadas à unidade existente no céu. Em muitos lugares pode-se ver todo o povo redimido de Deus levando vários nomes, e nem ainda dois ou três reunidos unicamente ao nome de Jesus. 


Mesmo assim, JESUS É DIGNO de que todo crente de uma localidade se congregue somente ao Seu nome. Sendo assim, se a vontade de Deus se faz tão evidente no céu, ao estarem todos congregados à Pessoa do Cordeiro, como posso orar: "...seja feita a tua vontade, assim na Terra como no céu" (Mt 6:10), a menos que esteja pronto a deixar todo nome e divisão sobre a Terra, como se faz no céu? 

Não seria mais honesto admitir: "Tenho estado na divisão tal e todos os meus amigos estão ali; dispensa-me, portanto, de fazer a Tua vontade sobre a Terra, como se está fazendo no céu"? Será que é custoso demais reconhecer o senhorio de Cristo para a glória de Deus Pai, e não reconhecer a nenhum outro além de Cristo? Deus dá o mais elevado valor ao nome de JESUS. O homem diz que não importa que nome se leve...! Não é a natureza humana a mesma em todos os lugares? Não há a mesma tendência idólatra onde se reconhece qualquer nome como a cabeça de uma divisão? 


Ao se exaltar esse nome, o nome de Jesus não é reconhecido, até que, por fim, torna-se de pouca importância o ser cristão, porém uma grande coisa pertencer à denominação tal. Certamente isto é "madeira, feno, palha" (1 Co 3:12) que não vai perdurar no dia vindouro. Nos dias dos apóstolos, "JESUS" era o nome exaltado sobre qualquer outro nome. 

Exaltar qualquer outro nome, ainda que fosse um Paulo, ou um Cefas, era denunciado pelo Espírito de Deus como carnalidade e cisma. O simples fato de se tolerar outro nome, ou nomes, era virtualmente rebaixar o glorioso Cristo ao nível de um mero homem (1 Co 1:12; 3:4-5). (N.T.: Veja também Mt 17:4-6.) 


Não acontece o mesmo hoje? Jesus é digno da adoração unida dos milhões de redimidos que se reunirão no céu, portanto Ele é digno da adoração unida e do louvor de todos os cristãos agora sobre a Terra. Não importa o que os outros façam, se reconhecem ou não somente a este Nome perante o mundo - se você, querido crente, deseja fazer a vontade de Deus, seu caminho é claro: deixe todo nome e divisão, e congregue-se somente ao nome do Senhor JESUS, o Senhor exaltado do céu. 

A dúvida que pode surgir agora na mente de alguém é quanto ao tipo de presidência na igreja que está realmente de acordo com os pensamentos de Deus. Isto nos conduz à segunda razão:


A SOBERANIA DO ESPÍRITO DE DEUS


Esta é a segunda razão pela qual nos reunimos somente ao nome do Senhor Jesus. Antes de Jesus partir deste mundo, quando Se encontrava no meio dos Seus discípulos, Ele disse: "Eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre; o Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não O vê nem O conhece: mas vós O conheceis, porque habita convosco, e estará em vós" (Jo 14:16-17). O Senhor Jesus prometeu solenemente que o Consolador, ou Amparador, nos ensinaria todas as coisas.

Jesus disse: "Ele testificará de Mim" (Jo 15:.26). Observemos que Jesus não prometeu uma influência, mas a Pessoa divina e real do Espírito Santo; uma Pessoa tão real quanto Jesus. E tão real quanto foi o testemunho que Jesus deu do Pai, assim também o Espírito testifica de Jesus. E além disso, o Espírito Santo nos guiará a toda a verdade. 

"Ele Me glorificará" (Jo 16:14). Deus cumpriu esta promessa. Tendo sido Jesus glorificado nas alturas, Deus enviou o Espírito Santo (At 2:4-38). Então, a partir daquele momento, será em vão procurarmos, em todo o Novo Testamento, qualquer tipo de presidência na Igreja, exceto a direção soberana do Espírito Santo. Vemos o Espírito Santo presente com a Igreja em Atos de uma forma tão real quanto foi a presença do bendito Jesus com os discípulos nos Evangelhos. 


O Pentecostes foi uma admirável manifestação da presença e do poder do Espírito Santo. "E tendo orado, moveu-se o lugar em que estavam reunidos; e todos foram cheios do Espírito Santo, e anunciavam com ousadia a Palavra de Deus" (At 4:31). Sim, foi tão real a presença do Espírito Santo que Pedro, no caso de Ananias, disse: "Porque encheu Satanás teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo?" (At 5:3). 

E quando o evangelho foi pregado aos gentios, o Espírito Santo desceu sobre eles da mesma forma (At 11:15). O mesmo sucedeu em Antioquia (At 13:52). E quão clara e definida foi a direção dada pelo Espírito Santo ao apóstolo Paulo e aos seus companheiros quando "foram impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia" e "intentavam ir para Bitínia, mas o Espírito de Jesus não lho permitiu" (At 16:6-7). 


Veja ainda Atos 19:2. Se passarmos agora a 1 Coríntios 12, a presidência do Espírito na igreja se apresenta com a maior evidência: "Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo". "Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil" (vs.4, 7). Esta passagem é geralmente aplicada ao mundo, em forte oposição ao versículo das Escrituras que diz: "O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece" (Jo 14:17). Mas acerca de qualquer variedade de dons que exista na igreja, "um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um como (Ele) quer" (1 Co 12:11). 

Responda-me agora, qual denominação reconhece desta forma o Espírito de Deus em nossos dias? Não há uma que o faça, pois a partir do momento em que qualquer assembleia de cristãos reconhecer desta forma o Espírito de Deus, nesse momento deixa de ser uma divisão, ou denominação, pois o Espírito Santo não honrará a nenhum nome senão o nome do Senhor Jesus. Vamos então comparar uma assembleia que tem mil e novecentos anos com uma assembleia denominacional de nossos dias, e isto ficará evidente. 


Todos os cristãos em uma localidade se reuniam juntos ao nome de Jesus; o Espírito lhes dava diversidade de dons, sendo alguns dotados para pregar, outros para ensinar, outros para exortar, e assim sucessivamente com todas as diversas manifestações do Espírito. E Ele, o Espírito, estava realmente no meio deles, repartindo particularmente a cada um como queria. Falavam dois ou três - se algo fosse revelado a outro que estivesse assentado, o primeiro se calava - e esta é a ordem de Deus, conforme lemos em 1 Coríntios 14:29-33: "E falem dois ou três profetas, e os outros julguem. 

Mas se a outro, que estiver assentado, for revelada alguma coisa, cale-se o primeiro. Porque todos podereis profetizar, uns depois dos outros; para que todos aprendam, e todos sejam consolados. E os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas. Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz, como em todas as igrejas dos santos". Quando a direção soberana do Espírito de Deus era reconhecida, a ordem existente era claramente esta. Agora entremos em alguma "igreja" pertencente a alguma denominação de nossos dias. 


Responda-me: Quando é que se aguarda, ou se permite, que o Espírito Santo reparta particularmente a cada um como Ele quer? Pode não ser intencional, mas a direção do Espírito Santo tem sido posta de lado. Um homem toma o Seu lugar, e seja esse homem guiado ou não pelo Espírito - esteja em feliz comunhão com o Senhor ou não - ele tem que preencher o tempo. O fato de não se reconhecer a presença Pessoal e a direção soberana de Deus, o Espírito Santo, é muito triste. Os diferentes dons não são exercitados e a obra de ministério acaba sendo um encargo de um só homem. 

Mas o pior de tudo é que o Espírito de Deus não é reconhecido na assembleia, para que a dirija em adoração, e uma ordem humana, ou melhor, toda a sorte de desordem humana, toma lugar. Poderá soar bem chamar a isto de liberdade de consciência; mas onde está a liberdade do Espírito de Deus, para usar aqueles que Ele quer, para a edificação da igreja de Deus? 


Será este um assunto de pouca importância? Porventura não foi o não reconhecer a direção e a presidência de Deus pelo Seu povo Israel, e o desejo de ter um homem como rei no lugar de Deus, um triste passo no caminho da queda desse povo? E qual é a história dos profetas, senão a de uns poucos homens (em meio de um povo que se esqueceu de Deus) que encontravam e sustentavam esta bendita realidade - a presença de Deus entre eles? Quão solene ensinamento temos no livro de Jeremias: ele se assentou solitário (Jr 15:17), porém foi chamado pelo nome do Senhor Deus dos Exércitos. Quão doces são as palavras do Senhor a ele: "Tornem-se eles para ti, mas não voltes tu para eles" (Jr 15:6-21). Tal é, sem dúvida, o solene e bendito lugar, nestes dias, de todos aqueles que têm sido levados a reconhecer a presença real do Espírito Santo na assembleia. 


Na verdade, estes têm constatado que as palavras do Senhor são mais doces que as do homem. Oh! que todos os queridos filhos de Deus, em todas as denominações, venham a conhecer a benção de uma sujeição de coração não fingida à soberana direção do Espírito Santo! Onde quer que isto exista, não em uma forma simplesmente aparente, mas real, o Espírito Santo testifica de Cristo de uma maneira tal que nenhuma sabedoria humana pode sequer imitar! Desde os hinos dados por um, as orações feitas por outros, e a leitura da Palavra, dirigida pelo Espírito Santo, manifestam de tal maneira a direção divina, e dão um tal sentimento da presença de Deus, que somente se pode desfrutar onde o Espírito de Deus é reconhecido desta forma. 


Portanto, não devo ir aonde não é reconhecido Aquele a Quem o Pai enviou para nos guiar, nos guardar, e habitar conosco até o fim, não importa quem seja que O substitua - Deus está sempre com a razão e o homem está equivocado. Não se trata de uma questão de opinião, mas sim uma questão de reconhecer, ou então usurpar o lugar do Espírito Santo como o Guia soberano e Aquele que preside na assembleia. Tenho encontrado a realidade de Sua própria presença, por isso devo estar separado de toda comunidade onde Ele não seja assim reconhecido. Apresento, a seguir, a terceira razão de nos reunirmos somente ao nome de Cristo:


A UNIDADE DA IGREJA


Ou, mais corretamente, a unidade do um só corpo. Não estou inteirado de que exista alguma passagem nas Escrituras que mencione a expressão "uma só igreja", mas há "um só corpo" (Ef 4:4). A palavra traduzida por "igreja" significa simplesmente "assembleia". 

A mesma palavra grega é usada no original, em Atos 19:32,39,41, também para descrever uma multidão de pagãos (N.T.: Do grego "ekklesia", traduzida para o português, na Versão Almeida Corrigida, como "ajuntamento"). 


A Igreja de Deus é a assembleia de Deus. (N.T.: Não confundir as expressões "Igreja de Deus" e "assembleia de Deus", encontradas na Bíblia, com algumas denominações que adotaram para si mesmas estes nomes. A igreja ou assembleia de Deus que é encontrada na Palavra inclui todos os salvos, e não apenas alguns membros de um sistema criado pelo homem. Charles Stanley, o autor deste livreto, viveu de 1821 a 1888, quando ainda não existiam as organizações que arvoram para si próprias os títulos de "Igreja de Deus" ou "Assembleia de Deus"). 


No seu aspecto local, a igreja ou assembleia de Deus trata-se de todas as pessoas salvas de determinado lugar, que se congregam como tais para adorar a Deus, tendo sido todos os seus pecados tirados para sempre (Hb 10.17). Nenhuma outra assembleia pode chamar-se uma igreja ou assembleia de Deus. Nem poderia ainda uma assembleia chamar-se assim verdadeiramente a igreja de Deus, quanto às suas práticas, a menos que tal assembleia reconhecesse verdadeiramente a Deus, o Espírito Santo, para os guiar e guardar em todas as coisas, como faziam as assembleias de Deus nos dias dos apóstolos. 

Tomemos a seguinte ilustração: Suponhamos que o Reino da Inglaterra enviasse um comandante ao exército britânico na Índia, e que, durante algum tempo, todo aquele exército se submetesse ao seu comando. Então poderíamos considerá-lo apropriadamente como sendo o exército do Reino da Inglaterra. 


Mas se esse exército pusesse de lado aquele comandante e nomeasse outro; ou se esse exército se dividisse em partes separadas, e cada divisão nomeasse o seu próprio comandante, cada soldado continuaria sendo um soldado britânico, mas poderia o exército dividido chamar-se corretamente o exército do Reino? Tendo posto de lado a autoridade do comandante nomeado por sua majestade, não estaria cada divisão se colocado em um estado de insubordinação, e não seria uma falta de lealdade unir-se às fileiras de qualquer uma dessas divisões? 

Agora, apliquemos isto à igreja ou assembleia de Deus. Por algum tempo a autoridade do Espírito Santo enviado do céu foi reconhecida, assim como o exército britânico reconheceu, por um certo tempo, a autoridade do comandante nomeado pelo Reino. Logo, porém, a autoridade soberana do Espírito Santo foi posta de lado e por esta razão nenhuma divisão da igreja professa pode chamar-se a verdadeira assembleia ou igreja de Deus, assim como nenhuma divisão do exército britânico, que deixasse de reconhecer o comandante nomeado por sua Majestade e estabelecesse seu próprio comandante, poderia chamar-se o verdadeiro exército do Reino. 

Estou plenamente de acordo que, tendo a direção do bendito Espírito de Deus sido esquecida por tanto tempo, torna-se muito difícil fazer com que os cristãos de hoje compreendam o que isto significa. Tomemos outra ilustração: É anunciado que um certo estadista presidirá uma reunião pública dos habitantes de um lugar qualquer. 


A assembleia se reúne, o estadista vem, põe-se em pé no palanque... mas ninguém o reconhece! Ele fala, mas ainda assim ninguém lhe dá ouvidos! O povo envia uma mensagem após outra à casa daquele mesmo estadista, rogando-lhe que compareça à reunião; eles desejam sua influência, porém desconhecem sua presença pessoal, e acabam nomeando algum outro para presidir. Este é um quadro exato das divisões nos dias de hoje. Não importa de que maneira tenhamos entristecido o Espírito e O não tenhamos reconhecido. Ainda assim essa preciosa promessa se cumpre: "E Ele (o Pai) vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre" (Jo 14:16). 

Sim, do mesmo modo como o estadista encontrava-se presente; embora o ignorassem, pois continuavam a enviar mensagens à sua casa; assim também o Espírito Santo veio à assembleia de cristãos; está presente no exato momento em que se está fazendo oração, em ignorância, para que Ele venha do céu. Na verdade, há cristãos que, quando oram, parecem mais estar orando apenas por uma influência! 

Não seria ofensivo falar de Deus, o Pai, como sendo uma influência? Não seria por demais repugnante dizer que a vinda de Deus, o Filho, a este mundo foi somente uma alegoria ou uma influência? E porventura não é Deus, o Espírito Santo, uma Pessoa tão real agora sobre a Terra como foi o Filho quando esteve neste mundo e que agora está no céu? 


O que um comandante é para um exército, ou um presidente para uma reunião, assim é o Espírito Santo para a assembleia de Deus - mandando, dirigindo, usando aqueles quem Ele quer. Nenhuma assembleia, onde Ele não é assim reconhecido, pode chamar-se a assembleia de Deus; portanto devo me separar de tais assembleias, se quiser ser leal a Deus. Mas poderá haver objeções: "Acaso não tem havido fracasso e divisão entre aqueles que professaram reconhecer o Espírito de Deus? 

É triste termos que admitir isto; mas nada poderia provar com maior clareza a verdade destas declarações com respeito à presença do Espírito. Qual tem sido a causa de toda tristeza e divisão? Deixar de lado a direção soberana do Espírito Santo. Porém, dizer que o fracasso é a razão pela qual alguém não deve reconhecer a direção do Espírito na assembleia, ou referir-se ao fracasso como uma desculpa para permanecer onde o Espírito Santo não é reconhecido, é como alguém dizer que deve, como indivíduo, deixar de andar no Espírito só porque algum cristão, ou ele próprio, fracassou em seu caminho. 


Acaso não devem nossos pecados e fracassos passados fazer-nos mais vigilantes e sinceros para andar em Espírito? Somente Ele é o salvaguarda do cristão e da Igreja. Bendito Guardião! A fonte de todo o fracasso que a igreja experimentou foi sempre o não reconhecimento da direção do Espírito. Não importa o que possa vir; se ela tão somente confia em seu bendito Guardião, tudo está bem. O mesmo sucede com o cristão; se ele anda segundo a carne, uma pequena dificuldade poderá causar uma queda, mas se anda no Espírito, não importa quão grande possa ser a tentação, tudo estará bem. 


Portanto, cada fracasso passado na igreja ou assembleia convoca-nos a uma sujeição genuína ao Espírito de Deus. Que pensariam vocês se um homem dissesse: "Tal pessoa, que professava ser um cristão, fracassou e foi encontrada embriagada na rua; portanto, continuarei sendo um bebedor e estarei seguro"? Não é o mesmo que dizer, em princípio, "Os tais filhos de Deus fracassaram em guardar a unidade do Espírito, portanto eu permanecerei agora onde o Espírito não é reconhecido"? 

Rogo que não julguem esta solene pergunta pelo fracasso do homem, mas sim pela Palavra de Deus. "Todas as Minhas coisas são Tuas, e as Tuas coisas são Minhas; e nisso Sou glorificado... para que sejam um como Nós somos um" (Jo 17:10,22). Estas preciosas palavras de Jesus abrangem cada filho de Deus durante esta dispensação. Qual é, então, a glória que o Pai deu a Jesus? "Ressuscitando-O dos mortos, e pondo-O à Sua direita nos céus. Acima de todo o principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo o nome que se nomeia, não só neste século, mas também no vindouro; e sujeitou todas as coisas a Seus pés, e sobre todas as coisas O constituiu como cabeça da igreja, que é o Seu corpo, a plenitude daquEle que cumpre tudo em todos". (Ef 1:20-23). 


"E Ele é a cabeça do corpo da igreja: é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência" (Cl 1:18). Portanto, a glória que é dada a Jesus, Lhe é dada como sendo o Cristo ressuscitado; e como o Cristo ressuscitado, Ele é o princípio e a Cabeça do corpo. Por isso cada membro desse corpo deve ressuscitar juntamente com Cristo. E assim é, que se alguém está em Cristo, é nova criatura, ou nova criação. Jesus disse: "Eu dei-lhes a glória que a Mim Me deste" (Jo 17:22). E isto vale para todos os que são dEle. Portanto cada cristão é um com Cristo ressuscitado, na mais elevada glória, como está escrito: "E nos ressuscitou juntamente com Ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus" (Ef 2:6). 

Que diferença enorme deve haver, então, entre um corpo celestial ressuscitado e uma sociedade terrenal! A única sociedade terrenal que Deus teve foi a nação dos israelitas. E ainda durante o tempo da vida de Cristo, a pequena companhia ou rebanho de discípulos era dessa nação. Não foi senão depois da Sua ressurreição e ascensão à glória que o Espírito Santo pôde ser dado para formar a "Igreja, que é o Seu corpo" (Ef 1:22). 


Este foi o mistério guardado e escondido desde os séculos: que a sociedade terrenal, ou nação dos israelitas, seria posta de lado durante algum tempo, e que o Espírito Santo tomaria, dentre todas as nações, judeus e gentios, um corpo celestial - e que este corpo se uniria à Cabeça em uma glória ressuscitada e elevada; abençoado com todas as bênçãos espirituais, nos lugares celestiais em Cristo. 

Onde quer que um filho de Deus esteja (no que diz respeito ao seu corpo aqui na Terra), em espírito ele é tão verdadeiramente um com o Cristo ressuscitado, quanto um membro do corpo humano é unido à pessoa à qual esse membro pertence. Portanto, ser um em Cristo não é uma união mas uma unidade perfeita. Assim como não podemos falar em "união" dos membros do corpo humano, porque todos esses membros constituem uma única pessoa, assim também é o Cristo celestial ressuscitado. 


"Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, são um só corpo assim é Cristo também. Pois todos nós fomos batizados em um Espírito formando um corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos, quer livres... Ora vós sois o corpo de Cristo, e seus membros em particular" (1 Co 12:12-27). Certamente o Espírito usa a linguagem mais forte possível, e as figuras mais notáveis, para expressar essa admirável unidade. Compare a passagem acima com a seguinte: "Porque somos membros do Seu corpo" (Ef 5:30). 

Não diz que éramos um com Ele durante Sua vida na carne, pois isso teria sido impossível: se Ele não tivesse morrido, teria ficado só (Jo 12:24). A unidade terrenal de homens pecadores com um Cristo sem pecado, não teria sido possível. Não; Ele tinha que morrer, e morreu pelos pecados de muitos. E havendo passado pela morte por nós, como nosso Substituto - havendo, por meio do derramamento de Seu precioso sangue, pago o nosso resgate, Ele foi levantado de entre os mortos, e isso como nosso fiador justificado (Is 50:8). E tudo isso por nós! "Ressuscitou para nossa justificação" (Rm 4:25). 


E somos, assim, considerados mortos com Ele, justificados com Ele e um com Ele, nesse Seu estado ressuscitado, justificado e sem pecado. De maneira que somos, e não "éramos" um com Ele. Assim como um homem é uma única pessoa, mesmo que tenha muitos membros, assim também é Cristo ressuscitado: embora tendo muitos membros sobre a Terra, todos estão unidos a Cristo e são um com Cristo e em Cristo, a Cabeça no céu. "Somos membros do Seu corpo" (Ef 5:30). "Há um só corpo" (Ef 4:4). Que admirável nova criação - uma nova existência; transportados para o reino do Filho do Seu amor - já somos; e não seremos quando morrermos. Ele "nos tirou da potestade das trevas, e nos transportou para o reino do Filho do Seu amor" (Cl 1:13). O esquecimento desta realidade atual, da unidade de toda a Igreja de Deus no Cristo ressuscitado na glória celestial, é uma triste causa da existência dos sistemas mundanos e das divisões terrenais que os homens denominam "igrejas". 


Frequentemente eu pergunto: "Quando estivermos no céu, serão toleradas as seitas e divisões?" "Oh! Certamente que não!", é a resposta que ouço. Cristo então será tudo. Mas acaso já não estamos agora ressuscitados e assentados com Ele nos céus? (Ef 2:6). E não é Cristo tudo agora? (Cl 3:11). Na nova criação "não há grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, servo ou livre"; Oh! não! "Mas Cristo é tudo em todos. "As coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo. E tudo isto provém de Deus" (2 Co 5:17-18). Isso é válido para todo homem em Cristo. 

Ele é uma nova criatura. Portanto, o corpo ressurreto de Cristo é um só corpo, composto de todos os verdadeiros crentes de cada nação; trata-se de uma nova criação de entre os mortos: ressuscitados juntamente e unidos por Deus, o Pai (Ef 2). Nunca poderá se separar (Rm 8:39). Não há nenhuma divisão nesse corpo celestial e nem tampouco pode haver, porque as coisas velhas já passaram. Bendito Jesus! Tua oração é respondida: "Que todos sejam UM" (Jo 17). Sim! Todos os que creem são UM com Cristo nos lugares celestiais.


QUAL É A VONTADE DE DEUS PARA OS CRENTES SOBRE A TERRA?


Ainda que sejamos um com Cristo nos céus, estamos, todavia, por um curto espaço de tempo ausentes. Não quero expressar opiniões, porém, qual é a mente do Senhor? Pergunta solene! Queira Ele dar-nos graça para fazermos a Sua preciosa vontade. Que Deus condena a divisão, nenhum dos que se submetem à autoridade de Sua Palavra inspirada irá querer negar. Diante do primeiro sinal ou embrião das divisões, o apóstolo disse: "Rogo, porém, irmãos, pelo nome do nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mesma coisa, e que não haja entre vós dissensões;... cada um de vós diz: Eu sou de Paulo, e eu de Apolos, e eu de Cefas, e eu de Cristo. Está Cristo dividido?" (1 Co 1:10-13). 

Certamente não posso estar enganado quanto à vontade do Senhor nestes dias, quando cada um diz: "Eu sou de Roma, eu de Grécia, eu da Anglicana, eu de Wesley, etc". Deus roga a todos os crentes, pela glória e preeminência do nome do Senhor Jesus, que não haja divisões. Deus não tolera nenhum nome ou divisão. 


Permitir qualquer nome que não seja o nome de Cristo é rebaixar Seu bendito nome, colocando-o no mesmo nível de outros: "Eu sou de Paulo... e eu de Cristo". Se a vontade de Deus é que não haja divisões, como posso pertencer a qualquer uma delas, ou como posso apoiar qualquer divisão, sem estar desobedecendo à vontade revelada de Deus? Leitor, responda a esta pergunta na presença de Deus, tendo diante de você a Sua Palavra inspirada. Para que não haja nenhum engano, o Espírito de Deus fala de novo sobre o mesmo tema: "Porque ainda sois carnais: pois, havendo entre vós inveja, contendas e dissensões, não sois porventura carnais, e não andais segundo os homens? Porque, dizendo um: Eu sou de Paulo; e outro: Eu de Apolos: porventura não sois carnais?" (1 Co 3:3-4). 


Se o Espírito Se lastimou ao dizer: "Eu sou de Paulo, e eu de Apolos", será que hoje agrada ao Espírito que digamos: "Eu sou de Wesley, e eu dos Independentes"? É isto espiritualidade ou carnalidade? Deus aprova ou desaprova isto? Deus não poderia falar mais claramente, não somente quanto aquilo que Ele condena, senão também quanto aquilo é Sua vontade concernente ao que é reto: "Para que não haja divisão no corpo, mas antes tenham os membros igual cuidado uns dos outros" (1 Co 12:25). Os homens dizem que deve existir divisões, e gostariam que eu me juntasse a uma delas ou ajudasse a aumentá-las. Deus diz que não deve haver nenhuma, porque o corpo é um. Devo obedecer a Deus ou aos homens? Julguem vocês mesmos. 


Que unidade tão bendita - um com a cabeça nos céus, e um com cada membro aqui na Terra. Sim, com cada membro - cada cristão sobre a Terra. Quão preciosa é a vontade de Deus. "De maneira que, se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele. Ora vós sois o corpo de Cristo, e seus membros em particular" (1 Co 12:26-27). Certamente, até agora, não temos reconhecido esta admirável unidade. Mas não rebaixemos o ideal. Não chamemos de bom aquilo que é mau. Com toda a certeza a divisão é um mal, e algo amargo aos olhos de Deus. Ele até mesmo a relaciona com pecados tais como adultério, homicídio e embriaguez! (Gl 5:17-21). A palavra "heresia" significa "seitas" (ou divisões). Oh! Se é assim, voltemos ao Senhor com profunda humilhação! 


Confessemos-Lhe o nosso pecado e a vergonha que é a igreja dividida! Somos chamados à unidade celestial com o Cristo ressuscitado. É a vontade de Deus "que andeis como é digno da vocação com que fostes chamados, com TODA a humildade e mansidão, com longanimidade, suportando-vos uns aos outros em amor, procurando guardar a unidade do Espírito pelo vínculo da paz. Há um só corpo e um só Espírito" (Ef 4:1-4). Você deseja, querido crente, fazer a vontade de Deus? Então aqui está o bendito caminho: a unidade do Espírito. 

Cristo deve ser sempre a cabeça. O bendito Espírito reúne à Pessoa de Cristo; e onde estão dois ou três reunidos ao SEU NOME, ali está Ele no meio deles (Mt 18:20). O homem faz uma "reunião" em qualquer nome que lhe agrade. Somente o Espírito congrega os crentes a Cristo. As duas coisas são tão diferentes como a unidade que existe no céu e a dispersão que existe na Terra. Todos os crentes são um no Cristo ressuscitado, e a vontade de Cristo é que essa unidade seja manifestada ao mundo inteiro. 


Quão profunda e comovedora é a forma como isto pode ser visto nas comunicações mútuas entre o Filho e o Pai: "Para que todos sejam um, como Tu, ó Pai, o és em Mim, e Eu em Ti; que também eles sejam um em Nós, para que o mundo creia". E outra vez: "Eu neles, e Tu em Mim, para que eles sejam perfeitos em unidade, e para que o mundo conheça que Tu Me enviaste a Mim, e que os tens amado a eles como Me tens amado a Mim" (Jo 17:21-23). Assim, em lugar de divisões terrenais e discórdias, o bendito Senhor deseja que nós manifestemos ao mundo nossa unidade com Ele. Apesar de termos fracassado, nem por isso estou dispensado da fidelidade devida ao Cristo ressuscitado, e não posso, portanto, estar identificado com qualquer coisa que desonre a Ele ou que seja contrária à Sua vontade. 


Tem sido demonstrado que as seitas e divisões são inteiramente contrárias à vontade do Senhor, portando devo separar-me de todas elas, se desejo andar em conformidade com a Palavra de Deus. Não posso reconhecer nenhuma igreja, mas apenas ao um só corpo; nenhum princípio de direção na igreja senão a direção do Espírito Santo; nenhum outro nome senão o Nome do Senhor Jesus Cristo, a única cabeça do corpo ressuscitado que é a igreja de Deus. O caminho poderá ser difícil, porém, quando é que foi fácil a senda da fé? Estamos em tempos perigosos. Àquilo que é mau se chama bom; ao que é bom se chama mau. À indiferença se dá o nome de neutralidade. 


"Pelo que diz: Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá... Pelo que não sejais insensatos, mas entendei qual seja a vontade do Senhor" (Ef 5:14,17). Acrescentarei algumas palavras em conclusão. Deus pode nos reunir somente ao Nome do Senhor Jesus. Não nos reunimos por nossa própria vontade. Devemos buscar unicamente a Glória de Cristo, e também ganhar almas para Ele. Não nos envergonhemos de Seu precioso Nome e do bendito lugar no qual Ele nos colocou como Suas testemunhas. Sim! 


Levantemo-nos como um só homem para fazer conhecido tudo o que é devido a Cristo. Porém isto só pode ser feito com uma fé firme. Poderá haver o nome e a forma, porém não o poder. Se somos reunidos ao nome do Senhor Jesus, será que esperamos sempre que o Espírito testifique dEle? Quando os homens vão escutar um pregador eloquente, esperam ouvir a esse homem. E nós, esperamos o ensino do Espírito de Deus pela Palavra? Porventura não agrada a Deus usar os dons que Ele deu à igreja? É claro que sim. Não estou falando aqui de um impulso cego, ou daquilo que alguns chamam de luz interior de um ser humano. Não! 


Eu pergunto: Cremos verdadeiramente na presença da Pessoa divina do Espírito Santo? Então, que ninguém, por assim dizer, "já ensaiado", se levante para expor seus próprios pensamentos, e que o mais débil não diga: "Não reúno condições necessárias para que Deus me use". Que haja uma verdadeira entrega de nós mesmos a Deus, seja para estarmos quietos ou para sermos usados para falar as palavras que Ele der - ainda que seja apenas a leitura de um versículo das Escrituras. Porventura não tem sido assim que normalmente experimentamos mais do verdadeiro poder da presença de Deus, e isto de uma forma indescritível? Quão bendito é sentir que estamos em Sua presença; escutar as Suas palavras, como se Ele estivesse falando em uma voz audível. 


Oh! Que haja muita oração fervorosa para que a direção do Espírito Santo seja manifesta, sentida e vista em cada reunião! Tenham fé, irmãos meus, em Deus! Há trabalho para cada membro, segundo a medida da Sua graça. Nem todos são capazes de falar em público, porém, acaso Deus não pode usar os esforços mais débeis ou uma palavra que seja? Sim! Com frequência a oração de um homem pobre, cheio do Espírito, é de muito maior bênção para os santos do que a eloquência de um apóstolo. Queira o Senhor mesmo dirigir-nos a uma genuína submissão ao Espírito Santo, de acordo com Sua bendita Palavra. 

4. Deus está em todas as circunstâncias?

Não há nada que ajude tanto o cristão a suportar as provas que encontra em seu caminho do que o hábito de ver Deus em todas as circunstâncias. Não há circunstância, por mais trivial ou comum que seja, que não possa ser considerada como um mensageiro de Deus, se apenas o ouvido tiver sido circuncidado para ouvir, e a mente for espiritual para entender a mensagem. Se perdermos de vista essa valiosa verdade, a vida, em inúmeras ocasiões, não será mais do que maçante monotonia, não nos apresentando nada além de circunstâncias ordinárias, comuns. 

Por outro lado, se pudermos lembrar, à medida que começamos cada novo dia, que a mão de nosso Pai pode ser identificada em cada cena – se pudermos ver, tanto na menor como na mais pesada circunstância, um pouco da presença divina, quão significativa não se tornará a história de cada um de nossos dias! O livro de Jonas ilustra essa verdade de forma marcante. Ali aprendemos aquilo que tanto precisamos lembrar: não há nada comum nem normal para o cristão; tudo é extraordinário. 

As coisas mais comuns, a mais simples circunstância ocorrida – revelam, na história de Jonas, as evidências da intervenção especial. Para ver esses instrutivos pontos, não é necessário entrar nalguma exposição detalhada do Livro de Jonas; precisamos apenas de uma expressão, que sempre de novo aparece, ou seja: o Senhor preparou. No capítulo um, o Senhor enviou um forte vento ao mar, e esse vento continha a solene voz para o ouvido do profeta, se apenas ele estivesse atento para ouvir. Jonas é que precisava de ensino; foi para ele que o mensageiro foi enviado. 


Os pobres marinheiros pagãos, sem dúvida, já haviam muitas vezes se deparado com uma tempestade; para eles isso não era nada novo, nada especial, nada mais que a sorte comum dos homens do mar; contudo era especial e extraordinário para um indivíduo a bordo, embora esse um estivesse adormecido no porão do navio. Em vão tentaram os marinheiros reagir à tormenta; nada ajudaria enquanto a mensagem do Senhor não tivesse alcançado o ouvido daquele para quem ela havia sido enviada. Seguindo Jonas um pouquinho mais, percebemos outra ocasião em que podemos identificar Deus em todas as circunstâncias. 

Ele é levado a novas circunstâncias, contudo não está além do alcance dos mensageiros de Deus. O cristão não pode nunca se encontrar numa posição em que a voz do seu Pai não possa lhe alcançar o ouvido, ou em que a mão do seu Pai não possa alcançar sua situação, porque tanto Sua voz pode ser ouvida como Sua mão pode ser vista em qualquer lugar. Dessa forma, quando Jonas foi lançado para dentro do mar, "Deparou o Senhor um grande peixe, para que tragasse a Jonas". 

Aqui, também, vemos que não há nada comum para o filho de Deus. Um grande peixe não era nada incomum; há muitos deles no mar; contudo, o Senhor preparou um para Jonas, de forma que ele fosse o mensageiro de Deus para a sua alma.


Novamente, no capítulo quatro, encontramos o profeta assentado no lado oriental da cidade de Nínive, num impaciente mau humor, aborrecido porque a cidade não havia sido subvertida, implorando que o Senhor lhe tire a vida. Parece que ele havia esquecido a lição aprendida durante os três dias de viagem nas profundezas do mar, e por isso precisava de uma nova mensagem de Deus: "E o Senhor lhe preparou uma aboboreira". Isso é muito instrutivo. De fato, nada havia de incomum na circunstância da aboboreira; outros homens decerto viam milhares delas, e, além do mais, possivelmente se assentavam junto a sua sombra, e nada viam de extraordinário nelas. 

Mas a aboboreira de Jonas dava mostras da mão de Deus, e formava um elo – um importante elo – na corrente das circunstâncias através das quais, pelo desígnio de Deus, o profeta estava passando. A aboboreira agora, como o grande peixe anteriormente, embora muito diferentes quanto à espécie, era o mensageiro de Deus para a sua alma. "E Jonas ficou grandemente agradecido pela aboboreira." Anteriormente ele havia desejado morrer, mas esse desejo era mais o resultado da sua impaciência e desgosto, do que de um santo desejo de partir e descansar para sempre. Era mais aflição pelos acontecimentos presentes, do que a alegria do futuro que fazia com que desejasse partir daqui. Muitas vezes é isso que acontece. 


Frequentemente estamos ansiosos de nos ver livres das pressões desta vida; mas se essas pressões fossem removidas, o desejo cessaria. Se desejássemos a volta de Jesus, e a glória da Sua bendita presença, as circunstâncias não fariam diferença; deveríamos, então, possuir esse desejo tão ardente pela volta dEle como temos o desejo de nos ver livres de nossas atuais pressões e tristezas. 

Jonas, enquanto estava assentado junto à sombra da aboboreira, não pensava em partir, e o próprio fato de estar "grandemente agradecido pela aboboreira" provou o quanto ele precisava dessa mensagem especial do Senhor; ela serviu para tornar manifesta a verdadeira condição de sua alma, quando pronunciou estas palavras: "Toma, eu te peço, a minha vida; porque me é melhor morrer do que viver". 

O Senhor pode fazer até mesmo de uma aboboreira um instrumento para revelar os segredos do coração humano. Com toda a verdade o cristão pode dizer: Deus está em todas as circunstâncias. A tempestade ruge, e a voz de Deus se ouve; uma aboboreira brota em silêncio, e nisso se vê a mão de Deus. 

Contudo, a aboboreira era um mero elo da corrente, porque o Senhor preparou um verme, e esse verme, insignificante como era, quando visto como um instrumento, era, contudo, agente divino tanto quanto o "forte vento" ou o "grande peixe". Um verme, quando usado por Deus, pode fazer maravilhas; ele murchou a aboboreira de Jonas, e lhe ensinou, da mesma forma que ensina a nós, uma solene lição. De fato, ele era apenas um agente insignificante, cuja eficácia dependia da sua cooperação com outros; mas isso meramente ilustra mais ainda a grandeza da mente de nosso Pai. 

Ele pode preparar um verme, e Ele pode preparar um ardente vento oriental, e fazer com que ambos, embora tão diferentes um do outro, se tornem favoráveis a Seus grandes desígnios. Em suma, a mente espiritual vê Deus em todas as circunstâncias. O verme, a baleia e a tempestade, todos são instrumentos na Sua mão.


Tanto os mais insignificantes como os mais esplêndidos agentes, todos promovem a Sua vontade. O vento oriental não teria sido eficiente, mesmo sendo tão ardente, se antes o verme não tivesse executado o trabalho para o qual foi designado. Quão impressionante é isso tudo! Quem é que pensaria que um verme e um vento oriental poderiam ser ambos co-agentes na execução de um trabalho de Deus? 

Contudo, foi isso o que aconteceu. Grande e pequeno são termos usados pelos homens; eles não podem ser usados com referência a Ele "que se inclina para ver o que se passa no céu" bem como o que se passa "sobre a terra" (Sl 113.6). 

Todas essas coisas são iguais para Ele "que está assentado sobre a redondeza da terra" (Is 40.22). Jeová pode contar o número das estrelas, e enquanto Ele o faz, sabe exatamente o que acontece com uma pequenina ave que está sendo abatida. Ele pode fazer do redemoinho a Sua carruagem, e de um coração quebrantado a Sua morada. Para Deus, nada é grande ou pequeno. Por isso o crente não deve considerar nada comum ou ordinário, porque Deus está em todas as circunstâncias. 

De fato, o cristão deveria passar pelas mesmas circunstâncias – enfrentar as mesmas provas – deparar-se com os mesmos contratempos que os outros homens; mas ele não precisa enfrentá-los do mesmo jeito deles, nem deve interpretá-los segundo o mesmo princípio; nem devem essas circunstâncias trazer ao seu ouvido o mesmo tipo de relatório ou impressão. 

Ele deve ouvir a voz de Deus, e deve prestar atenção à Sua mensagem, tanto na mais simples como na mais extraordinária ocorrência do dia. A desobediência de uma criança, ou a perda de um patrimônio, o desvio moral de um empregado ou a morte de um amigo, tudo deveria ser olhado como mensageiros divinos à sua alma.


Assim também, quando olhamos à nossa volta no mundo, Deus está em tudo. Tronos caindo, impérios desmoronando, fome, pestilência, e cada evento que ocorre entre as nações, tudo exibe traços da mão de Deus, e articula uma voz para o ouvido humano. O diabo tentará roubar do cristão a doçura deste pensamento; ele vai procurar levar o cristão a pensar, no mínimo, que a mesmice das circunstâncias do dia-a-dia nada tem de extraordinário, mas é o que acontece com todos os outros homens. Mas não devemos nos submeter a ele nesse assunto. 

Devemos iniciar as nossas manhãs com essa verdade vivamente impressa em nossa mente – Deus está em todas as circunstâncias. O sol que corre os céus em brilhante esplendor, e o verme que se arrasta pelo caminho, foram ambos preparados por Deus, e, mais ainda, podem ambos juntamente cooperar no desenrolar dos seus insondáveis desígnios. Gostaria de mencionar, por fim, que o único que andou constantemente à luz desta preciosa e importante verdade foi nosso bendito Mestre. Ele viu a mão do Mestre e ouviu a voz do Pai em todas as circunstâncias. Isso transparece de forma especial nos Seus momentos de mais profundo sofrimento. 

Ele Se expressou no jardim do Getsêmani com estas notáveis palavras: "não beberei, porventura, o cálice que o Pai me deu?" (Jo 18.11) , dessa forma reconhecendo plenamente que Deus está em todas as circunstâncias. 

5. O caminho de Deus e como encontrá-lo?

(Leia Jó 28 e Lucas 11:34-36)


"Essa vereda a ignora a ave de rapina, e não a viram os olhos da gralha. Nunca a pisaram filhos de animais altivos, nem o feroz leão passou por ela" (Jó 28:7-8) 

Que indizível misericórdia, para alguém que realmente deseja andar com Deus, saber que há um caminho onde andar! Deus preparou um caminho para Seus redimidos, no qual eles podem, resolutos, andar com toda a certeza e tranquilidade possíveis. 

É um privilégio que pertence a todo filho de Deus, e a todo servo de Cristo, ter tanta certeza de que se encontra no caminho de Deus, quanto de que sua alma está salva. Esta afirmação pode parecer muito forte, mas a questão é: Será ela verdadeira? Se for verdadeira, nunca será demasiado forte. Sem dúvida pode ser que, numa época como esta em que vivemos e em meio a um cenário como o que nos cerca, afirmar que temos certeza de estar no caminho de Deus tenha, para alguns, um certo cheiro de confiança própria e dogmatismo. Mas o que dizem as Escrituras? 

Elas declaram que existe um caminho, e também nos dizem como encontrá-lo e como andarmos nele. Sim, a mesma voz que nos fala da Salvação de Deus para nossas almas também nos fala do caminho de Deus para nossos pés - a mesma autoridade que nos assegura que "aquele que crê no Filho tem a vida eterna", nos assegura também que há um caminho tão claro que "os caminhantes, até mesmo os loucos, não errarão" (Is 35:8). Isto, repetimos, é uma prova de misericórdia - misericórdia para todas as épocas, mas principalmente para um tempo de confusão e ansiedade como este em que vivemos. É por demais comovente vermos o estado de incerteza em que muitos dentre o amado povo de Deus se encontram no presente momento. 


Não estamos nos referindo agora à questão da salvação, da qual já falamos largamente em outras ocasiões; mas o que temos agora diante de nós é o caminho do cristão - o que ele deve fazer, onde ele deve ser visto, como ele deve conduzir-se em meio a uma Igreja professa. Acaso não é verdade que multidões dentre o povo do Senhor encontram-se à deriva em relação a estas coisas? E quantos há que, se fossem colocar para fora os verdadeiros sentimentos de seus corações, teriam que reconhecer que encontram-se em uma condição bastante incerta - teriam que confessar que não sabem o que fazer, para onde ir, ou em que crer. 

Agora, a questão é a seguinte: Será que Deus queria abandonar Seus filhos, será que Cristo desejaria deixar Seus servos, em uma tal escuridão e confusão? "Senhor bendito, ao Te seguir, Sei que nada devo temer, Pois nunca em trevas vou cair Pois Tu, meus, pés queres mover." Porventura não pode uma criança conhecer a vontade de seu pai? Não pode um servo conhecer a vontade de seu senhor? E se assim é em nosso relacionamento terreno, quanto mais, e com quão maior plenitude, podemos contar com isso em referência a nosso Pai e a nosso Senhor no céu! 


Quando, no passado, Israel saiu do Mar Vermelho e achou-se às margens daquele grande e terrível deserto que havia entre eles e a terra da promessa, como é que poderiam saber o caminho? A areia do deserto, uniforme e sem trilhas, estava em todo o redor. Seria em vão procurar por qualquer sinal de pegadas. Era uma vastidão inóspita na qual os olhos da ave de rapina eram incapazes de descobrir um caminho. Moisés sentiu isso quando disse a Hobabe: "Ora não nos deixes: porque tu sabes que nós nos alojamos no deserto; de olhos nos servirás" (Nm 10:31). Nossos incrédulos corações podem muito bem entender esta comovente súplica! Quanto se almeja por um guia humano em meio a um cenário de perplexidade! 

Quão ingenuamente o coração se apega a alguém que julgamos competente para dar-nos a direção em momentos de dificuldade e escuridão! E, ainda assim, podemos perguntar: O que é que Moisés queria com os olhos de Hobabe? Porventura Jeová já não havia graciosamente tomado o encargo de ser seu Guia? Sim, verdadeiramente; pois nos é dito que "no dia de levantar o tabernáculo, a nuvem cobriu o tabernáculo sobre a tenda do testemunho: e à tarde estava sobre o tabernáculo como uma aparência de fogo até à manhã. Assim era de contínuo: a nuvem o cobria, e de noite havia aparência de fogo. Mas sempre que a nuvem se alçava sobre a tenda, os filhos de Israel após ela partiam: e no lugar onde a nuvem parava, ali os filhos de Israel assentavam o seu arraial. Segundo o dito do Senhor, os filhos de Israel partiam, e segundo o dito do Senhor assentavam o arraial: todos os dias em que a nuvem parava sobre o tabernáculo assentavam o arraial. E, quando a nuvem se detinha muitos dias sobre o tabernáculo, então os filhos de Israel tinham cuidado da guarda do Senhor, e não partiam.


E era que, quando a nuvem poucos dias estava sobre o tabernáculo, segundo o dito do Senhor se alojavam, e segundo o dito do Senhor partiam. Porém, era que, quando a nuvem desde a tarde até a manhã ficava ali, e a nuvem se alçava pela manhã, então partiam: quer de dia, quer de noite, alçando-se a nuvem, partiam. Ou, quando a nuvem sobre o tabernáculo se detinha dois dias, ou um mês, ou um ano, ficando sobre ele, então os filhos de Israel se alojavam, e não partiam: e alçando-se ela partiam. Segundo o dito do Senhor se alojavam, e segundo o dito do Senhor partiam: da guarda do Senhor tinham cuidado segundo o dito do Senhor pela mão de Moisés" (Nm 9:15-23). 

Aqui estava a direção divina - a direção, podemos dizê-lo com certeza, mais que suficiente para mantê-los livres da influência de seus olhos, dos olhos de Hobabe, e dos olhos de qualquer outro mortal. É interessante notar que na abertura do livro de Números, ficou estabelecido que a arca do concerto deveria ocupar o seu lugar bem no seio da congregação; mas o capítulo 10 nos fala de quando partiram "do monte do Senhor caminho de três dias: e a arca do concerto do Senhor caminhou diante deles caminho de três dias para lhes buscar lugar de descanso" (Nm 10:33). 

Ao invés de Jeová encontrar um lugar de descanso no meio de Seu povo redimido, Ele passa a ser seu Guia de viagem, e vai diante deles a fim de buscar para eles um lugar de descanso. Que comovente graça temos diante de nós! E que fidelidade! Se for para Moisés pedir a Hobabe que seja o guia deles, e isso bem diante da provisão dada por Deus - da própria nuvem e da trombeta de prata, então Jeová irá deixar o Seu lugar no centro das tribos e ir adiante deles para buscar-lhes um lugar de descanso. E porventura Ele não conhecia bem o deserto? 

Não seria Ele melhor para o povo do que dez mil Hobabes? Não poderiam eles confiar nEle? Sim, com toda certeza. Ele não os deixaria errar. Se a Sua graça os havia redimido da escravidão do Egito, e os tinha conduzido através do Mar Vermelho, certamente eles poderiam confiar na mesma graça para guiá-los através daquele grande e terrível deserto, e introduzi-los seguros na terra onde manava leite e mel. 


Mas é bom que se tenha em mente que, para que se possa desfrutar da direção divina, deve haver o abandono de nossa própria vontade, e de toda a confiança em nossos próprios raciocínios, bem como de toda a confiança nos pensamentos e raciocínios de outros. Se tenho Jeová como meu Guia, já não necessito de meus próprios olhos ou dos olhos de algum Hobabe tampouco. Deus é suficiente: posso confiar nEle. Ele conhece todo o caminho através do deserto; e, por conseguinte, se mantenho meus olhos nEle, serei perfeitamente guiado. Mas isto nos leva à segunda parte de nosso assunto, a saber: Como posso encontrar o caminho de Deus? Com toda certeza, uma questão da maior importância. Para onde devo me voltar para encontrar o caminho de Deus? 

Se os olhos da ave de rapina, tão aguçados, tão potentes, tão capazes de enxergar longe, não podem vê-lo, - se o leão, tão vigoroso em seu andar, tão majestoso em seu parecer, não pôde trilhá-lo, - se o homem não lhe conhece o valor, e se ele não se acha na terra dos viventes, - se o abismo diz: Não está comigo, e o mar diz: Não está comigo, - se não pode ser conseguido com ouro ou pedras preciosas, - se toda a riqueza do Universo não pode igualar-se a ele, e nem toda a inteligência humana pode descobri-lo, - então para onde devo voltar-me? Onde devo encontrá-lo? 

Devo eu voltar-me para aqueles grandes padrões de ortodoxia que governam o pensamento religioso e os sentimentos de milhões de pessoas espalhadas por toda a extensão da Igreja professa? Será que esse tremendo caminho de sabedoria é para ser encontrado com eles? Será que eles se constituem numa exceção para a regra ampla, geral e irrestrita de Jó 28? Certamente que não.


O quê, então, devo fazer? Sei que há um caminho. Deus, que não pode mentir, declara isso, e eu creio; mas onde devo encontrá-lo? "Donde pois vem a sabedoria, e onde está o lugar da inteligência? Porque está encoberta aos olhos de todo o vivente, e oculta às aves do céu. A perdição e a morte dizem: Ouvimos com os nossos ouvidos a sua fama." Parece não haver esperanças para um pobre ignorante mortal qualquer que queira buscar este caminho tão maravilhoso. 

Mas - bendito seja Deus - não é o que sucede; não se trata, modo algum, de algo inacessível, pois "Deus entende o seu caminho, e Ele sabe o seu lugar. Porque Ele vê as extremidades da Terra; e vê tudo o que há debaixo dos céus. Quando deu peso ao vento, e tomou a medida das águas. Quando prescreveu uma lei para a chuva e caminho para o relâmpago dos trovões; então a viu e a manifestou; estabelece-a e também a esquadrinhou. Mas disse ao homem: Eis que o temor do Senhor é a sabedoria, e apartar-se do mal é a inteligência" (Jó 28:23-28). 

Aqui está, portanto, o divino segredo da sabedoria: "O temor do Senhor". Isto coloca a consciência diretamente na presença do Senhor, que é o único lugar verdadeiro. O objetivo de Satanás é manter a consciência fora desse lugar - é trazê-la sob o poder e autoridade do homem - guiá-la em sujeição a mandamentos de doutrinas de homens - fazê-la crer em algo, não importa o que seja, que possa ficar entre a consciência e a autoridade de Cristo o Senhor. 

Pode ser um credo ou uma confissão de fé que contenha uma boa parcela de verdade, - pode ser a opinião de um homem ou de um grupo de homens, - o modo de entender de algum mestre favorito, - em suma, qualquer coisa que possa introduzir-se no coração e usurpar o lugar que pertence somente à Palavra de Deus. Este é um engano terrível e uma pedra de tropeço - um empecilho dos mais sérios em nosso progresso nos caminhos do Senhor. 

A Palavra de Deus deve governar os homens - a pura e simples Palavra de Deus, e não a interpretação que os homens fazem dela. Sem dúvida alguma, Deus pode usar um homem para abrir esta Palavra para minha alma; mas então não será a expressão dada pelo homem à Palavra de Deus que irá me governar, mas a Palavra de Deus expressa pelo homem. Isto é algo de suma importância. Devemos ser exclusivamente ensinados e exclusivamente governados pela Palavra do Deus vivo. Nada mais irá nos manter, ou dará solidez e consistência a nosso caráter e ao nosso andar como cristãos. 

Existe, dentro de nós e ao nosso redor, uma forte tendência de sermos governados pelos pensamentos e opiniões de homens - por aqueles grandes padrões de doutrina que os homens estabeleceram. Tais padrões e opiniões podem levar um grande volume de verdade - podem ser todos verdadeiros naquilo que abrangem; não é este o ponto em questão aqui. O que temos o desejo de insistir com o leitor cristão é que ele não deve ser governado pelos pensamentos de seus semelhantes, mas pura e simplesmente pela Palavra de Deus. Já que não há valor algum em se receber a doutrina vinda de um homem, devo recebê-la diretamente do próprio Deus. 

Deus pode usar um homem para comunicar Sua verdade; mas a menos que eu a receba como vinda de Deus, ela não exercerá o divino poder sobre meu coração e minha consciência; ela não me levará a um contato vivo com Deus, mas irá até mesmo impedir tal contato, por colocar algo entre minha alma e Sua santa autoridade. Gostaríamos imensamente de nos estender neste grande princípio e insistir nele; mas temos que nos conter por ora, a fim de expor ao leitor um ou dois pontos solenes e de natureza prática que aparecem no capítulo onze de Lucas, - pontos que, se analisados, nos capacitarão a entender um pouco melhor como encontrar o caminho de Deus. Vamos citar a passagem toda: "A candeia do corpo é o olho.


Sendo, pois o teu olho simples, também todo o teu corpo será luminoso; mas, se for mau, também o teu corpo será tenebroso. Vê, pois que a luz que em ti há não sejam trevas. Se, pois, todo o teu corpo é luminoso, não tendo em trevas parte alguma, todo será luminoso, como quando a candeia te alumia com o seu resplandor" (Lc 11:34-36). 

Portanto, nos é dado aqui o verdadeiro segredo de se discernir o caminho de Deus. Pode parecer difícil, em meio ao turbulento mar da cristandade, manter o rumo certo. Há tantas vozes conflitantes entrando em nossos ouvidos. Tantos pontos de vista opostos que chamam nossa atenção, homens de Deus diferem de tal modo na interpretação, sombras de opinião multiplicam-se assim, a ponto de parecer impossível chegar-se a uma conclusão genuína. Dirigimo-nos a um homem que, pelo que podemos julgar, parece ter um "olho simples", e ele nos diz uma coisa; vamos a outro homem que também parece ter um "olho simples" e ele diz exatamente o contrário. 

O que podemos pensar disso? Bem, uma coisa é certa: nosso próprio olho não é simples quando nos encontramos correndo, em incerteza e perplexidade, de um homem para outro. O olho simples está fixado em Cristo somente, e assim o corpo é cheio de luz. O israelita do passado não precisava ficar correndo de um lado para outro para consultar seus semelhantes quanto ao caminho certo. Cada um tinha a mesma direção divina, a saber, a coluna de nuvem de dia, e a coluna de fogo à noite. Em suma, o próprio Jeová era o Guia infalível de cada membro da congregação. Eles não eram colocados sob a direção do homem mais inteligente, mais sagaz ou experiente da assembleia; tampouco eram deixados para que seguissem seus próprios caminhos, - cada um devia seguir o Senhor. A trombeta de prata anunciava a todos, igualmente, qual a vontade de Deus; e ninguém que tivesse os ouvidos atentos ficava em desvantagem. 


Os olhos e ouvidos de cada um deviam estar dirigidos para Deus somente, e não para algum mortal seu semelhante. Foi este o segredo de terem sido guiados no passado naquele deserto sem trilhas ou caminhos, e é este o segredo para sermos guiados no vasto deserto moral pelo qual os redimidos de Deus estão passando agora. Alguém pode dizer: Escute a mim; e outro pode dizer: Escute a mim; e um terceiro pode dizer: Deixe que cada um, escolha o seu caminho. Mas o coração obediente diz, em oposição a todos eles: Devo seguir a meu Senhor. Isto torna tudo tão simples. Não irá, de modo algum, incitar alguém a cair em um arrogante espírito de independência; muito pelo contrário. 

Quanto mais eu for ensinado a depender somente de Deus para direção, mais irei deixar de confiar em mim e de olhar para mim; e isto certamente não é independência. Na realidade, ao fazer com que eu sinta minha responsabilidade para com Cristo somente, isto irá me livrar de seguir servilmente qualquer homem; e é isto o que é tão necessário no momento presente. 

Quanto mais de perto examinarmos os elementos que imperam na Igreja professa, mais ficaremos convencidos de nossa necessidade pessoal desta completa sujeição à autoridade divina, o que é apenas outro nome para o "temor do Senhor", ou para o "olho simples". Existe uma breve sentença no princípio de Atos dos Apóstolos, que fornece um perfeito antídoto tanto para a vontade própria, quanto para o medo servil do homem, que é o que tanto vemos hoje ao redor. O antídoto é: "Importa obedecer a Deus" (At 5:29). Que tremenda afirmação! "Importa obedecer." Esta é a cura para a vontade própria. "Importa obedecer a Deus".


É esta a cura para a sujeição servil aos mandamentos e doutrinas de homens. Deve haver obediência; mas obediência a quê? À autoridade de Deus, e só a ela. Assim a alma é guardada, por um lado, da influência da infidelidade, e por outro, da superstição. A infidelidade diz: Faça como você quiser. A superstição diz: Faça como o homem ordena. A fé diz: "Importa obedecer a Deus". 

Aqui está o santo equilíbrio da alma em meio às influências confusas e antagônicas ao nosso redor nestes dias. Como um servo, devo obedecer a meu Senhor; como um filho, devo escutar com atenção os mandamentos de meu Pai. E não devo ser negligente nisto, apesar de correr o risco de não ser compreendido por meus irmãos e companheiros. Devo lembrar que o primeiro compromisso de minha alma é com o próprio Deus. Aquele, diante de Quem se prostram os anciãos. É com Quem devo tratar, agora e então. Trata-se de meu privilégio estar tão seguro de conhecer a vontade de meu Mestre acerca do caminho a seguir, como de possuir a Sua Palavra para a segurança de minha alma. Se não for assim, onde encontro-me, então? 

Acaso não é meu privilégio ter um olho simples? Sim, com certeza. E o que vem depois? Um "corpo luminoso". Agora, se meu corpo está cheio de luz, como pode minha mente estar cheia de perplexidade? Impossível. As duas coisas são totalmente incompatíveis; e por conseguinte, quando alguém encontra-se imerso nas trevas da incerteza, está bem claro que seu olho não é simples. 

Ele pode parecer bem sincero, pode estar bem ansioso de ser guiado pelo caminho certo; mas pode ficar ciente de que existe a falta de um olho simples - este pré-requisito indispensável para a direção divina. A Palavra é clara - "Sendo, pois o teu olho simples, também todo o teu corpo será luminoso" (Lc 11:34). 

Deus irá sempre guiar a alma humilde e obediente; mas, por outro lado, se não andamos em conformidade com a luz que nos é comunicada, então ficaremos em trevas. 


A luz pela qual não se atua transforma-se em trevas, e oh, "quão grandes serão tais trevas!" (Mt 6:23). Nada é mais perigoso do que interferir com a luz que Deus concede. Acabará, cedo ou tarde, levando às piores consequências. "Vê pois que a luz que em ti há não sejam trevas" (Lc 11:35). 

"Escutai, e inclinai os ouvidos: não vos ensoberbeçais; porque o Senhor falou. Dai glória ao Senhor vosso Deus, antes que venha a escuridão e antes que tropecem vossos pés nos montes tenebrosos; antes que, esperando luz ele a mude em sombra de morte, e a reduza à escuridão" (Jr 13:15-16). 

Isto é algo profundamente solene. Que contraste existe entre um homem com olho simples e um homem que não age na luz que Deus lhe deu! O primeiro tem seu corpo cheio de luz; o outro tem seu corpo cheio de trevas; um não tem nenhuma parte escura; o outro está mergulhado em horrível escuridão; um leva a luz a outros; o outro é uma pedra de tropeço no caminho. 

Não conhecemos nada mais solene que o ato judicial de Deus, em deveras transformar luz em trevas, por nos recusarmos a atuar na luz que Ele quis nos conceder. Leitor cristão: Você está atuando em conformidade com a luz que tem? Acaso Deus enviou um raio de luz à sua alma? Será que Ele já mostrou que há algo errado em seu andar e naquilo com que você está associado? Você continua persistindo em alguma linha de ação que sua consciência lhe diz não estar totalmente de acordo com a vontade de seu Senhor? Procure para ver. "Dê glória ao Senhor teu Deus". 

Atue na luz. Não hesite. Não meça as consequências. Obedeça a Palavra de seu Senhor, é o que suplicamos. Neste exato momento em que seus olhos percorrem estas linhas, deixe que a intenção de sua alma seja a de separar-se da iniquidade, onde quer que a encontre. 

Não diga: Aonde devo ir? O que devo fazer a seguir? O mal está em todo lugar. É escapar de um mal para mergulhar noutro. Não diga tais coisas; não argumente ou discuta; não busque resultados; não pense no que o mundo ou a igreja-mundo irá dizer de você; levante-se acima dessas coisas, e trilhe a senda da luz - esse caminho que brilha mais e mais até ser o dia perfeito de glória. Lembre-se de que Deus nunca dá luz para dois passos de uma vez.


Se Ele deu a você luz para um passo, então, no temor e amor do Seu Nome, dê aquele passo, e você irá, com certeza, conseguir mais luz - sim, cada vez mais. Mas se houver uma recusa para agir, a luz que há em você se transformará em rude escuridão, seu pé tropeçará nas montanhas de erro que estão em ambos os lados do caminho reto e estreito da obediência; e você acabará se tornando uma pedra de tropeço no caminho de outros. Algumas das mais opressivas pedras de tropeço existentes hoje no caminho daqueles que buscam ansiosamente, podem ser achadas em pessoas que um dia pareciam possuir a verdade, mas se desviaram dela. 

A luz que havia neles transformou-se em trevas, e oh, quão grandes e pavorosas trevas! Como é triste vermos aqueles que deveriam ser carregadores de luz, agindo como verdadeiros obstáculos para cristãos novos e sinceros! Mas, jovem cristão, não se deixe impedir por eles. O caminho é claro. "O temor do Senhor é a sabedoria, e apartar-se do mal é a inteligência". 

Que cada um escute e obedeça por si mesmo a voz do Senhor. "As Minhas ovelhas ouvem a Minha voz, e Eu conheço-as, e elas Me seguem" (Jo 10:27). Que o Senhor seja louvado por esta preciosa palavra! Ela põe cada um no lugar de responsabilidade direta para com o próprio Cristo; diz-nos claramente o que é o caminho de Deus, e, de modo igualmente claro, como encontrá-lo. 

6. A vinda do Senhor 

O leitor atento do Novo Testamento encontrará em suas páginas três fatos solenes e significativos colocados diante de si. O primeiro, que o Filho de Deus veio a este mundo e Se foi; o segundo, que o Espírito Santo desceu à terra e permanece aqui; e, o terceiro, que o Senhor Jesus voltará. Estes são os três grandes temas descortinados nas Escrituras do Novo Testamento, e vamos descobrir que cada um deles tem uma dupla aplicação: uma diz respeito ao mundo e outra à Igreja. 

Ao mundo de uma forma geral, e em particular a cada homem, mulher e criança não convertidos; à Igreja, de uma forma geral, e a cada membro individualmente. É impossível alguém se esquivar do significado destes três grandes fatos naquilo que diz respeito à sua própria condição pessoal e ao seu destino eterno. É importante notar que não estamos falando de doutrinas — embora não haja dúvida de que existam doutrinas — mas de fatos; fatos apresentados da maneira mais simples possível pelos vários escritores inspirados usados para apresentá-los. Não existe qualquer intenção de adorná-los ou alterá-los. Os fatos falam por si próprios; estão registrados e deixados ali para produzir seu peculiar e poderoso efeito na alma. 


1. Antes de tudo, vamos analisar o fato do Filho de Deus ter vindo a este mundo. "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo aquele que nEle crê não pereça, mas tenha a vida eterna". "O Filho de Deus é vindo". 

Ele veio em perfeito amor, como a exata expressão do coração e propósito de Deus, de Sua natureza e caráter. Era o resplendor da glória de Deus, a expressa imagem da Sua Pessoa e, mesmo assim, modesto, humilde, bondoso e sociável. Era Alguém que podia ser visto dia após dia caminhando pelas ruas, indo de casa em casa, bom e afável para com todos, acessível aos mais pobres e tomando criancinhas em Seus braços da forma mais terna, gentil e cativante. 

Era visto enxugando as lágrimas da viúva, consolando o coração contrito e abatido, saciando o faminto, curando o enfermo, purificando o pobre leproso, atendendo a toda sorte de necessidade e sofrimento humano, a serviço de todos os que necessitavam de auxílio e compaixão. Ele "andou fazendo o bem", foi o incansável servo das necessidades humanas. Ele jamais pensou em Si mesmo, ou buscou Seus próprios interesses no que quer que fosse; Ele viveu para os outros. Sua comida e bebida eram fazer a vontade de Deus, e satisfazer os corações cansados e sobrecarregados dos filhos e filhas dos homens. Seu amável coração sempre fluiu em mananciais de bênçãos para todos os que sentissem a pressão deste mundo triste e contaminado pelo pecado. Temos aqui, portanto, o maravilhoso fato diante de nossos olhos. 

Este mundo foi percorrido por aquela bendita Pessoa da qual falamos — este mundo recebeu a visita do Filho de Deus, o Criador e Mantenedor do Universo, o humilde, despojado, amoroso e benigno Filho do Homem, Jesus de Nazaré, Deus sobre tudo e eternamente bendito e, ao mesmo tempo, um Homem absolutamente perfeito, santo e incontaminado. Ele veio em amor para com os homens, veio a este mundo como a expressão do perfeito amor para com aqueles que tinham pecado contra Deus e não mereciam coisa alguma além da perdição eterna por causa de seus pecados. Ele não veio para esmagar, mas para curar; não veio para julgar, mas para salvar e abençoar. O que aconteceu a esse bendito Jesus? 

Como o mundo O tratou? O mundo O expulsou! Não O quis! Preferiu um ladrão e homicida em lugar desse Homem santo, bondoso e perfeito. O mundo recebeu o que pediu. Jesus e um ladrão foram colocados diante do mundo e a pergunta foi feita: "Qual desses dois quereis vós?". Qual foi a resposta? "Barrabás". "Os príncipes dos sacerdotes e os anciãos persuadiram à multidão que pedisse Barrabás e matasse Jesus. E, respondendo o presidente, disse-lhes: Qual desses dois quereis vós que eu solte? E eles disseram: Barrabás" (Mt 27:20-21). 

Os líderes e guias religiosos do povo — os homens que deveriam guiá-los pelo caminho direito — persuadiram a multidão pobre e ignorante a rejeitar o Filho de Deus e aceitar um ladrão e homicida em Seu lugar! Leitor lembre-se de que você está em um mundo que é culpado deste terrível ato. E não só isso, mas a menos que você se arrependa e creia verdadeiramente no Senhor Jesus Cristo, você é parte e porção deste mundo, e está sob toda a culpa que decorre daquele ato. Isto é por demais solene. O mundo todo é culpado de deliberada rejeição e assassinato do Filho de Deus. Para isso temos o testemunho de pelo menos quatro testemunhas inspiradas. Mateus, Marcos, Lucas e João, todos eles registram que o mundo todo — judeus e gentios, reis e governantes, sacerdotes e o povo — todas as classes, seitas e partidos, concordaram em crucificar o Filho de Deus. 

Todos concordaram em assassinar o único homem perfeito que apareceu neste mundo, a perfeita expressão de Deus — do Deus que é sobre tudo bendito eternamente. Ou consideramos os quatro evangelistas como falsas testemunhas ou admitimos que o mundo, como um todo e em cada uma das partes que o constituem, está manchado pelo terrível crime de ter crucificado o Senhor da glória. Este é o verdadeiro padrão pelo qual o mundo deve ser medido e pelo qual deve ser medida a condição de todo inconverso deste mundo, seja homem, mulher ou criança. Se eu quiser saber o que é o mundo, basta ponderar no fato de que o mundo é aquele que permanece culpado diante de Deus pelo deliberado assassinato de Seu Filho. Que tremendo fato! Um fato que coloca sua marca no mundo da forma mais solene, e o expõe diante de nossos olhos em toda sua obscuridade. 

Deus tem uma demanda com este mundo. Ele tem uma questão a ser resolvida com o mundo — uma questão terrível — cuja mera menção deveria fazer os ouvidos dos homens retinir e o coração tremer. Um Deus justo precisa vingar a morte de Seu Filho. Não se trata meramente do fato de ter o mundo aceitado um vil ladrão e assassinado um homem inocente; isto, por si só, já teria sido um ato pavoroso. Mas, não, aquele inocente não era ninguém menos do que o Filho de Deus, o querido do coração do Pai. Que pensamento! O mundo deverá prestar contas a Deus pela morte do Seu Filho — por tê-Lo pregado na cruz entre dois ladrões! Que ajuste de contas será! Quão vermelho será o dia da vingança! Que esmagamento terrível trará aquele momento, quando Deus desembainhar a espada do juízo para vingar a morte de Seu Filho! Quão vã é a ideia de que o mundo esteja melhorando! Melhorando apesar de manchado com o sangue de Jesus? 

Melhorando apesar de estar sob o juízo de Deus por causa desse ato? Melhorando apesar de precisar prestar contas a um Deus justo pelo tratamento dado ao Amado de Sua alma, enviado em amor para abençoar e salvar? Que estupidez cega! Que tolice louca! Ah, não! Não pode haver qualquer melhoria até que o mundo seja varrido pela destruição e a espada do juízo tenha feito seu terrível trabalho para vingar o assassinato — o assassinato deliberadamente planejado, e executado com tamanha determinação — do bendito Filho de Deus. Não podemos conceber uma ilusão mais falsa e fatal do que imaginar que o mundo possa algum dia ser melhorado enquanto estiver sob a terrível maldição da morte de Jesus. O mundo que preferiu Barrabás a Cristo não pode conhecer melhoria. Nada há para ele além do devastador juízo de Deus. 

O mesmo se pode dizer do significativo fato da ausência de Jesus, em relação à presente condição e ao destino futuro do mundo. Mas este fato traz outras implicações. Ele está relacionado à Igreja de Deus como um todo, e ao crente individualmente. Se, por um lado, o mundo expulsou a Cristo, por outro, os céus O receberam. Se, de sua parte, os homens O rejeitaram, Deus O exaltou. Se o homem O crucificou, Deus O coroou. Devemos distinguir cuidadosamente estas duas coisas. A morte de Cristo, quando vista como um ato do mundo — o ato do homem — envolve a total e absoluta ira e juízo. Por outro lado, a morte de Cristo, quando vista como um ato de Deus, envolve a total e absoluta bênção para todos aqueles que se arrependem e creem. Uma ou duas passagens da divina Palavra irão provar isto. Vamos abrir por um momento no Salmo 69, o qual apresenta de forma tão clara nosso bendito e adorável Senhor sofrendo nas mãos dos homens e suplicando a Deus por vingança. 

"Ouve-me, Senhor, pois boa é a Tua misericórdia. Olha para mim segundo a Tua muitíssima piedade. E não escondas o Teu rosto do Teu servo, porque estou angustiado; ouve-me depressa. Aproxima-Te da minha alma, e resgata-a; livra-me por causa dos meus inimigos. Bem tens conhecido a minha afronta, e a minha vergonha, e a minha confusão; diante de Ti estão todos os meus adversários. Afrontas Me quebrantaram o coração, e estou fraquíssimo; esperei por alguém que tivesse compaixão, mas não houve nenhum; e por consoladores, mas não os achei. Deram-me fel por mantimento, e na minha sede Me deram a beber vinagre. Torne-se-lhes a sua mesa diante deles em laço, e a prosperidade em armadilha. Escureçam-se-lhes os seus olhos, para que não vejam, e faze com que os seus lombos tremam constantemente. Derrama sobre eles a Tua indignação, e prenda-os o ardor da Tua ira" (Sl 69:16-28). 

Tudo isso é por demais profundo e solene. Cada palavra desta súplica será respondida. Nem uma sílaba sequer cairá por terra. Com toda certeza Deus vingará a morte de Seu Filho. Ele acertará contas com o mundo — com os homens — pelo tratamento que Seu Filho unigênito recebeu em suas mãos. Acreditamos ser correto insistir nisto para o coração e consciência do leitor. Quão terrível o pensamento de Cristo intercedendo contra as pessoas! Quão espantoso escutá-Lo rogando a Deus por vingança sobre Seus adversários! Quão terrível será a resposta devida ao clamor do Filho ferido! Mas olhemos o outro lado da questão. Abra no Salmo 22, que apresenta o bendito Senhor sofrendo nas mãos de Deus. Aqui o resultado é totalmente diferente. Ao invés de julgamento e vingança, trata-se de bênção e glória, universais e eternas. 

"Então declararei o Teu nome aos meus irmãos; louvar-Te-ei no meio da congregação. Vós, que temeis ao Senhor, louvai-O; todos vós, semente de Jacó, glorificai-O; e temei-O todos vós, semente de Israel.... O meu louvor será de Ti na grande congregação; pagarei os meus votos perante os que O temem. Os mansos comerão e se fartarão; louvarão ao Senhor os que O buscam; o vosso coração viverá eternamente. Todos os limites da terra se lembrarão, e se converterão ao Senhor; e todas as famílias das nações adorarão perante a Tua face. Porque o reino é do Senhor, e Ele domina entre as nações... Uma semente O servirá; será declarada ao Senhor a cada geração. Chegarão e anunciarão a Sua justiça ao povo que nascer, porquanto Ele o fez" (Sl 22:22-31). 

Estas duas passagens apresentam, com imensa distinção, os dois aspectos da morte de Cristo. Ele morreu, como um mártir, pela justiça, nas mãos dos homens. O homem prestará contas disso a Deus. Mas Ele morreu nas mãos de Deus como uma vítima pelo pecado. Este é o fundamento de toda bênção para aqueles que creem no Seu nome. Seus sofrimentos como mártir desencadeiam a ira e o juízo sobre um mundo ímpio, enquanto Seus sofrimentos expiatórios abrem as fontes eternas de vida e salvação para a Igreja, para Israel e para toda a criação. A morte de Jesus consuma a culpa do mundo, mas assegura a aceitação da Igreja. O mundo está manchado, enquanto a Igreja está purificada por meio do sangue derramado na cruz. Esta é a dupla aplicação do primeiro de nossos três grandes fatos do Novo Testamento. Jesus veio e Se foi — veio, pois Deus amou ao mundo — foi embora, porque o mundo odiou a Deus. Se Deus perguntasse — e Ele perguntará — "o que vocês fizeram com Meu Filho?", qual seria a resposta? "Nós O odiamos; nós O expulsamos e O crucificamos. Preferimos um ladrão a Ele". 

Mas, bendito seja eternamente o Deus de toda graça, o cristão, o verdadeiro crente, pode levantar os olhos para o céu é dizer: "Meu Senhor ausente está lá, e está lá por mim. Ele Se foi deste pobre mundo, e Sua ausência torna todo o cenário ao meu redor um deserto moral — uma desolada ruína". Ele não está aqui. Isto coloca no mundo, no discernimento de todo coração leal, o carimbo de um caráter inconfundível. O mundo não queria a Jesus. É o suficiente. De agora em diante já não precisamos nos espantar com qualquer história de horror. O noticiário policial, os processos nos tribunais, as estatísticas de nossas cidades e vilas já não precisam nos surpreender. 

O mundo que foi capaz de rejeitar a divina personificação de toda a bondade humana, e aceitou um ladrão e homicida em Seu lugar, provou sua torpeza moral em um grau que jamais poderá ser ultrapassado. Será que é motivo de espanto quando descobrimos a falsidade e crueldade do mundo? Ficamos surpresos quando descobrimos que este mundo não é confiável? Se isto ocorrer, está claro que não interpretamos corretamente a ausência de nosso bendito Senhor. O que prova a cruz de Cristo? Que Deus é amor? Sem dúvida. Que Cristo deu Sua preciosa vida para nos salvar das chamas de um inferno sem fim? Bendita verdade, seja dado total louvor ao Seu nome inigualável! Mas o que a cruz prova em relação ao mundo? Que sua culpa está consumada e seu juízo determinado. 

O mundo, ao pregar na cruz Aquele que era perfeitamente bom, provou da forma mais irrefutável que é perfeitamente mau. "Se Eu não viera, nem lhes houvera falado, não teriam pecado, mas agora não têm desculpa do seu pecado. Aquele que Me odeia, odeia também a Meu Pai. Se Eu entre eles não fizesse tais obras, quais nenhum outro tem feito, não teriam pecado; mas agora, viram-nas e Me odiaram a Mim e a Meu Pai. Mas é para que se cumpra a palavra que está escrita na sua lei: Odiaram-Me sem causa" (Jo 15:22-26). 


2. Porém, devemos agora nos ocupar por um momento com nosso segundo e importante fato. O Espírito Santo de Deus desceu a este mundo. Já se passaram mais de dezenove séculos* desde que o bendito Espírito desceu do céu, e Ele permanece aqui desde então. Trata-se de um fato estupendo. Existe uma Pessoa divina neste mundo e Sua presença — assim como a ausência de Jesus — tem uma dupla aplicação: uma está relacionada ao mundo, outra tem a ver com cada homem, mulher e criança aqui; está relacionada à Igreja como um todo e a cada membro dela em particular. 

No que diz respeito ao mundo, esta excelsa testemunha desceu do céu para convencer o mundo de seu terrível crime de haver rejeitado e crucificado o Filho de Deus. No que diz respeito à Igreja, Ele veio como o bendito Consolador, para ocupar o lugar do Jesus ausente e confortar, com Sua presença e ministério, os corações do Seu povo. Assim, para o mundo o Espírito Santo é um poderoso Persuasor; para a Igreja Ele é um precioso Consolador. [* N. do T.: O autor viveu no século 19] 

Uma ou duas passagens das sagradas Escrituras fundamentarão estes pontos no coração e mente do leitor piedoso que se sujeita em humilde reverência à autoridade da divina Palavra. Vamos abrir no capítulo 16 do Evangelho de João. "E agora vou para Aquele que Me enviou; e nenhum de vós Me pergunta: Para onde vais? Antes, porque isto vos tenho dito, o vosso coração se encheu de tristeza. 

Todavia, digo-vos a verdade, que vos convém que Eu vá; porque, se Eu não for, o Consolador não virá a vós; mas, quando Eu for, vo-lo enviarei. E, quando Ele vier, convencerá (elegxei) o mundo do pecado, e da justiça e do juízo. Do pecado, porque não creem em mim; da justiça, porque vou para Meu Pai, e não Me vereis mais; e do juízo, porque já o príncipe deste mundo está julgado" (Jo 16:5-11). Mais uma vez, em João 14 lemos: "Se Me amais, guardai os Meus mandamentos. E Eu rogarei ao Pai, e Ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre; o Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não O vê nem O conhece; mas vós O conheceis, porque habita convosco, e estará em vós". (Jo 14:15-19). 

Estas passagens comprovam a dupla aplicação da presença do Espírito Santo. Não ousamos tratar este assunto apenas com esta breve introdução, mas sabemos que o leitor será incentivado a estudá-lo por si mesmo à luz das Sagradas Escrituras, e estamos convencidos de que quanto mais estudá-lo, maior será a profundidade e a importância prática de seu interesse. 

Oh, que pena que isto seja tão pouco compreendido, que os cristãos vejam tão pouco daquilo que está envolvido na presença pessoal do Espírito eterno, o Espírito Santo de Deus, neste mundo — suas solenes consequências relacionadas ao mundo e seus preciosos resultados para com a assembleia como um todo e para cada membro em particular. Oh, que aqueles que fazem parte do povo de Deus em todo lugar possam ser guiados a uma compreensão mais profunda destas coisas; que possam considerar aquilo que é devido à divina Pessoa que habita neles e com eles; que possam ter o zeloso cuidado de não "entristecer" o Espírito Santo em seu andar ou "extingui-Lo" em suas assembleias públicas!


O FATO

Ao abordarmos este assunto tão glorioso, sentimos que não há nada melhor do que apresentar ao leitor o claro testemunho das Sagradas Escrituras, no que diz respeito ao fato em sua amplitude, de que nosso Senhor Jesus Cristo voltará — de que Ele deixará o lugar que agora ocupa no trono de Seu Pai e virá nas nuvens do céu, para receber Seu povo para Si, para executar juízo sobre o ímpio e estabelecer Seu reino universal e eterno. Este fato está clara e completamente estabelecido no Novo Testamento, do mesmo modo como os outros dois fatos aos quais já nos referimos. É verdade que o Filho de Deus virá do céu, assim como também é verdade que Ele foi para o céu, ou que o Espírito Santo continua neste mundo. Se admitirmos um fato, devemos admitir todos; se negarmos um, devemos negar todos, uma vez que tudo se apoia exatamente na mesma autoridade. 

Juntos eles permanecem ou juntos eles caem. É verdade que o Filho de Deus foi rejeitado, expulso e crucificado? É verdade que Ele foi para o céu? É verdade que Ele agora está sentado à destra de Deus, coroado de honra e glória? É verdade que o Espírito Santo de Deus desceu a este mundo cinquenta dias após a ressurreição de nosso Senhor e que Ele continua aqui? Todas estas coisas são verdadeiras? Tão verdadeiras quanto as Escrituras podem torná-las. Portanto, é igualmente verdade que nosso bendito Senhor voltará outra vez e estabelecerá Seu reino neste mundo, que Ele irá — literal, real e pessoalmente — descer do céu, tomar posse de Seu grande poderio e do reino que vai de um polo ao outro, "desde o rio do Egito" aos confins da terra. 

Talvez possa parecer estranho para alguns de nossos leitores considerarmos necessário levantar as provas de uma verdade tão clara como esta, mas é bom lembrar que estamos escrevendo como se o assunto fosse totalmente inédito para o leitor, como se ele nunca tivesse ouvido falar de algo parecido com a segunda vinda do Senhor, ou como se, tendo ouvido falar, continuasse a colocar isto em dúvida. Este é o motivo de tratarmos deste tema tão precioso de um modo tão elementar. Agora vamos às nossas provas. Quando nosso adorável Senhor estava prestes a deixar Seus discípulos, em Sua infinita graça Ele procurou consolar o coração pesaroso deles com palavras da mais doce ternura. "Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em Mim. Na casa de Meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, Eu vo-lo teria dito. Vou preparar-vos lugar. E quando Eu for, e vos preparar lugar, virei outra vez, e vos levarei para Mim mesmo, para que onde Eu estiver estejais vós também". (Jo 14:1-3). 

Encontramos aqui algo bem definido. Na verdade, não está apenas bem definido, como é também motivo de ânimo e consolo. "Virei outra vez". Ele não diz "mandarei alguém buscar vocês". Muito menos Ele diz que "vocês virão Me encontrar quando morrerem". Ele não diz algo parecido. Enviar um anjo ou uma legião de anjos não seria a mesma coisa que Ele vir pessoalmente. 

Não há dúvida de que seria muito gentil de Sua parte, e muito glorioso para nós, se uma multidão dentre as hostes celestiais fosse enviada, com cavalos e carruagens de fogo, para nos transportar triunfantes para o céu. Mas isto não seria o cumprimento da doce promessa que Ele mesmo fez, e certamente Ele cumprirá o que prometeu. Ele não diria uma coisa para depois fazer outra. Ele não pode mentir ou alterar Sua Palavra. E não apenas isto, mas algo como enviar um anjo ou uma hoste de anjos para nos buscar não iria satisfazer o amor que Ele traz em Seu coração. Que tocante a graça que fulgura em tudo isso! 

Se eu estiver esperando por um amigo importante e muito querido que deve chegar de trem, não ficarei satisfeito em mandar um funcionário ou um táxi para encontrá-lo; devo ir eu mesmo. É precisamente isto que nosso Senhor quer fazer. Ele foi para o céu, e Sua entrada ali prepara e define o lugar do Seu povo. Não haveria lugar para nós em meio às muitas mansões na casa do Pai se nosso Jesus não tivesse ido na frente; e então, para que não existisse no coração qualquer sentimento de estranheza de pensar em nossa entrada naquele lugar, Ele diz, com tamanha doçura: "Virei outra vez, e vos levarei para Mim mesmo, para que onde Eu estiver estejais vós também". Nada menos do que isto pode cumprir a graciosa promessa feita por nosso Senhor, ou satisfazer o amor que Ele traz no coração. E é bom que se observe cuidadosamente que esta promessa nada tem a ver com a morte do crente individualmente. 

Quem poderia imaginar que, ao dizer "virei outra vez", o Senhor realmente quisesse dizer que deveríamos ir a Ele por meio da morte? Como presumir que podemos ter tal liberdade para interpretar de outro modo as palavras claras e preciosas de nosso Senhor? O certo é que, se Ele quisesse dizer que iríamos nos encontrar com Ele por meio da morte, poderia e teria dito isto. Mas não disse, pois não foi o que quis dizer; tampouco é possível que falasse uma coisa querendo dizer outra. Sua vinda para nós, e nossa ida para Ele, são coisas totalmente diferentes, e por se tratar de ideias diferentes, elas teriam sido apresentadas em linguagem diferente. 

Assim, por exemplo, no caso do ladrão arrependido na cruz, nosso Senhor não fala de vir buscá-lo, mas diz: "Hoje estarás comigo no Paraíso". É preciso que nos lembremos de que as Escrituras são tão divinamente definitivas quanto inspiradas, e por esta razão nunca deveríamos confundir duas coisas que são tão diferentes quanto a vinda do Senhor e o adormecer do cristão. Talvez aqui seja bom assinalar que não existem mais do que quatro passagens em todo o Novo Testamento se referindo à questão do cristão passando pela morte. A primeira é aquela em Lucas 23, já mencionada: "Hoje estarás comigo no Paraíso". A segunda ocorre em Atos 7: "Senhor Jesus, recebe o meu espírito". A terceira é aquela expressão familiar e encantadora de 2 Coríntios 5, "deixar este corpo, para habitar com o Senhor". 

A quarta ocorre no fascinante primeiro capítulo da epístola aos Filipenses, "tendo desejo de partir, e estar com Cristo, porque isto é ainda muito melhor". Estas passagens tão preciosas compõem a totalidade de testemunhos nas Escrituras sobre a interessante questão da condição pós-morte. Há uma passagem em Apocalipse 14 que costuma ser erroneamente aplicada a este assunto: "Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem dos seus trabalhos, e as suas obras os seguem". Mas isto não tem relação com os cristãos hoje, embora não haja dúvida de que todos os que morrem no Senhor sejam bem-aventurados e suas obras os sigam. Todavia, a referência é para um tempo ainda futuro, quando a Igreja já tiver deixado esta cena por completo, e outras testemunhas se apresentarem. Em suma, Apocalipse 14:13 refere-se aos tempos apocalípticos e deve ser visto desta forma se quisermos evitar confusão. Devemos agora voltar ao nosso assunto e seguir com nossas provas e, ao fazê-lo, gostaríamos de pedir ao leitor que abra no primeiro capítulo de Atos dos Apóstolos. 

O bendito Senhor tinha acabado de subir deste mundo diante de Seus santos apóstolos. "E, estando com os olhos fitos no céu, enquanto Ele subia, eis que junto deles se puseram dois homens vestidos de branco. Os quais lhes disseram: Homens galileus, por que estais olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir assim como para o céu O vistes ir" (At 1:10 e 11). Isto é profundamente interessante e fornece uma prova das mais marcantes de nossa tese atual. Na verdade, é impossível ficar imune à sua força. Oh, quem poderia ou desejaria evitá-la? 

A forma como a testemunha angelical fala para os homens da Galileia poderia até ser considerada tautologia, mas, como bem sabemos, não existe e nem pode existir algo assim no volume de Deus. Portanto, o que vemos neste testemunho é algo encantador em sua abrangência e divino em sua plenitude. Dele aprendemos que o mesmo Jesus, que deixou este mundo e subiu ao céu na presença de diversas testemunhas, deverá voltar da mesma maneira como eles O viram subir ao céu. Como Ele subiu? Subiu pessoalmente, literalmente, realmente, a mesma Pessoa que tinha acabado de conversar com eles com tanta familiaridade — a mesma Pessoa que eles viram com seus próprios olhos, ouviram com seus ouvidos, tocaram com suas mãos — que comera na presença deles e, "depois de ter padecido, Se apresentou vivo, com muitas e infalíveis provas". Bem, então Ele "há de vir assim como para o céu O vistes ir". 

Aquele que com mãos levantadas, Subiu de um mundo tão cruel, Voltará com bênçãos reservadas, Pra nos levar daqui ao céu. E neste ponto podemos perguntar, já prevendo algo que poderá vir a ser publicado futuramente: Quem viu o bendito Senhor subir? O mundo? Não, nenhum inconverso, nenhum incrédulo jamais teve diante de seus olhos nosso precioso Senhor depois daquele momento quando foi colocado no túmulo. A última visão que o mundo teve de Jesus foi pendurado na cruz, um espetáculo para anjos, homens e demônios. Da próxima vez Ele será visto, assim como acontece com o relâmpago, vindo para executar juízo e pisar, em terrível vingança, o lagar da ira do Deus Todo-poderoso. Que pensamento tremendo! 

Portanto, ninguém, exceto os que são Seus, viu o Salvador subir, do mesmo modo como apenas os Seus, e ninguém mais, O viram a partir do momento de Sua ressurreição. Ele Se revelou — bendito seja o Seu santo nome! — àqueles que eram queridos ao Seu coração. Ele confirmou e confortou, fortaleceu e encorajou suas almas por meio dessas "muitas e infalíveis provas" das quais o narrador inspirado nos fala. Ele os levou até os confins do mundo invisível, o mais longe que os homens poderiam ir ainda no corpo, e ali permitiu que O vissem subindo ao céu e, enquanto contemplavam aquela cena gloriosa, Ele colocou o precioso testemunho bem em seus corações. "Esse Jesus" — o mesmo, não outro, não um estranho, mas o mesmo amoroso, compassivo, gracioso, imutável amigo — "que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir assim como para o céu O vistes ir". Será que um testemunho poderia ser mais claro ou satisfatório? Poderia a prova ser mais evidente ou conclusiva? Como pode qualquer contra-argumento se sustentar ou ser levantada qualquer objeção? Ou aqueles dois homens em vestes brancas eram testemunhas falsas, ou nosso Jesus voltará exatamente do modo como partiu. Não há meio-termo entre estas duas conclusões. 

Lemos nas Escrituras que "pela boca de duas ou três testemunhas toda a palavra seja confirmada", portanto pela boca de dois mensageiros celestiais — dois arautos vindos da região de luz e verdade — temos a firme palavra de que nosso Senhor Jesus Cristo voltará em Sua forma corpórea atual, para ser visto antes de todos pelos Seus, à parte de todos os outros, na santa intimidade e profundo recato que caracterizou Sua partida deste mundo. Tudo isso, bendito seja Deus, está incluído nestas duas pequenas palavras: "assim como". Não podemos tentar, em um texto breve como este, apresentar todas as provas que podem ser encontradas nas páginas do Novo Testamento. 

Apresentamos uma dos Evangelhos e uma de Atos, e agora gostaríamos de pedir ao leitor que abrisse conosco as Epístolas. Vamos tomar como exemplo a Primeira Epístola aos Tessalonicenses. Escolhemos esta Epístola porque é reconhecida como a mais antiga dentre os escritos de Paulo, e também porque foi escrita para um grupo de convertidos muito novos. Esta última observação é importante, já que às vezes ouvimos afirmações de que a verdade da vinda do Senhor não deve ser apresentada a novos convertidos. Fica evidente que o apóstolo Paulo não a considerava imprópria para novos convertidos pelo fato de que, dentre todas as epístolas que escreveu, nenhuma fala tanto da vinda do Senhor quanto a que foi escrita para os recém-convertidos tessalonicenses. 

A verdade é que, quando uma alma é convertida e exposta à plena luz e liberdade do evangelho de Cristo, é divinamente natural que ela aguarde a vinda do Senhor. Esta verdade tão preciosa é parte integral do evangelho. A primeira vinda e a segunda vinda estão ligadas da forma mais bendita pelo elo divino da presença pessoal do Espírito Santo na Igreja. 

Por outro lado, onde quer que a alma não esteja fundamentada na graça, onde quer que paz e liberdade não estejam sendo desfrutadas e onde um evangelho incompleto tiver sido apresentado, se descobrirá que a esperança da vinda do Senhor não é tratada com carinho, pelo simples motivo de que a alma estará, por necessidade, ocupada com a questão de sua própria condição e seus objetivos. Se eu não tenho a certeza de minha salvação — se não sei que tenho vida eterna, que sou filho de Deus — não posso estar esperando pela volta do Senhor. É só quando conhecemos o que Jesus fez por nós em Sua primeira vinda que podemos buscar, com uma santa e viva inteligência, pela Sua segunda vinda. Mas vamos abrir em nossa Epístola. 

Leia as seguintes sentenças do primeiro capítulo: "Porque o nosso evangelho não foi a vós somente em palavras, mas também em poder, e no Espírito Santo, e em muita certeza... De maneira que fostes exemplo para todos os fiéis na Macedônia e Acaia. Porque por vós soou a palavra do Senhor, não somente na Macedônia e Acaia, mas também em todos os lugares a vossa fé para com Deus se espalhou, de tal maneira que já dela não temos necessidade de falar coisa alguma; Porque eles mesmos anunciam de nós qual a entrada que tivemos para convosco, e como dos ídolos vos convertestes a Deus, para servir o Deus vivo e verdadeiro, e esperar dos céus a Seu Filho, a quem ressuscitou dentre os mortos, a saber, Jesus, que nos livra da ira futura" (1 Ts 1:5-10). 

Temos aqui uma bela ilustração do efeito de um evangelho completamente claro, recebido com uma fé simples e sincera. Eles se converteram dos ídolos para servir o Deus vivo e verdadeiro, e esperar pelo Seu Filho. Estavam realmente convertidos à bendita esperança da vinda do Senhor. Aquela era uma parte integral do evangelho que Paulo pregava, e uma parte integral da fé deles. Era real a conversão dos ídolos? Sem dúvida. Era uma realidade servir o Deus vivo? Indubitavelmente. Bem, então era igualmente tão real, tão positivo, tão simples que esperassem pelo Filho de Deus vindo do céu. Se questionarmos a realidade de uma coisa, seremos obrigados a questionar a realidade de todas, já que todas estão ligadas e formam um belo conjunto da verdade cristã, na prática. 

Se você perguntasse a um cristão tessalonicense o quê ele esperava, qual teria sido sua resposta? Será que teria respondido, "estou esperando que o mundo melhore por meio do evangelho que eu próprio recebi" ou "estou esperando pelo momento de minha morte quando irei me encontrar com Jesus"? Não. Sua resposta teria sido simplesmente esta: "Estou esperando pelo Filho de Deus vindo do céu". Esta, e nenhuma outra, é a esperança adequada ao cristão, a esperança adequada à Igreja. Esperar pela melhoria do mundo não é esperança cristã alguma. Se fosse, você poderia igualmente esperar pela melhoria da carne, pois há tanta esperança para a carne como para o mundo. E quanto à questão da morte — que sem dúvida pode ocorrer — ela não é apresentada sequer uma vez como a verdadeira esperança adequada ao cristão. 

E pode-se afirmar, com toda confiança, que não existe sequer uma passagem em todo o Novo Testamento na qual a morte seja citada como a esperança do crente. Por outro lado, a esperança da vinda do Senhor está ligada, da forma mais íntima, a todas as preocupações, questões e relacionamentos da vida, conforme vemos na epístola que temos diante de nós. Assim, ao procurar fazer referência à interessante questão de sua própria ligação pessoal com os amados santos em Tessalônica, o apóstolo diz: "Porque, qual é a nossa esperança, ou gozo, ou coroa de glória? Porventura não o sois vós também diante de nosso Senhor Jesus Cristo em Sua vinda? Na verdade, vós sois a nossa glória e gozo". 

Mais uma vez, ao pensar em seu progresso em santidade e amor, ele acrescenta, "E o Senhor vos aumente, e faça crescer em amor uns para com os outros, e para com todos, como também o fazemos para convosco; para confirmar os vossos corações, para que sejais irrepreensíveis em santidade diante de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo com todos os Seus santos" (1 Ts 3:12-13). 

Finalmente, ao querer confortar o coração de seus irmãos acerca dos que já dormiam, como o apóstolo faz? Acaso ele lhes diz que em breve eles deviam segui-los? Não, isso teria sido bem adequado para os tempos do Antigo Testamento, como diz Davi acerca de sua criança que tinha partido: "Eu irei a ela, porém ela não voltará para mim" (2 Sm 12:23). Todavia não é assim que o Espírito Santo nos instrui em 1 Tessalonicenses, muito pelo contrário. "Não quero, porém, irmãos", diz ele, "que sejais ignorantes acerca dos que já dormem, para que não vos entristeçais, como os demais, que não têm esperança. Porque, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também aos que em Jesus dormem, Deus os tornará a trazer com Ele. Dizemos-vos, pois, isto, pela palavra do Senhor: que nós, os que ficarmos vivos para a vinda do Senhor, não precederemos os que dormem. 

Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor. Portanto, consolai-vos uns aos outros com estas palavras" (1 Ts 4:13-18). 

É praticamente impossível algo ser mais simples, direto e conclusivo do que isto. Os cristãos tessalonicenses, como já assinalamos, se converteram na esperança da volta do Senhor. Foram ensinados a buscar por isso diariamente. Crer que Ele voltaria era algo tão integrado ao seu cristianismo quanto crer que Ele veio e partiu. Por isso eles foram pegos de surpresa quando alguns foram levados a passar pela morte; eles não esperavam por isso e temiam que os que tinham partido pudessem perder o gozo daquele momento tão bem-aventurado e aguardado que era a volta do Senhor. 

Portanto, o apóstolo escreve para corrigir o equívoco e, ao fazê-lo, derrama sobre o tema uma fresca torrente de luz, assegurando-lhes que os mortos em Cristo — o que inclui todos que dormiram ou dormirão, em suma, aqueles dos tempos do Antigo Testamento, bem como aqueles do Novo Testamento — ressuscitarão primeiro, isto é, antes que os vivos sejam transformados, e todos subirão juntos para encontrar seu Senhor que desce. Teremos oportunidade de voltar a esta notável passagem, quando tratarmos de outros aspectos deste glorioso assunto. Nós (tão) somente a citamos aqui como uma das quase inumeráveis provas de que nosso Senhor voltará — pessoal, real e verdadeiramente — e que Sua vinda pessoal é a verdadeira e adequada esperança da Igreja de Deus, coletivamente, e do crente, individualmente. 

Devemos encerrar esta porção lembrando o leitor cristão de que ele jamais poderá se sentar à mesa de seu Senhor sem ser lembrado desta gloriosa esperança, considerando as palavras que brilham nas páginas inspiradas: "Porque todas às vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até..." quando? Até você morrer? Não, mas "até que venha" (1 Co 11:26). 

Quão precioso é isto! A mesa do Senhor permanece entre essas duas maravilhosas épocas, a cruz e o advento — a morte e a glória. O crente pode elevar os olhos acima da mesa e ver os raios de glória iluminando o horizonte. É nosso privilégio, ao nos reunirmos a cada dia do Senhor em torno da mesa do Senhor para anunciar Sua morte, podermos dizer: "Talvez esta seja a última oportunidade de celebrar esta preciosa festa. Ele poderá voltar antes que outro dia do Senhor amanheça sobre nós". Mais uma vez dizemos: Quão precioso é isto!


A DUPLA APLICAÇÃO DO FATO

Confiando ter apresentado o fato da vinda do Senhor de forma completa, devemos agora colocar diante do leitor a dupla aplicação desse fato — sua aplicação em relação ao povo do Senhor, e sua aplicação em relação ao mundo. A primeira é apresentada, no Novo Testamento, como a vinda de Cristo para receber Seu povo para Si; a última é tratada como "o dia do Senhor" — uma expressão usada com frequência também nas Escrituras no Antigo Testamento. Estas coisas nunca são confundidas nas Escrituras, conforme veremos ao nos ocuparmos das várias passagens. Os cristãos as confundem e é por esta razão que encontramos com frequência "a bendita esperança" envolta em densas nuvens e associada, na sua maneira de pensar, com circunstâncias de terror, ira e juízo, coisas que não têm absolutamente coisa alguma a ver com a vinda de Cristo para o Seu povo, mas que estão intimamente ligadas com "o dia do Senhor". 

Portanto, que o leitor cristão tenha bem definido em seu coração, com base na clara autoridade das Sagradas Escrituras, que a grande e específica esperança que deve sempre acalentar é a da vinda de Cristo para o Seu povo. Esta esperança pode se realizar nesta mesma noite. Não há qualquer outra coisa para se esperar, nenhum evento para ocorrer entre as nações, nada para acontecer na história de Israel, nada no governo de Deus neste mundo, nada, em suma, em qualquer que seja a sua forma, para se interpor entre o coração do verdadeiro crente e sua esperança celestial. Cristo pode vir hoje à noite para o Seu povo. Na verdade, não há nada que impeça. 

Ninguém pode dizer quando Ele virá, mas podemos dizer com júbilo que Ele deve vir a qualquer momento. E, bendito seja o Seu nome, quando Ele vier para nós, não será acompanhado das circunstâncias de terror, ira e juízo. Não será com trevas e escuridão e tempestade. Tais coisas acompanharão "o dia do Senhor", como o apóstolo Pedro explica claramente aos Judeus em seu primeiro grande sermão, no dia de Pentecostes, no qual cita as seguintes palavras da solene profecia de Joel: "E mostrarei prodígios no céu, e na terra, sangue e fogo, e colunas de fumaça. O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes..." antes de quê? 

Da vinda do Senhor para o Seu povo? Não, mas antes "que venha o grande e terrível dia do Senhor". Quando nosso Senhor vier para receber o Seu povo para Si nenhum olho O verá, nenhum ouvido ouvirá Sua voz, exceto seu próprio povo amado e redimido. Lembremo-nos das palavras das testemunhas angelicais no primeiro capítulo de Atos. Quem viu o bendito Senhor subindo aos céus? Ninguém além dos que eram Seus. Bem, Ele "há de vir assim como para o céu O vistes ir". Do mesmo modo como foi na ida, assim será na volta, se acatarmos o que dizem as Escrituras. 

Confundir o dia do Senhor com Sua vinda para Sua Igreja é ignorar os mais claros ensinos das Escrituras e privar o crente de sua verdadeira e justa esperança. E aqui talvez não possamos fazer melhor do que chamar a atenção para uma passagem muito importante e interessante na Segunda Epístola de Pedro: "Porque não vos fizemos saber a virtude e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo fábulas artificialmente compostas; mas nós mesmos vimos a Sua majestade. Porquanto Ele recebeu de Deus Pai honra e glória, quando da magnífica glória Lhe foi dirigida a seguinte voz: Este é o meu Filho amado, em Quem Me tenho comprazido. E ouvimos esta voz dirigida do céu, estando nós com Ele no monte santo; e temos, mui firme [ou confirmada], a palavra dos profetas, à qual bem fazeis em estar atentos, como a uma luz que alumia em lugar escuro, até que o dia amanheça, e a estrela da alva apareça em vossos corações" (2 Pe 1:16-19). 

Esta passagem exige a maior atenção do leitor. Ela apresenta, da forma mais clara possível, a diferença entre "a palavra dos profetas" e a esperança peculiar do cristão, a saber, "a estrela da alva". Devemos nos lembrar de que o grande assunto da profecia é o governo de Deus do mundo em conexão com a descendência de Abraão. "Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, estabeleceu os termos dos povos, conforme o número dos filhos de Israel. Porque a porção do Senhor é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança" (Dt 32:8, 9). 

Aqui está, portanto, o escopo e tema da profecia — Israel e as nações. Até uma criança é capaz de entender isto. Se percorrermos os profetas, do início de Isaías ao final de Malaquias, não encontraremos qualquer menção da Igreja de Deus, sua posição, sua porção ou suas perspectivas. Não há dúvida de que a palavra profética é profundamente interessante, e é extremamente útil para o cristão estudá-la, mas ela será útil na medida em que este entender sua própria abrangência e objetivo, além de enxergar a diferença entre ela e a esperança que cabe ao cristão. Podemos afirmar sem medo de errar que é totalmente impossível alguém estudar as profecias do Antigo Testamento corretamente sem enxergar claramente o verdadeiro lugar da Igreja. Não podemos tentar entrar no assunto da Igreja neste breve tratado. 

Trata-se de um assunto que já foi repetidamente abordado e escrutinado em outras publicações, e podemos agora apenas pedir que o leitor pondere e examine a afirmação que deliberadamente fazemos aqui, a saber, que não existe uma única sílaba sobre a Igreja de Deus — o corpo de Cristo — de uma capa a outra do Antigo Testamento. Existem tipos, sombras e ilustrações que, com a plena luz que agora temos do Novo Testamento, podemos ver, entender e apreciar. Mas não teria sido possível a qualquer crente do Antigo Testamento enxergar o grande mistério de Cristo e da Igreja, principalmente por isto não ter sido então revelado. 

O apóstolo inspirado nos diz expressamente que é algo que estava "oculto", não nas Escrituras do Antigo Testamento, mas "em Deus", conforme lemos em Efésios 3:9, "E demonstrar a todos qual seja a dispensação do mistério, que desde os séculos esteve oculto em Deus, que tudo criou por meio de Jesus Cristo". Do mesmo modo, em Colossenses lemos do "mistério que esteve oculto desde todos os séculos, e em todas as gerações, e que agora foi manifesto aos seus santos" (Cl 1:26). 

Estas duas passagens deixam fora de qualquer questão a veracidade de nossa afirmação para aqueles que tiverem o desejo de serem governados tão somente pela autoridade das Sagradas Escrituras. Elas nos ensinam que o grande mistério — Cristo e a Igreja — não é para ser encontrado no Antigo Testamento. Onde é que temos, no Antigo Testamento, qualquer menção de Judeus e Gentios formando um só corpo e sendo unidos pelo Espírito Santo a uma Cabeça viva no Céu? Como tal coisa poderia ser possível enquanto a "parede de separação que estava no meio" permanecesse como uma barreira intransponível entre circuncisos e incircuncisos? 

Se alguém precisasse citar uma característica especial da antiga dispensação, mencionaria logo "a rígida separação entre judeus e gentios". Por outro lado, se lhe fosse solicitado que mencionasse uma característica especial da Igreja, ou do cristianismo, ele imediatamente responderia: "A união íntima de judeus e gentios em um só corpo". Em suma, as duas condições estão em claro contraste e era totalmente impossível que ambas pudessem ser válidas ao mesmo tempo. Assim, enquanto a parede de separação permanecesse, a verdade da Igreja não poderia ter sido revelada. Mas após a morte de Cristo ter derrubado essa parede, o Espírito Santo desceu do Céu para formar um corpo e uni-lo, por Sua presença e habitação, à Cabeça ressuscitada e glorificada nos Céus. Tal é o grande mistério de Cristo e da Igreja, para a qual não poderia existir uma base que fosse menos do que uma redenção consumada. 

Pedimos agora ao leitor que examine este assunto por si mesmo. Busque nas Escrituras para ver se estas coisas são realmente assim. Esta é a única maneira de se chegar à verdade. Devemos deixar de lado todos nossos pensamentos e argumentos, nossos preconceitos e preferências, e abordarmos as Sagradas Escrituras como uma criancinha. É assim que aprenderemos a vontade de Deus sobre este assunto tão precioso e interessante. Descobriremos que a Igreja de Deus, o corpo de Cristo, não existiu de fato até após a ressurreição e ascensão de Cristo e a consequente descida do Espírito Santo no dia de Pentecostes. Além disso, descobriremos que a plena e gloriosa doutrina da Igreja não foi apresentada até os dias do apóstolo Paulo. (Veja Rm 16:25, 26; Ef 1-3; Cl 1:25-29). 

Finalmente, veremos que as verdadeiras e inequívocas fronteiras da história terrena da Igreja são o Pentecostes (At 2) e o arrebatamento, ou o traslado dos santos para o céu (1 Ts 4:13-17). Chegamos, portanto, à posição da qual podemos ter uma visão da esperança que é pertence à Igreja, e essa esperança é, com toda certeza, "a resplandecente estrela da manhã". 

A respeito desta esperança os profetas do Antigo Testamento não emitiram sequer uma sílaba. Eles falam de forma ampla e clara do "dia do Senhor" — um dia de juízo sobre o mundo e suas práticas (veja Is 2:12-22 e referências) —, todavia o "dia do Senhor", com todas as circunstâncias de ira, juízo e terror que lhe são peculiares nunca deve ser confundido com Sua vinda para o Seu povo. Quando nosso bendito Senhor vier para o Seu povo não haverá coisa alguma de terrível. Ele virá em toda a doçura e ternura de Seu amor para receber os Seu povo amado e redimido para Si. Ele virá terminar a preciosa história de Sua graça. "Aparecerá (ophthesetai) segunda vez, sem pecado [isto é, à parte de qualquer questão relacionada ao pecado], aos que o esperam para salvação" (Hb 9).* 

Ele virá como noivo para receber a noiva; e quando assim vier, ninguém além dos que são Seus ouvirão Sua voz ou verão Sua face. Se Ele viesse nesta mesma noite para o Seu povo — e pelo que sabemos Ele pode vir — se a voz do arcanjo e a trombeta de Deus forem ouvidas esta noite, então todos os mortos em Cristo — todos os que foram colocados a dormir por Jesus — todos os santos de Deus, tanto aqueles dos tempos do Antigo quanto do Novo Testamento, que dormem em nossos cemitérios e sepulcros, ou nas profundezas do oceano, todos ressuscitariam de seu sono temporário. Todos os santos que estivessem vivos seriam transformados num momento, e todos seriam arrebatados para encontrar seu Senhor nos ares, e voltar com Ele para a casa do Pai. (Jo 14:3; 1 Ts 4:16, 17; 1 Co 15:51-52). 

[* A expressão "que O esperam para salvação" refere-se a todos os crentes. Não se refere, como alguns poderiam supor, apenas àqueles que detêm a verdade da segunda vinda do Senhor. Isso tornaria nosso lugar com Cristo em Sua vinda dependente de conhecimento, ao invés de depender de nossa união com Ele pela presença e poder do Espírito Santo. O Espírito de Deus, na passagem acima, assegura da forma mais graciosa que todo o povo de Deus espera, de uma maneira ou outra, pelo precioso Salvador, e isso é o que realmente acontece. As pessoas podem não enxergar todos os detalhes. Elas podem não desfrutar de igual clareza de opinião ou profundidade e plenitude de compreensão, mas, com toda certeza, elas ficariam contentes de, a qualquer momento, poderem ver Aquele que as amou e Se entregou a Si mesmo por elas.] 

É isto que significa o arrebatamento ou retirada dos santos, e não tem nada a ver diretamente com Israel ou com as nações. Trata-se da esperança distinta e única da Igreja, e não existe sequer uma pista disso em todo o Antigo Testamento. 

Se alguém afirmar que existe, que apresente. Se existir, não terá dificuldade para mostrar. Nós declaramos, solene e deliberadamente, que não existe. Pois para tudo o que diz respeito à Igreja — sua posição, sua vocação, sua porção, suas expectativas — devemos nos dirigir às páginas do Novo Testamento e, dentre aquelas páginas, em especial às Epístolas de Paulo. Confundir "a palavra profética" com a esperança da Igreja é causar dano à verdade de Deus e iludir as almas do Seu povo. É verdade que o inimigo tem tido êxito neste sentido em toda a extensão da Igreja professa. 

E é por isso que tão poucos cristãos têm ideias realmente bíblicas sobre a vinda de seu Senhor. A maioria perscruta a profecia em busca da esperança da Igreja, confundindo "o Sol de justiça" com a "Estrela da manhã", misturando a vinda de Cristo para o Seu povo com Sua vinda com o Seu povo e considerando a Sua "vinda" ou o estar com Ele como algo idêntico à Sua "aparição" ou "manifestação".

* [* N. do T.: Em algumas versões da Bíblia em português é usada indistintamente a palavra "vinda" em ambas as situações. Na versão em inglês, à qual o autor se refere, são utilizadas palavras como "coming" para o primeiro caso e "appearing" ou "manifestation" para o segundo caso.] 

Isso tudo é um erro dos mais sérios, para o qual queremos alertar nossos leitores. Quando Cristo vier com o Seu povo "todo olho O verá". Quando Ele Se manifestar, os Seus também serão manifestos com Ele. "Quando Cristo, que é a nossa vida, Se manifestar, então também vós vos manifestareis com Ele em glória" (Cl 3:4). Quando Cristo vier exercer juízo, os Seus santos virão com Ele. "Eis que é vindo o Senhor com milhares de Seus santos; para fazer juízo contra todos" (Jd 14, 15). 

O mesmo é encontrado em Apocalipse 19, onde Aquele que cavalga o cavalo branco é seguido pelos exércitos nos céus em cavalos brancos, vestidos de linho fino, branco e puro. Esses exércitos não são anjos, mas santos, pois não lemos de anjos vestidos de linho branco, o que é uma clara expressão, no próprio capítulo, das "justiças dos santos" (versículo 8). Portanto, é por demais evidente que para os santos estarem acompanhando Seu Senhor quando Ele vier em juízo, devem estar com Ele antes disso. O evento de sua subida para estar com Ele não é apresentado no livro do Apocalipse, a menos que esteja subentendido — como não temos dúvida de que está — no arrebatamento da criança no capítulo 12. 

A criança é, com certeza, Cristo, e já que Cristo e o Seu povo estão indissoluvelmente unidos, o Seu povo encontra-se assim completamente identificado com Ele, bendito seja para sempre Seu santo e precioso nome! Todavia, fica claro que não faz parte do escopo do livro de Apocalipse apresentar-nos a vinda de Cristo para o Seu povo, o arrebatamento deste para encontrá-Lo nos ares, ou seu retorno para a casa do Pai. Estes benditos eventos ou fatos devem ser procurados em outras passagens como, por exemplo, João 14:3, 1 Coríntios 15:23, 51, 52 e 1 Tessalonicenses 4:14-17. 

Que o leitor pondere nestas três passagens; que possa absorver, no íntimo de sua alma, o seu ensino claro e precioso. Não há coisa alguma difícil acerca delas, não há qualquer obscuridade, névoa ou incerteza. Um bebê em Cristo pode entendê-las. Elas apresentam da forma mais clara e simples possível a verdadeira esperança do cristão, a qual, repetimos com ênfase e insistimos com o leitor como sendo a instrução direta e positiva das Sagradas Escrituras, é a vinda de Cristo para receber para Si mesmo o Seu povo — todos os que Lhe pertencem. Ele virá para levá-los de volta à casa de Seu Pai, para que estejam ali Consigo enquanto Deus executa Seus procedimentos governamentais para com Israel e as nações, preparando, por meio de Seus atos judiciais, o caminho para a revelação do Seu Primogênito ao mundo. 

Então, se alguém perguntar a razão de não encontrarmos a vinda de Cristo para os Seus no livro de Apocalipse, a resposta é que esse livro é principalmente um livro de juízo — um livro governamental e judicial, pelo menos do capítulo 1 ao 20. É por esta razão que até a Igreja ser apresentada ali ela está sob juízo. 

Nos capítulos 2 e 3 não vemos a Igreja como o corpo ou a noiva de Cristo, mas como uma testemunha responsável na terra, cuja condição está sendo cuidadosamente examinada e rigidamente julgada por Aquele que anda em meio aos candeeiros. Portanto, não estaria de acordo com o caráter ou objetivo do livro de Apocalipse apresentar, de forma direta, o arrebatamento dos santos. Ele nos mostra a Igreja na terra ocupando um lugar de responsabilidade. Isto aparece, em Apocalipse 2 e 3, como "as coisas que são". Mas dali até o capítulo 19 de Apocalipse não há uma sílaba sequer sobre a Igreja na terra. O que fica bem claro é que a Igreja não estará na terra durante aquele solene período. 

Ela estará com sua Cabeça e Senhor no divino abrigo da casa do Pai. Os redimidos são vistos no céu, nos capítulos 4 e 5, como os vinte e quatro anciãos coroados. Eles estarão ali, bendito seja Deus, enquanto os selos forem abertos, as trombetas estiverem soando e as taças forem derramadas. Pensar na Igreja como estando no mundo em Apocalipse 6-8, colocá-la em meio aos juízos apocalípticos, fazê-la passar pela "grande tribulação" ou sujeitá-la à "hora da tentação que há de vir sobre todo o mundo para tentar os que habitam na terra", seria o mesmo que falsificar sua posição, roubar dela seus direitos garantidos e contradizer a clara e positiva promessa de seu Senhor.* 

[* Em uma publicação futura teremos oportunidade de mostrar que, após a Igreja ter sido removida para o céu, o Espírito de Deus irá agir tanto entre os judeus como entre os gentios. Veja Apocalipse 7.] 

Não, de modo algum, amado leitor cristão; jamais permita que homem algum o engane, por quaisquer que sejam os meios. A Igreja é vista na terra em Apocalipse 2 e 3. Ela é vista no céu, junto com os santos do Antigo Testamento, em Apocalipse 4 e 5. O livro de Apocalipse não nos diz como ela chegou ali, mas nós a vemos ali em elevada comunhão e santa adoração. 

Depois, em Apocalipse 19, Aquele que cavalga o cavalo branco desce, com os Seus santos, para exercer juízo sobre a besta e o falso profeta — para vencer todo inimigo e todo o mal, e reinar sobre toda a terra pelo bendito período de mil anos. Tal é o claro ensinamento do Novo Testamento para o qual sinceramente chamamos a atenção de nossos leitores. E ninguém suponha que, ao ensinarmos assim, ao enfatizarmos que a Igreja não estará na "grande tribulação" e não passará pela "hora da tentação", nosso objetivo seja apresentar uma senda fácil para os cristãos. Não se trata disso. O fato é que a condição real e normal da Igreja neste mundo, e, por conseguinte do cristão individualmente, é de tribulação. Assim diz nosso Senhor: "no mundo tereis aflições". E "também nos gloriamos nas tribulações". Portanto, não se trata de uma questão de se evitar aquilo que já é a porção determinada para nós neste mundo, se tão somente formos fiéis a Cristo. 

Mas é certo que toda a verdade da posição da Igreja e de sua expectativa está envolvida nesta questão, e esta é a razão de insistirmos tanto para que nossos leitores atentem a isto em oração. O grande objetivo do inimigo é arrastar a Igreja de Deus para um nível terreno, desviar totalmente os cristãos da esperança que lhes foi divinamente designada, levá-los a confundir as coisas que Deus diferenciou, ocupá-los com as coisas terrenas, fazendo com que misturem de tal maneira a vinda de Cristo para o Seu povo com Sua aparição em juízo para o mundo, que fiquem incapazes de cultivar aquelas afeições nupciais e as aspirações celestiais que lhes pertencem por serem membros do corpo de Cristo. 

O inimigo de bom grado fará com que fiquem procurando por diversos eventos terrenos que possam separá-los da esperança que lhes cabe, a fim de não poderem viver — como Deus gostaria que pudessem — numa premente expectativa, com um desejo ardente pelo surgimento da "resplandecente Estrela da Manhã". O inimigo sabe muito bem o que o aguarda, e certamente não devemos ignorar sua astúcia, mas nos dedicarmos ao estudo da Palavra de Deus, aprendendo assim, como certamente aprenderemos, a dupla aplicação do glorioso fato da vinda do Senhor.


"A VINDA" E "O DIA"

Pediremos agora ao leitor que abra conosco as duas Epístolas aos Tessalonicenses. Como já dissemos, esses cristãos se converteram à bendita esperança da volta do Senhor. Eles foram ensinados a esperar por Ele dia após dia. Não se tratava meramente da doutrina do advento recebida e guardada na mente, mas de uma Pessoa divina que era continuamente aguardada por corações que haviam aprendido a amá-La e a esperar por Sua vinda. Porém, como podemos facilmente imaginar, os cristãos tessalonicenses ignoravam muitas coisas conectadas a essa bendita esperança. O apóstolo tinha sido privado deles "por um momento de tempo, de vista, mas não do coração". 

Não lhe fora permitido permanecer tempo suficiente com eles para instruí-los nos detalhes do assunto relacionado à esperança que tinham. Eles sabiam que Jesus estava para voltar — a mesma bendita Pessoa que graciosamente os livrara da ira vindoura. Mas eles ainda estavam totalmente ignorantes quanto a qualquer distinção entre Sua vinda para o Seu povo e Sua vinda com o Seu povo. 

Por isso, como era de se esperar, acabaram caindo em vários erros e enganos. É impressionante o quão rápido a mente humana divaga para a mais grosseira e selvagem confusão e erro. Precisamos ser guardados de todos os lados pela pura, sólida e reparadora verdade de Deus. Devemos ter nossa alma perfeitamente equilibrada pela revelação divina, ou certamente mergulharemos em toda sorte de noções falsas e tolas. Por esta razão alguns dos tessalonicenses conceberam a ideia de abandonar suas obrigações. 

Pararam de trabalhar com as próprias mãos e ficaram ociosos. Um grande erro. Ainda que estivéssemos perfeitamente seguros de que nosso Senhor poderia vir hoje à noite, não haveria razão para deixarmos de cumprir, fiel e diligentemente, nossa quota diária de deveres, e fazer tudo o que nos foi confiado na esfera em que Sua boa mão nos colocou. Na verdade, o próprio fato de esperarmos por nosso Mestre iria fortalecer nosso desejo de fazer tudo o que precisasse ser feito até o exato momento de Sua volta, de modo que nem uma única responsabilidade fosse negligenciada. A esperança da iminente volta do Senhor, quando mantida em poder na alma, é imensamente santificadora, purificadora e retificadora em sua influência na vida, conduta e caráter do cristão. Todavia sabemos que até a mais gloriosa verdade pode ser armazenada na esfera da razão e petulantemente confessada com os lábios, enquanto o coração, a vida, o andar, a conduta e o caráter permanecem totalmente alheios à sua influência. Mas nos é expressamente ensinado pelo inspirado apóstolo João que "qualquer que nEle tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também Ele é puro" (1 Jo 3:3). 

E, certamente, essa "purificação" envolve tudo aquilo que diz respeito à nossa vida prática do dia-a-dia. Porém, existia outro grave erro no qual aqueles queridos tessalonicenses caíram, e de onde o bendito apóstolo, como um fiel e verdadeiro pastor, procurou resgatá-los. Eles achavam que seus amigos cristãos que já tinham partido não participariam do gozo da volta do Senhor. Temiam que eles deixassem de participar daquele momento tão bendito e almejado. Bem, apesar de ser verdade que o próprio erro demonstrava quão intensamente aqueles cristãos pensavam em sua bendita esperança, ainda assim era um erro e precisava ser corrigido. 

Mas vamos reparar com cuidado na correção: "Não quero, porém, irmãos, que sejais ignorantes acerca dos que já dormem, para que não vos entristeçais, como os demais, que não têm esperança. Porque, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também aos que em Jesus dormem [ou que Jesus fez dormir], Deus os tornará a trazer com Ele". Repare nisto. Ele não procura confortar aqueles pesarosos amigos assegurando que eles iriam, não muito tempo depois, seguir os que partiram. Muito pelo contrário. Ele lhes assegura que Jesus traria Consigo os que partiram. Trata-se de algo claro e distinto, além de estar fundamentado no grande fato de que "Jesus morreu por nós e ressuscitou". 

O apóstolo, porém, não para aqui, mas segue derramando uma nova luz sobre a compreensão de seus queridos filhos na fé. 

"Dizemos-vos, pois, isto, pela palavra do Senhor: que nós, os que ficarmos vivos para a vinda do Senhor, não precederemos os que dormem. Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor. Portanto, consolai-vos uns aos outros com estas palavras". 

Portanto, temos diante de nós aquilo que comumente chamamos de arrebatamento dos santos, um tema dos mais gloriosos, emocionantes e cativantes, e certamente a mais brilhante esperança da Igreja de Deus e do crente individualmente. O mesmo Senhor descerá do Céu com uma convocação dirigida apenas aos ouvidos e ao coração dos que Lhe pertencem. Nenhum ouvido incircunciso ouvirá, nenhum coração não renovado será tocado por essa voz celestial, por essa convocação da divina trombeta. Todos os mortos em Cristo — incluindo, conforme cremos, os santos do Antigo Testamento, bem como aqueles do Novo Testamento que tiverem partido na fé de Cristo — ouvirão o bendito som e sairão dos lugares onde dormem. Todos os santos vivos escutarão e serão transformados num momento. E então, oh! que mudança! 

O pobre e gasto tabernáculo de barro será substituído por um corpo glorificado, à semelhança do corpo de Jesus. Observe aquela silhueta arqueada e atrofiada, aquele corpo arruinado pela dor e exaurido pelos anos de sofrimento pungente. É o corpo de um santo. Quão humilhante é vê-lo assim! Sim, mas espere um pouco. Basta apenas trombeta soar e, em um instante, aquela estrutura pobre e decadente será transformada e feita semelhante ao corpo glorificado do Senhor que virá. E ali, naquele sanatório para doentes mentais, está um pobre paciente. Ele está ali há anos. É um santo de Deus. 

Quão misterioso é isso! É verdade, não podemos compreender tal mistério, está além do estreito alcance de nossa compreensão. Mas assim é, aquele pobre paciente é um santo de Deus e herdeiro da glória. Ele também ouvirá a voz do arcanjo e a trombeta de Deus, e deixará sua enfermidade para trás para sempre, ao subir para o céu, em seu corpo glorificado, para encontrar o Seu Senhor que vem. Oh! Que momento radiante! Quantos leitos de enfermos ficarão vagos então! 

Que mudanças maravilhosas acontecerão! Como o coração é cativado por tal pensamento e anseia cantar, em coro, o belo hino: Cristo, o Senhor, sim, voltará, Ninguém O aguardará em vão: Então Sua glória mostrará: Com Ele os santos estarão. 

Quando o arcanjo a voz soar, Os que já dormem ouvirão, E, ressurretos, vão cantar Louvores, em adoração. "Este é o nosso Redentor!" As hostes todas clamarão: "A Ele seja o louvor e universal adoração!" Amém e amém! Quão glorioso pensarmos nos milhões de ressuscitados! Quão maravilhoso estar entre eles! Quão preciosa esperança será ver aquela bendita Pessoa que nos amou e Se entregou por nós! Tal é a esperança do cristão, uma esperança acerca da qual não há uma única menção de uma capa a outra do Antigo Testamento. "A palavra profética" é de suprema importância. 

Fazemos bem em atentar para ela. Trata-se de uma inexprimível misericórdia para aqueles que estão em trevas poderem contar com uma luz que alumia em lugar escuro. Mas é bom que o cristão tenha em mente que seu desejo é ter "a estrela da alva aparecendo em seus corações"; em outras palavras, ter todo o seu coração governado pela esperança de ver a Jesus como a refulgente Estrela da Manhã. 

Quando o coração está assim cheio e guiado pela esperança que é própria do cristão, então os olhos podem perscrutar inteligentemente o mapa profético: podem se ocupar de todo o campo da profecia do modo como nosso Deus a abriu graciosamente diante de nós, e encontrar interesse e proveito em cada página e em cada linha. Mas, por outro lado, podemos estar certos de que o homem que busca pela Igreja ou sua esperança na profecia estará olhando na direção errada. Encontrará ali "o judeu" e "o gentio", mas não "a Igreja de Deus". 

Confiamos sinceramente que nenhum de nossos leitores deixará de se apoderar deste fato — um fato que, podemos dizer com total segurança, é da maior importância. Mas é provável que alguém pergunte: "Para quê serve, então, a profecia? Se for verdade que não podemos encontrar nada sobre a Igreja na página profética, que utilidade teria ela para os cristãos? Por que razão nos teria sido dito que atentássemos para ela, se ela não nos diz respeito?" Redarguimos, perguntando: Será que não existe algo de valor para nós além daquilo que especificamente nos diz respeito? Será que não devemos nos interessar por algo a menos que sejamos nós o seu tema principal? Será que é de pouca importância para nós ter os conselhos, propósitos e planos de Deus revelados diante de nossos olhos? Acaso damos pouca importância ao imenso favor de ter os pensamentos de Deus comunicados a nós em Sua santa Palavra profética? 

Com certeza não foi assim que Abraão tratou as comunicações divinas que lhe foram feitas em Gênesis 18: "Ocultarei Eu a Abraão, o que faço?" E o que era aquilo? Dizia respeito especificamente a Abraão? De modo algum. Dizia respeito a Sodoma e cidades vizinhas, onde Abraão nada possuía. Mas acaso isso o impedia de apreciar aquilo como um favor especial com o qual estava sendo honrado, como depositário de confiança dos pensamentos de Deus? Certamente que não. Podemos seguramente afirmar que o fiel patriarca tinha em alta estima o privilégio que lhe fora conferido. 

E assim deveria ser conosco. Deveríamos estudar a profecia com o maior interesse possível, pelo fato de nos ter sido revelado nela, com divina precisão, o que Deus está para fazer neste mundo com Israel e com as nações. A profecia é a história que Deus escreveu do futuro, e é na proporção que O amamos que iremos nos deliciar em estudar Sua história. Certamente não da forma como alguns sugerem, de que podemos conhecer sua veracidade por meio de seu cumprimento, mas para podermos nos apropriar de toda aquela absoluta e divina certeza quanto ao futuro que a Palavra de Deus pode comunicar. Nada pode ser mais absurdo, no juízo da fé, do que supor que devamos aguardar o cumprimento de uma profecia para saber se ela é verdadeira. 

Que insulto é isto — inconscientemente, sem dúvida — à inigualável revelação de nosso Deus. Mas devemos agora voltar, por alguns instantes, ao solene assunto do "dia do Senhor". Trata-se de um termo que ocorre com frequência nas Escrituras do Antigo Testamento. Não temos a pretensão de citar todas as passagens, mas devemos nos referir a uma ou duas e, a partir delas, o leitor poderá seguir examinando o assunto por si mesmo. 

Em Isaías 2 lemos: "Porque o dia do Senhor dos Exércitos será contra todo o soberbo e altivo, e contra todo o que se exalta, para que seja abatido... E a arrogância do homem será humilhada, e a sua altivez se abaterá, e só o Senhor será exaltado naquele dia. E todos os ídolos desaparecerão totalmente. Então os homens entrarão nas cavernas das rochas, e nas covas da terra, do terror do Senhor, e da glória da Sua majestade, quando Ele Se levantar para assombrar a terra. Naquele dia o homem lançará às toupeiras e aos morcegos os seus ídolos de prata, e os seus ídolos de ouro, que fizeram para diante deles se prostrarem. E entrarão nas fendas das rochas, e nas cavernas das penhas, por causa do terror do Senhor, e da glória da Sua majestade, quando Ele se levantar para abalar terrivelmente a terra". 

O mesmo podemos ver em Joel 2: "Tocai a trombeta em Sião, e clamai em alta voz no Meu santo monte; tremam todos os moradores da terra, porque o dia do Senhor vem, já está perto; dia de trevas e de escuridão; dia de nuvens e densas trevas, como a alva espalhada sobre os montes; povo grande e poderoso, qual nunca houve desde o tempo antigo, nem depois dele haverá pelos anos adiante, de geração em geração... Diante dele tremerá a terra, abalar-se-ão os céus; o sol e a lua se enegrecerão, e as estrelas retirarão o seu resplendor. E o Senhor levantará a Sua voz diante do seu exército; porque muitíssimo grande é o Seu arraial; porque poderoso é, executando a Sua palavra; porque o dia do Senhor é grande e mui terrível, e quem o poderá suportar?" 

Destas e de outras passagens similares aprendemos que "o dia do Senhor" está associado ao pensamento profundamente solene de juízo sobre o mundo: sobre o Israel apóstata, sobre o homem e suas práticas e sobre tudo aquilo que o coração humano valoriza e anseia. Em suma, o dia do Senhor aparece em evidente contraste com o dia do homem. 

Hoje é o homem quem detém a supremacia; então a supremacia será do Senhor. Bem, enquanto é perfeitamente verdade que todo o povo do Senhor pode se regozijar na perspectiva daquele dia que, embora se inicie com juízo sobre o mundo, deverá ser marcado pelo reino universal de justiça, ainda assim devemos nos lembrar de que a esperança peculiar ao cristão não está naquele dia com todos os seus terríveis desdobramentos de juízo, ira e terror. Sua esperança está na vinda ou presença de Jesus, com seus desdobramentos de paz e gozo, amor e glória. 

A Igreja já terá então se encontrado com seu Senhor e voltado com Ele para a casa do Pai antes daquele terrível dia explodir sobre o mundo. Essa será sua bendita porção, quando experimentará a sublime comunhão daquele lar celestial por um período de tempo indefinido antes do início do dia do Senhor. Seus olhos serão gratificados com a visão da "resplandecente Estrela da manhã" muito tempo antes que o "Sol de justiça" se levante, em sua restauradora virtude, sobre a porção piedosa da nação de Israel — o remanescente da descendência de Abraão que teme a Deus. 

Desejamos muito que o leitor cristão possa apreender totalmente esta grande e importante diferença. Sentimo-nos persuadidos de que ela terá um efeito imenso sobre todos os seus pensamentos, perspectivas e esperanças para o futuro. Ela o capacitará a ver, sem que exista qualquer nuvem de impedimento, sua verdadeira perspectiva como cristão. Ela o livrará de toda névoa, incerteza e confusão, além de fazer desaparecer de sua mente todo tipo de sentimento de pavor com que tantos, até mesmo dentre os queridos do Senhor, contemplam o futuro. 

Ela irá ensiná-lo a esperar pelo Salvador — o Noivo bendito, o eterno Amante de sua alma — e não pelos juízos, pelo terror, por eclipses e terremotos, convulsões e revoluções, mantendo seu espírito tranquilo e feliz, na certa e convicta esperança de estar com Jesus antes que chegue aquele grande e terrível dia do Senhor. Veja o quanto o fiel apóstolo trabalhava para encaminhar seus queridos convertidos tessalonicenses a uma clara compreensão da diferença entre "a vinda" e "o dia". "Mas, irmãos, acerca dos tempos e das estações, não necessitais de que se vos escreva; porque vós mesmos sabeis muito bem que o dia do Senhor virá como o ladrão de noite; pois que, quando [eles, não vós] disserem: Há paz e segurança, então lhes sobrevirá repentina destruição, como as dores de parto àquela que está grávida, e de modo nenhum escaparão. 

Mas vós, irmãos, já não estais em trevas, para que aquele dia vos surpreenda como um ladrão; porque todos vós sois filhos da luz e filhos do dia; nós não somos da noite nem das trevas" — O Senhor seja louvado! — "Não durmamos, pois, como os demais, mas vigiemos, e sejamos sóbrios; porque os que dormem, dormem de noite, e os que se embebedam, embebedam-se de noite. Mas nós, que somos do dia, sejamos sóbrios, vestindo-nos da couraça da fé e do amor, e tendo por capacete a esperança da salvação; porque Deus não nos destinou para a ira, mas para a aquisição da salvação, por nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu por nós, para que, quer vigiemos, quer durmamos, vivamos juntamente com Ele. Por isso exortai-vos uns aos outros, e edificai-vos uns aos outros, como também o fazeis" (1 Ts 5:1-11). Temos aqui a distinção estabelecida com inequívoca clareza. O mesmo Senhor descerá para nós como o Noivo. 

O dia do Senhor virá sobre o mundo como um ladrão. Poderia um contraste ser mais evidente? Como alguém pode confundir as duas coisas? Elas são tão distintas quanto duas coisas poderiam ser. Um noivo e um ladrão são certamente coisas diferentes. E igualmente diferentes são a vinda do Senhor para Seu povo que O aguarda e a vinda do Seu dia sobre um mundo embriagado e adormecido. 

Talvez alguns encontrem certa dificuldade no fato de palavras tão solenes quanto as que se seguem serem dirigidas à Igreja em Sardes: "E, se não vigiares, virei sobre ti como um ladrão, e não saberás à que hora sobre ti virei" (Ap 3:3).

Essa dificuldade se desvanecerá quando refletirmos que, no caso de Sardes, o corpo professo é visto como possuindo meramente um nome de que vive, enquanto está morto. Ela afundou ao mesmo nível do mundo e só consegue enxergar as coisas do ponto de vista do mundo. A Igreja fracassou completamente, caiu de sua elevada e santa posição, se encontra sob juízo e não pode, portanto, ser encorajada pela esperança que é própria da Igreja, mas é ameaçada pela terrível maldição destinada ao mundo. Não vemos a Igreja aqui como o corpo ou noiva de Cristo, mas como a testemunha responsável por Deus na terra, o candeeiro de ouro que deveria revelar a divina luz do testemunho neste mundo de trevas, enquanto o seu Senhor está ausente. 

Mas, oh! a Igreja professa afundou ainda mais e se tornou mais sombria até que o próprio mundo. Daí a solene ameaça. A exceção confirma a regra. Vamos continuar com este assunto do modo como é apresentado em 2 Tessalonicenses. Trata-se de um fato cheio do mais rico conforto e consolação para o coração de um verdadeiro crente, que Deus, em Sua maravilhosa graça, sempre transforme o comedor em comida e do forte tire doçura. Ele produz luz das trevas, traz vida da morte e faz com que os refulgentes raios de Sua glória brilhem em meio a mais desastrosa ruína causada pela mão do inimigo. A verdade disto está ilustrada em todas as Escrituras e deveria encher nosso coração de paz e nossa boca de louvor. 

Por isso, os vários erros doutrinários e práticas malignas nas quais foi permitido que os primeiros cristãos caíssem foram neutralizados por Deus e usadas na instrução, direção e real proveito da Igreja para o final de sua história terrena. Assim, por exemplo, o erro dos cristãos tessalonicenses, no que diz respeito aos seus irmãos que haviam partido, serviu de ocasião para derramar tamanho dilúvio de luz divina sobre a vinda do Senhor e sobre o arrebatamento dos santos, que é impossível que qualquer mente simples que se submeta às Escrituras venha a cair em semelhante erro. Eles aguardavam pela vinda do Senhor, e nisto estavam certos. 

Eles O esperavam para estabelecer Seu reino na terra, e nisto, de um modo geral, também estavam certos. Mas eles cometeram um grande erro ao deixarem de fora o lado celestial desta gloriosa esperança. Seu entendimento era insuficiente — sua fé falha. Eles não viram as duas partes, a dupla aplicação do advento de Cristo: descendo nos ares para receber Seu povo para Si, e aparecendo em glória para estabelecer o Seu reino em manifestação de poder. Por isso temiam que seus irmãos que partiram estivessem necessariamente fora da esfera de bênção, do círculo de glória. Tal erro é divinamente corrigido, conforme vimos em 1 Tessalonicenses 4. 

O lado celestial da esperança — a porção que cabe ao cristão — é colocado diante do coração como verdadeiro corretivo para o erro relacionado aos santos que dormiam. Cristo irá reunir todo o Seu povo (e não apenas parte dele) para Si. E se existir qualquer vantagem — qualquer sombra de privilégio nesta questão — ela fica com aquelas mesmas pessoas pelas quais eles lamentavam. Pois "os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro". 

Porém, da Segunda Epístola aos Tessalonicenses aprendemos que aqueles queridos recém-convertidos tinham sido levados a cometer outro grave erro — um erro que não estava relacionado aos mortos, mas aos vivos; um erro que não estava relacionado à vinda do Senhor, mas ao dia do Senhor. 

Se, por um lado, eles temiam que os mortos pudessem não participar do bendito triunfo da vinda, por outro temiam que os vivos já estivessem, naquele exato momento, passando pelos terrores do dia do Senhor. É com este erro que o apóstolo inspirado tem de lidar em sua segunda carta aos crentes tessalonicenses, e não há nada maior que a ternura e sensibilidade de sua abordagem, além da precisão com que faz a correção. 

Os cristãos em Tessalônica passavam por intensa perseguição e tribulação, e fica bem evidente que o inimigo, por meio de falsos mestres, procurava confundir suas mentes levando-os a pensar que "o grande e terrível dia do Senhor" (Jl 2:31) tivesse chegado e que as tribulações pelas quais estavam passando eram consequências daquele dia. Se assim fosse, todo o ensino do apóstolo teria sido provado como falso, pois se havia uma verdade que brilhava com maior fulgor e proeminência em seu ensino era a da associação e identificação dos crentes com Cristo — uma associação tão íntima, uma identificação tão próxima, que seria impossível para Cristo aparecer em glória sem o Seu povo. "Quando Cristo, que é a nossa vida, Se manifestar, então também vós vos manifestareis com Ele em glória" Cl 3:4. 

Mas antes Ele deverá vir, para depois poder trazer "o dia". Além disso, quando o dia do Senhor realmente chegar, não será para atribular o Seu povo; ao contrário, será para atribular os perseguidores deste. É isto que o apóstolo lhes faz lembrar da maneira mais simples e eficaz, logo nas primeiras linhas: "Sempre devemos, irmãos, dar graças a Deus por vós, como é justo, porque a vossa fé cresce muitíssimo e o amor de cada um de vós aumenta de uns para com os outros, de maneira que nós mesmos nos gloriamos de vós nas igrejas de Deus por causa da vossa paciência e fé, e em todas as vossas perseguições e aflições que suportais; prova clara do justo juízo de Deus, para que sejais havidos por dignos do reino de Deus, pelo qual também padeceis; se de fato é justo diante de Deus que dê em paga tribulação aos que vos atribulam, e a vós, que sois atribulados, descanso conosco, quando se manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do Seu poder, como labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus [gentios] e dos que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo [judeus]" 2 Ts 1:6. 

Portanto, não era apenas a posição do cristão que estava envolvida nessa questão, mas até mesmo a glória de Deus — Sua própria justiça. Se era certo que o dia do Senhor tinha trazido tribulação aos cristãos, então não havia verdade na doutrina — na grande e proeminente doutrina do ensino de Paulo — de que Cristo e Seu povo são um, além do que isso acabaria comprometendo a justiça de Deus. 

Em suma, se os cristãos estavam passando por tribulação, seria moralmente impossível que o dia do Senhor tivesse chegado, pois quando chegar será para trazer alívio para os crentes. 

E isto como uma recompensa pública para eles no reino, e não meramente na casa do Pai, o que não é o assunto tratado aqui. A mudança que irá ocorrer será bem clara. A Igreja estará em repouso e os que a atribularam, por sua vez, estarão em tribulação. Enquanto durar o dia do homem a Igreja estará sujeita à tribulação, mas no dia do Senhor tudo isso será invertido. Repare nisto cuidadosamente. Não se trata da questão dos cristãos passarem ou não por dificuldades. Eles são destinados a isto neste mundo, enquanto a impiedade mantiver o domínio. 

Cristo sofreu, e o mesmo deve acontecer também com eles. Todavia, o ponto que queremos frisar para a mente e o coração do cristão é que, quando Cristo vier para estabelecer Seu reino, será totalmente impossível que Seu povo esteja em tribulação. Assim, todo o ensino do inimigo, pelo qual ele procurava inquietar os crentes tessalonicenses, mostrou-se claramente fraudulento. 

O apóstolo leva de roldão o próprio fundamento de toda a trama, usando apenas a afirmação da preciosa verdade de Deus. Esta é a forma divina de libertar as pessoas de seus vãos temores e ideias falsas. Dê a elas a verdade e o erro irá bater em retirada. Deixe derramar a luz da eterna Palavra de Deus e todas as nuvens e névoas de falsa doutrina serão afastadas. Permita-nos, por alguns instantes, examinar um pouco mais o ensino de nosso apóstolo neste texto marcante. Ao fazê-lo veremos com que clareza ele define a diferença entre "a vinda" e "o dia", uma distinção que o leitor faz bem em ponderar. 

"Ora, irmãos, rogamos-vos, pela vinda [ou sobre este fundamento] de nosso Senhor Jesus Cristo, e pela nossa reunião com Ele, que não vos movais facilmente do vosso entendimento, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola, como de nós, como se o dia do Senhor estivesse presente".* 

[* Não temos qualquer pretensão de erudição; somos meros respigadores na tão interessante seara da análise do texto onde outros têm colhido grandes resultados. Não queremos ocupar o pensamento de nossos leitores com argumentos em defesa das passagens apresentadas no texto, mas sentimos que não há qualquer utilidade em apresentar aquilo que acreditamos ser errado. Cremos não haver dúvida quanto à forma correta de ler 2 Tessalonicenses 2, que é como apresentamos: "como se o dia do senhor estivesse presente". A palavra enesteken só pode ser traduzida assim. Ela aparece em Romanos 8:38, onde é traduzida como "o presente". O mesmo acontece em 1 Coríntios 3:22, "o presente"; 1 Coríntios 7:26, "presente necessidade"; Gálatas 1:4, "presente século mau"; Hebreus 9:9, "tempo presente". (N. do. T.: No original inglês ou autor faz uso de uma tradução alternativa para o final do versículo: "como se o dia do Senhor estivesse presente").] 

Portanto, independente da questão das diversas interpretações, basta um momento de reflexão para mostrar ao cristão sincero que o apóstolo não poderia estar querendo ensinar aos tessalonicenses que o dia do Senhor não estava, mesmo naquela época, já perto. As Escrituras nunca podem se contradizer. 

Nenhuma sentença da revelação divina pode vir a colidir com outra. Mas se a forma apresentada na excelente Authorized Version for correta, estaria em direta oposição a Romanos 13:12, onde somos expressa e claramente informados de que o "dia é chegado". 

Que "dia"? O dia do Senhor, com toda certeza, que é sempre o termo utilizado em conexão com nossa responsabilidade individual no andar e no serviço. Podemos assinalar rapidamente que se trata de um ponto de muito interesse e valor prático. Se o leitor se der ao trabalho de examinar as várias passagens que falam do "dia", descobrirá que, de um modo ou de outro, elas fazem referência à questão da obra, serviço ou responsabilidade. Por exemplo: "O qual vos confirmará também até ao fim, para serdes irrepreensíveis no dia [não na vinda] de nosso Senhor Jesus Cristo" (1 Co 1:8). 

Outra vez: "A obra de cada um se manifestará; na verdade, o dia a declarará" (1 Co 3:13). "Para que aproveis as coisas excelentes, para que sejais sinceros, e sem escândalo algum até ao dia de Cristo" (Fp 1:10). "Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia" (2 Tm 4:8). 

De todas estas passagens, e de muitas outras que poderiam ser citadas, aprendemos que "o dia do Senhor" será uma grande ocasião para o ajuste de contas com os trabalhadores, para a avaliação divina do serviço, o esclarecimento de todas as questões envolvendo a responsabilidade pessoal e para a distribuição de recompensas — as "dez cidades" e as "cinco cidades". 

Portanto, onde quer que procuremos, e qualquer que seja a forma como abordemos o assunto, seremos cada vez mais confirmados, na verdade da clara diferença entre a "vinda" de nosso Senhor, ou o estar na Sua presença, e Sua "aparição" ou "o dia". 

A primeira é sempre colocada diante do coração como a bendita e brilhante esperança do crente, que pode se realizar a qualquer momento. A outra é mais voltada para a consciência, de um modo solene e profundo, relacionando-se com toda a vida prática daqueles que são colocados neste mundo para trabalhar e testemunhar no lugar de um Senhor que está ausente. As Escrituras nunca confundem estas coisas, não importa o quanto nós mesmos o façamos. 

Não há uma única sentença, de capa a capa do volume sagrado, que ensine que os crentes não devam estar continuamente esperando pela vinda do Senhor, e zelosos pelo pensamento de que "o dia é chegado". É só o "servo mau" — descrito no discurso de nosso Senhor em Mateus 24 — que diz em seu coração: "O meu senhor tarde virá"; e ali vemos as terríveis consequências que sempre acabam resultando de se acalentar tal pensamento no coração. Devemos agora retornar por alguns instantes a 2 Tessalonicenses 2, uma passagem das Escrituras que tem causado muita discussão entre os comentaristas e apresentado considerável dificuldade para os estudantes da profecia. Fica bem evidente que os falsos mestres procuravam perturbar os pensamentos dos tessalonicenses, levando-os a acreditar que estavam, já naquela época, cercados pelos terrores do dia do Senhor. Não era assim e nem poderia ser, ensina o apóstolo. 

Antes mesmo de aquele dia começar, seremos todos reunidos para encontrar o Senhor nos ares. Com base (huper) na vinda do Senhor e nossa reunião com Ele, Paulo pediu que não se perturbassem a respeito do dia. Ele já lhes tinha mostrado o lado celestial da vinda do Senhor. Tinha lhes ensinado que eles, como cristãos, pertenciam ao dia; que seu lar, sua porção e esperança, estavam todas elas naquela mesma região de onde o dia haveria de surgir. Portanto, era totalmente impossível que o dia do Senhor pudesse envolver qualquer terror ou tribulação para aqueles que já eram, verdadeiramente e por graça, filhos do dia. Além do mais, mesmo quando o assunto era visto do ponto de vista terreno, os falsos mestres estavam todos enganados. 

"Ninguém de maneira alguma vos engane; porque não será assim [a vinda do dia] sem que antes venha a apostasia, e se manifeste o homem do pecado, o filho da perdição, o qual se opõe, e se levanta contra tudo o que se chama Deus, ou se adora; de sorte que se assentará, como Deus, no templo de Deus, querendo parecer Deus. Não vos lembrais de que estas coisas vos dizia quando ainda estava convosco? E agora vós sabeis o que o detém, para que a seu próprio tempo seja manifestado. 

Porque já o mistério da injustiça opera; somente há um que agora resiste até que do meio seja tirado; e então será revelado o iníquo, a quem o Senhor desfará pelo assopro da Sua boca, e aniquilará pelo esplendor da Sua vinda [pela aparição de Sua presença]; a esse cuja vinda é segundo a eficácia de Satanás, com todo o poder, e sinais e prodígios de mentira, e com todo o engano da injustiça para os que perecem, porque não receberam o amor da verdade para se salvarem" (2 Ts 2:3-10). 

Aqui, portanto, nos é ensinado que antes que chegue o dia do Senhor, o iníquo, o homem do pecado, o filho da perdição deverá ser revelado. O mistério da iniquidade deve atingir seu ápice. O homem deverá se colocar em aberta oposição a Deus, e mais, chegará até a aceitar para si o nome e a adoração devidos a Deus. 

Tudo isso precisa ocorrer neste mundo antes que irrompa em cena o grande e terrível dia do Senhor. Por enquanto há uma barreira, um impedimento à manifestação desse terrível personagem. Aqui não nos é dito que barreira ou impedimento é esse. Deus pode mudar isso de tempos em tempos.* 

Mas aprendemos, da forma mais clara possível no livro do Apocalipse, que antes que o mistério da iniquidade atinja o seu ápice na pessoa do homem do pecado, a Igreja será removida completamente deste cenário. É impossível ler Apocalipse 4 e 5 com a mente espiritual sem ser capaz de enxergar que a Igreja deverá estar no círculo mais interior da glória celestial antes que qualquer selo seja aberto, antes que qualquer trombeta seja soada e qualquer taça seja derramada. Não acreditamos que alguém consiga entender o livro do Apocalipse sem enxergar isto. 

[* Alguns supõem que o impedimento seja do Espírito Santo. Sabemos de outras partes das Escrituras que antes da entrada em cena do iníquo a Igreja estará segura e abençoada em seu lar celestial nas alturas — o lugar preparado para ela. Quão precioso é este pensamento!] 

É provável que voltemos a tratar deste ponto tão interessante oportunamente. Agora podemos apenas incentivar o leitor a estudar o assunto por si mesmo. Pondere em Apocalipse 4 e 5 e peça a Deus para interpretar para sua alma o seu precioso conteúdo. 

Fazendo assim, estamos convencidos de que o leitor aprenderá que os vinte e quatro anciãos coroados representam os santos celestiais, que estarão reunidos, em glória, em torno do Cordeiro, antes que uma única linha da parte profética do livro seja cumprida. Gostaríamos de fazer ao leitor uma pergunta muito simples, uma pergunta que só pode ser corretamente respondida na intimidade da presença de Deus. A pergunta é: O que você busca? Qual é a sua esperança? 

Você espera por determinados eventos que estão para ocorrer nesta terra, como o restabelecimento do Império Romano, o desenvolvimento dos dez reinos, o retorno dos judeus para sua própria terra na Palestina, a reconstrução de Jerusalém, o surgimento do Anticristo, a grande tribulação e, finalmente, os estarrecedores juízos que serão, com toda certeza, um prenúncio do dia do Senhor? 

São estas as coisas que ocupam o horizonte da sua alma? É por elas que você anseia e espera? Se assim for, fique ciente de que você não está sendo governado pela esperança que convém à Igreja. Certamente é verdade que todas estas coisas que mencionamos deverão ocorrer no seu devido tempo, mas nenhuma delas deve ficar entre você e a esperança que lhe convém. Todas elas pertencem à página profética, todas estão registradas na história que Deus escreveu do futuro, mas jamais deveriam lançar uma sombra sequer sobre a brilhante e bendita esperança do cristão. Essa esperança mostra-se em glorioso contraste com o cenário da profecia. E que contraste é este? Sim, voltamos a perguntar, que contraste é este? 

Trata-se da vinda da refulgente Estrela da manhã — a vinda do Senhor Jesus, o bendito Noivo da Igreja. É esta, e nenhuma outra, a verdadeira e correta esperança da Igreja de Deus. "E dar-lhe-ei a Estrela da manhã" (Ap 2:28). "Aí vem o Esposo" (Mt 25). Quando — poderíamos perguntar — a estrela da manhã aparece no mundo natural? Logo antes de raiar o dia. Quem a vê? Aquele que esteve vigiando durante as horas escuras e sombrias da noite. Quão simples, quão prática, quão eficaz essa alusão. A Igreja deve estar vigiando — alegremente desperta — olhando para fora. Oh! 

A Igreja fracassou nisto. Mas isto não é motivo para que o crente, individualmente, não viva na plenitude do poder real da bendita esperança. "E quem ouve, diga: Vem". Trata-se de algo profundamente pessoal. Oh! Que o escritor e o leitor destas linhas possam colocar habitualmente em prática o poder purificador, santificador e motivador desta esperança celestial! Que possamos entender e exibir o poder prático destas palavras do Apóstolo João: "E qualquer que nEle tem esta esperança purifica-se a si mesmo, como também Ele é puro".


AS DUAS RESSURREIÇÕES

Pode ser que alguns de nossos leitores se sintam atemorizados pelo título desta seção. Acostumados, desde a mais tenra idade, a encarar esta grande questão pelo prisma dos padrões definidos pela cristandade para a doutrina e suas confissões de fé, a ideia de duas ressurreições jamais passou por suas mentes. Todavia, as Escrituras falam, nos termos mais claros e inequívocos, de uma "ressurreição da vida" e uma "ressurreição da condenação" — duas ressurreições, distintas em caráter e distintas no tempo. 

E não apenas isto, mas as Escrituras nos informam que pelo menos mil anos passarão entre as duas. Se os homens ensinam de outra maneira — se criam sistemas religiosos e estabelecem credos e confissões de fé contrários ao ensino direto e claro das Sagradas Escrituras — deverão prestar contas disso ao seu Senhor, assim como todos os que se colocam sob a direção desses homens. 

Mas lembre-se, leitor, de que se trata de um dever sagrado, nosso e de vocês, dar ouvidos apenas à autoridade da Palavra de Deus e nos sujeitarmos, em absoluta submissão, aos seus santos ensinamentos. Vamos então, de forma reverente, inquirir o que dizem as Escrituras sobre o assunto indicado no título deste artigo? 

Que o Espírito de Deus nos guie e instrua! Devemos inicialmente citar aquela notável passagem em João 5: "Na verdade, na verdade, vos digo que quem ouve a Minha palavra, e crê nAquele que Me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora, e agora é, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão. Porque, como o Pai tem a vida em Si mesmo, assim deu também ao Filho ter a vida em Si mesmo; e deu-Lhe o poder de exercer o juízo, porque é o Filho do homem. Não vos maravilheis disto; porque vem a hora em que todos os que estão nos sepulcros ouvirão a Sua voz. 

E os que fizeram o bem sairão para a ressurreição da vida; e os que fizeram o mal para a ressurreição da condenação".* 

[* O leitor da versão inglesa precisa saber que em toda a passagem de João 5:22-26 as palavras "juízo", "condenação" e "perdição" aparecem no original como uma mesma palavra, simplesmente "julgamento", de krisis, que significa o processo, não o resultado. É uma pena que a Authorized Version não tenha usado a palavra deste modo em todo o texto. Isto teria tornado o ensino da passagem muito mais claro. 

É com extrema relutância que nos aventuramos a fazer sugestões para nossa inigualável versão inglesa da Bíblia, mas às vezes é absolutamente necessário que isto seja feito para o bem da verdade e de nossos leitores. Quanto à forma como é apresentado o versículo 24, a conclusão é a mesma, quer digamos "condenação" ou "julgamento", uma vez que se há um julgamento seu resultado deve ser uma condenação. Mas por que não foram mais precisos?] 

Portanto, temos indicadas aqui, da forma mais inequívoca, as duas ressurreições. É verdade que nesta passagem elas não estão diferenciadas quanto ao tempo, mas sim quanto ao caráter. Temos uma ressurreição da vida e uma ressurreição da condenação, e nada poderia ser mais distinto do que isto. Não existe um fundamento sequer que permita construir a teoria de uma ressurreição geral. A ressurreição dos crentes será seletiva; ela ocorrerá com base no mesmo princípio e compartilhará do mesmo caráter da ressurreição de nosso bendito e adorável Senhor; será uma ressurreição dentre os mortos. Será um ato de poder divino, fundamentado na redenção completa, através da qual Deus irá intervir a favor de seus santos que dormem e ressuscitá-los de entre os mortos, deixando o restante dos mortos em suas sepulturas por mil anos (Ap 20:5). 

Há uma interessante passagem em Marcos 9 que derrama intensa luz sobre este assunto. Os versículos iniciais contêm o registro da transfiguração e, em seguida, lemos: "E, descendo eles do monte, ordenou-lhes que a ninguém contassem o que tinham visto, até que o Filho do homem ressuscitasse dentre os mortos. E eles retiveram o caso entre si, perguntando uns aos outros que seria aquilo, ressuscitar dentre [ek, dentre] os mortos" (Mc 9:9, 10). 

Os discípulos sentiam que havia algo especial, algo totalmente além da ideia ortodoxa corrente da ressurreição dos mortos, e realmente tinham razão, embora na época não tivessem o entendimento disso. Era algo que naquele momento estava além do seu campo de visão. Vamos abrir em Filipenses 3 e escutar atentamente as aspirações de alguém que conheceu e desfrutou profundamente desta grande doutrina cristã, e afetuosamente guardou no coração esta esperança gloriosa e celestial. "Para conhecê-Lo, e à virtude da Sua ressurreição, e à comunicação de Suas aflições, sendo feito conforme à Sua morte; para ver se de alguma maneira posso chegar à ressurreição dentre os mortos" [exanastasin] (Fp 3:10, 11). 

Basta uma breve reflexão para convencer o leitor de que o apóstolo não está aqui se referindo à grande e ampla verdade da "ressurreição dos mortos", ainda que cada um deva ressuscitar. Mas havia algo específico diante do coração daquele querido servo de Cristo, a saber, "uma ressurreição dentre os mortos" — uma ressurreição seletiva — uma ressurreição que segue o modelo da ressurreição de Cristo. Era esta que ele buscava continuamente. Tratava-se da bendita e radiante esperança que brilhava em sua alma e o animava em meio às tristezas e provas, labores e dificuldades, turbulências e conflitos de sua extraordinária carreira. Mas alguém poderia perguntar: Será que o apóstolo sempre usa esta pequena e peculiar palavra (ek) quando fala de ressurreição? Nem sempre. Abra, por exemplo, em Atos 24:15: "Tendo esperança em Deus, como estes mesmos também esperam, de que há de haver ressurreição de mortos, assim dos justos como dos injustos". Aqui não há qualquer palavra que indique o lado cristão ou celestial do assunto, possivelmente pela simples razão de que o apóstolo estivesse falando àqueles que eram totalmente incapazes de compreender a esperança que cabe ao cristão — mais incapazes até que os discípulos em Marcos 9. 

Como poderia ele fazer confidências na presença de homens como Tértulo, Ananias e Félix? Como poderia falar a eles de sua própria e acalentada esperança específica? Não, ele só poderia se ater à grande e ampla verdade da ressurreição que era comum a todos os judeus ortodoxos. Se tivesse falado de uma "ressurreição dentre os mortos", não poderia ter acrescentado a expressão "como estes mesmos também esperam", pois eles não "esperavam" qualquer coisa do gênero. 

Mas, oh! que contraste entre aquele precioso servo de Cristo, defendendo-se de seus acusadores em Atos 24 e expondo seu coração aos seus amados irmãos em Filipenses 3! A estes ele podia falar da verdadeira esperança cristã na plena luz que a glória de Cristo derrama sobre o assunto. Podia dar vazão aos seus pensamentos, sentimentos e aspirações mais íntimos provenientes de seu imenso e amoroso coração que palpitava pela ressurreição da vida na qual ele ficará satisfeito quando despertar à semelhança de seu bendito Senhor. Mas devemos retornar por alguns instantes à nossa primeira passagem em João 5. 

Talvez o fato de nosso Senhor utilizar a palavra "hora" ao falar das duas classes apresente certa dificuldade para alguns de nossos leitores entenderem a verdade da esperança cristã da ressurreição. Indaga-se como pode existir um período de mil anos entre as duas ressurreições, quando o Senhor nos afirma expressamente que tudo deve ocorrer dentro dos limites de uma hora. A esta questão temos uma resposta dupla. Em primeiro lugar, encontramos nosso Senhor fazendo uso da mesma palavra "hora" no versículo 25, quando fala da grande e gloriosa obra de vivificar os mortos. 

"Em verdade, em verdade vos digo que vem a hora, e agora é, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a ouvirem viverão". Ora, aqui temos uma obra que tem estado em progresso por quase dezenove longos séculos. Durante todo esse tempo, referido aqui como uma "hora", a voz de Jesus, o Filho de Deus, tem sido ouvida chamando almas preciosas da morte para a vida. Se, por conseguinte, no mesmo discurso nosso Senhor usou a palavra "hora" ao falar de um período que já se estende por quase dois mil anos, que dificuldade pode existir em aplicar a palavra a um período de mil anos? Certamente nenhuma, segundo a nossa opinião. Todavia, se ainda assim permanecer qualquer dificuldade, ela deve ser completamente atendida pelo testemunho direto do Espírito Santo em Apocalipse 20, onde lemos: "Mas os outros mortos não reviveram, até que os mil anos se acabaram. 

Esta é a primeira ressurreição. Bem-aventurado e santo aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre estes não tem poder a segunda morte; mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com Ele mil anos" (Ap 20:5, 6). Isto resolve a questão completamente e de uma vez por todas para todos os que desejam ser ensinados exclusivamente pelas Sagradas Escrituras, como todo cristão deveria desejar. Haverá duas ressurreições, a primeira e a segunda, e um período de mil anos entre elas. Da primeira fazem parte todos os santos do Antigo Testamento — citados em Hebreus 12 como espíritos dos justos aperfeiçoados — então a Igreja dos primogênitos e, finalmente, todos os que serão mortos durante a "grande tribulação" e durante todo o período entre o arrebatamento dos santos e a aparição de Cristo em juízo, quando descer sobre a besta e seus exércitos em Apocalipse 19. À última ressurreição, por sua vez, pertencem todos os que morreram em seus pecados, desde os dias de Caim em Gênesis 4 até o último apóstata durante a glória Milenial em Apocalipse 20. Quão solene é tudo isso! 

Quão real! Como domina a alma! Se nosso Senhor viesse hoje à noite, que cena seria desencadeada em todos nossos cemitérios e sepulcros! Que língua, que pena poderia descrever — que coração poderia conceber — as tremendas realidades desse momento? Há milhares de túmulos onde o pó dos mortos em Cristo jaz misturado ao pó dos mortos sem Cristo. Em muitos jazigos familiares pode sem encontrado o pó de ambos. Bem, então quando a voz do arcanjo for ouvida, todos os santos que dormem ressuscitarão de seus túmulos, deixando para trás aqueles que morreram em seus pecados para permanecerem nas trevas e no silêncio do sepulcro por mil anos. Sim, leitor, tal é o testemunho simples e direto da Palavra de Deus. 

É verdade que ele não entra em muitos detalhes singulares e nem procura alimentar algum tipo de imaginação mórbida ou curiosidade inútil. Todavia, esse testemunho estabelece o solene e grave fato de uma primeira e uma segunda ressurreição — uma ressurreição da vida e glória eternas, e uma ressurreição da condenação e miséria eternas. Não existe, de forma alguma, algo como uma ressurreição geral — uma ressurreição comum a todos simultaneamente. 

Devemos abandonar completamente tal ideia, como muitas outras que recebemos e nas quais fomos instruídos desde a mais tenra idade — ideias que cresceram com nosso crescimento e amadureceram com nossa maturidade, até ficarem totalmente incorporadas à nossa constituição mental, moral e religiosa, de tal modo que abandoná-las é como ser desmembrado ou arrancar a carne de nossos ossos. 

Todavia, isto é algo que precisa ser feito, se desejamos realmente crescer no conhecimento da revelação divina. Não existe um obstáculo maior para entrarmos nos pensamentos de Deus do que termos nossa mente cheia com nossas próprias ideias ou com pensamentos de homens. Assim, por exemplo, em referência a este assunto, quase todos nós já professamos, ao menos uma vez na vida, a opinião de que todos ressuscitarão juntos, tanto crentes como incrédulos, e que todos se apresentarão juntos para serem julgados. Todavia, quando nos voltamos como criancinhas para as Escrituras, não há nada mais claro, mais simples, mais explícito do que seu ensino acerca desta questão. Apocalipse 20:5 nos ensina que haverá um intervalo de mil anos entre a ressurreição dos santos e a ressurreição dos ímpios. 

De nada adianta falarmos de uma ressurreição de espíritos. Na verdade, isto é até um grande absurdo, pois considerando que espíritos não podem morrer, também não podem ser ressuscitados. Igualmente absurdo é falar de uma ressurreição de princípios. Não existe tal coisa nas Escrituras. A linguagem é clara como o cristal: "Mas os outros mortos não reviveram, até que os mil anos se acabaram. Esta é a primeira ressurreição" (Ap 20:5). P

or que alguém iria querer desprezar toda a força que tem esta passagem? Por que não se submeter a ela? Por que não se livrar, de uma vez por todas, de todas aquelas velhas ideias que insistimos em acalentar, para recebermos com submissão a Palavra que é tão incisiva? Leitor, não parece claro a você que, se as Escrituras falam de uma primeira ressurreição, é porque não irão todos ressuscitar juntos? 

Por que iriam dizer "bem-aventurado e santo aquele que tem parte na primeira ressurreição" se todos ressuscitassem ao mesmo tempo? Para nós, na verdade, parece impossível que uma mente livre de preconceitos no estudo do Novo Testamento se apegue à teoria de uma ressurreição geral. Trata-se de uma questão relacionada à glória de Cristo, a Cabeça, que Seus membros tivessem uma ressurreição específica — uma ressurreição como foi a Sua — uma ressurreição dentre os mortos. E é exatamente o que terão. "Eis aqui vos digo um mistério: Na verdade, nem todos dormiremos, mas todos seremos transformados; num momento, num abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. 

Porque convém que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade, e que isto que é mortal se revista da imortalidade. E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto que é mortal se revestir da imortalidade, então cumprir-se-á a palavra que está escrita: Tragada foi a morte na vitória. Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória? Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Mas graças a Deus que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, meus amados irmãos, sede firmes e constantes, sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor" (1 Co 15:51-58). 


O JUÍZO 

Existe algo particularmente doloroso em se colidir com tanta frequência com as opiniões comumente aceitas na Igreja professa. Parece presunção querer contradizer, em tantos aspectos, todos os grandes padrões e credos da cristandade. Mas o que fazer? Se realmente fosse apenas uma questão de opinião humana poderia parecer uma pretensão injustificada alguém se colocar em direta oposição à fé arraigada por toda a Igreja professa — uma fé que há séculos exerce sua influência na mente de milhões de pessoas. Mas gostaríamos de continuar insistindo com nossos leitores no fato de que não se trata, de modo algum, de uma questão de opinião humana ou de uma diferença de interpretação entre até mesmo os homens mais capazes. 

Trata-se, na verdade, de uma questão do ensino e autoridade das Sagradas Escrituras. Têm existido, existem e existirão escolas de doutrina, variedades de opiniões e manifestações de ideias, mas o claro dever de todo filho de Deus e de todo servo de Cristo é se submeter, em santa reverência, e dar ouvidos à voz de Deus nas Escrituras. Se fosse meramente uma questão de autoridade humana, sua importância não seria tão grande. 

Todavia, se, por outro lado, a questão for de autoridade divina, então toda discussão é encerrada e nosso lugar — o lugar de todos nós — é nos submetermos e crermos. Assim, na seção anterior fomos guiados a ver que não há nas Escrituras algo como uma ressurreição geral — uma mesma ressurreição de todos simultaneamente. Assim como fizeram os varões de Bereia na antiguidade, cremos que nossos leitores examinaram as Escrituras a este respeito, e que estão agora preparados para nos acompanhar enquanto examinamos a Palavra de Deus quanto à questão do juízo. A grande questão que logo surge é esta: Será que as Escrituras ensinam a doutrina de um juízo geral? Isto é o que professa a cristandade, mas será que as Escrituras ensinam o mesmo? Vejamos. 

Em primeiro lugar, no que diz respeito ao cristão individualmente, e à Igreja de Deus coletivamente, o Novo Testamento apresenta a preciosa verdade de que não existe qualquer juízo. No que diz respeito ao crente, o juízo já aconteceu e a questão está resolvida. A densa nuvem de juízo precipitou-se sobre a cabeça de nosso divino Substituto. Ele bebeu até o fim, em nosso lugar, o cálice da ira e do juízo, e nos transportou para a nova posição de ressurreição, onde o juízo não pode, de maneira alguma, ser aplicado. É tão impossível que um membro do corpo de Cristo venha a passar pelo juízo quanto é impossível que isto aconteça com a própria Cabeça. Esta parece ser uma afirmação muito séria, mas será que é verdadeira? Se for, sua força está em sua glória e valor moral. Para quê, perguntamos, Jesus recebeu o juízo na cruz? Pelo Seu povo. 

Ele foi feito pecado por nós. Ele nos representou ali. Ele tomou o nosso lugar. Ele recebeu tudo o que merecíamos. Nossa condição, em sua totalidade, com tudo o que lhe diz respeito, recebeu o devido tratamento na morte de Cristo e foi tratada ali de uma forma tal que é totalmente impossível que qualquer dúvida a respeito venha sequer a ser levantada. Será que Deus tem alguma coisa a resolver com Cristo, a Cabeça? 

É claro que não. Bem, então Ele não tem coisa alguma a resolver com Seus membros. Tudo foi definitiva e divinamente resolvido e, como prova disso, a Cabeça está coroada com honra e glória e Se assenta hoje à destra da majestade nas alturas. Portanto, supor que os cristãos passarão pelo juízo, quando quer que seja, ou com base no que quer que seja, seja lá pela razão que for, é negar a própria verdade fundamental do cristianismo e contradizer as claras palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, que declarou expressamente, referindo-se a todos os que creem nEle, que não entrarão em juízo ou condenação (Jo 5:24). 

Na verdade, a ideia de cristãos sendo levados a juízo para provar se têm direito ao céu e estão preparados para ele é tão absurda quanto sem base nas Escrituras. Por exemplo, o que pensar de Paulo ou do ladrão arrependido esperando para serem julgados quanto ao seu direito de entrar no céu, depois de ficarem ali por cerca de dois mil anos? Todavia, assim deveria ser se existisse qualquer verdade na teoria de um juízo geral. Se a grande questão de nosso direito ao céu precisar ser resolvida no dia do juízo, então ela claramente não ficou resolvida na cruz; e se não ficou resolvida na cruz, então nós certamente estamos condenados, pois se formos julgados isto deve ser feito em relação às nossas obras, e o único resultado de um julgamento assim é o lago de fogo. 

Todavia, se alguém afirmar que os cristãos passarão pelo juízo apenas para deixar claro que estão limpos por meio da morte de Cristo, isto seria transformar o dia do juízo em uma mera formalidade, algo que só de pensar já causa aversão a qualquer pessoa sensata e piedosa. Mas a verdade é que não há necessidade de se discutir esta questão. Uma sentença apenas das Escrituras é muito melhor do que dez mil dos mais convincentes argumentos humanos. Nosso Senhor Jesus Cristo declarou, nos termos mais claros e enfáticos, que os crentes "não entrarão em condenação [juízo]". 

Isto já basta. O crente foi julgado há mais de mil e oitocentos anos na Pessoa de sua Cabeça, e levá-lo outra vez a juízo seria ignorar completamente a cruz de Cristo no que diz respeito à sua eficácia expiatória e, com certeza, Deus não iria e nem poderia fazer isso. O mais fraco cristão pode afirmar, em triunfo e gratidão: "Naquilo que me diz respeito, tudo o que precisava ser julgado já foi julgado. Toda questão que precisava ser resolvida já foi resolvida. 

O juízo é passado e jamais se repetirá. Sei que minhas obras devem ser provadas e meu serviço avaliado, mas naquilo que diz respeito à minha pessoa, minha posição, meu direito, tudo já está divinamente resolvido. O Homem que Se colocou no meu lugar na cruz está agora no trono, coroado, e a coroa que Ele traz é a prova de que não resta juízo algum para mim. Aguardo pela ressurreição da vida". 

Esta, e nada menos, é a linguagem adequada ao cristão. É simplesmente graças à obra da cruz que o crente pode se sentir e expressar desta maneira. Para o crente, aguardar pelo dia do juízo para resolver a questão de seu destino eterno é desonrar seu Senhor e negar a eficácia de Seu sacrifício expiatório. Ficar em dúvida pode soar como humildade e aparência de piedade, mas devemos descansar assegurados de que todos os que alimentam a dúvida, todos os que vivem em um estado de incerteza, todos aqueles que aguardam pelo dia do juízo para a solução final de suas questões — todos os que assim fazem — estão mais ocupados consigo mesmos do que com Cristo. Ainda não entenderam a aplicação da cruz aos seus pecados e à sua natureza. Estão duvidando da Palavra de Deus e da obra de Cristo, e isto não é cristianismo. 

Não há — nem pode haver — qualquer juízo para aqueles que, abrigados pela cruz, colocaram os pés firmemente em um novo e eterno terreno de ressurreição. Para estes o juízo se foi para sempre, e nada resta senão uma perspectiva de nítida glória e de bênção eterna na presença de Deus e do Cordeiro. 

Todavia, não é de todo improvável que enquanto dizemos isto, o pensamento do leitor esteja voltando a Mateus 25:31-46 como uma passagem que estaria, de forma direta, comprovando a teoria de um juízo geral. Por isso sentimos ser nosso sagrado dever acompanhá-lo por um momento àquela importante e muito solene passagem, enquanto lembramos que nenhuma passagem das Escrituras pode entrar em conflito com outra e, portanto, se lemos em João 5:24 que os crentes não entrarão em juízo, não poderíamos ler em Mateus 25 que eles entrarão. 

Trata-se de um princípio fixo e invulnerável — uma regra geral para a qual não há, e nem pode haver, exceção. Mesmo assim, vamos abrir em Mateus 25. "Quando o Filho do homem vier em Sua glória, e todos os santos anjos com Ele, então se assentará no trono da Sua glória; e todas as nações serão reunidas diante dEle, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas". Ora, é extremamente necessário prestar muita atenção aos termos exatos usados nesta passagem das Escrituras. Devemos evitar toda negligência de pensamento, toda aquela pressa, descuido e imperfeição que tem causado sérios estragos ao ensino desta importante passagem, e lançado tantos dentre o povo do Senhor na mais completa confusão a este respeito. Vejamos, antes de qualquer coisa, quem são as partes levadas a juízo. "Todas as nações serão reunidas diante dEle". 

Isto é muito claro. São nações vivas. Não é uma questão de indivíduos, mas de nações — todos os gentios. Israel não está aqui, pois lemos em Números 23:9 que "este povo habitará só, e entre as nações não será contado". Se Israel fosse incluído nesta cena de juízo, então Mateus 25 estaria em evidente contradição com Números 23, o que está totalmente fora de questão. Israel nunca é contado com os gentios, seja lá qual for o assunto ou a base para isso. Do ponto de vista divino, Israel permanece só. O povo pode, por causa de seus pecados e sob as ações governamentais de Deus, ser disperso entre as nações, mas a Palavra de Deus declara que não será contado com elas. Para nós isto deve ser suficiente. Então, se for verdade que Israel não está incluído no juízo de Mateus 25, então, sem precisarmos avançar um passo sequer, a ideia de aquele ser um juízo geral deve ser abandonada. Não pode ser geral se não estiverem todos incluídos, e Israel nunca é incluído sob o termo "gentios". As Escrituras falam de três classes distintas, a saber, "judeus... gregos [gentios]... Igreja de Deus" (1 Co 10:32), e estas três nunca são confundidas. 

Além disso, devemos assinalar que a Igreja de Deus não está incluída no juízo que aparece em Mateus 25. Tampouco esta afirmação é baseada apenas no fato que já mencionamos, da necessária exclusão da Igreja do juízo, mas também na grande verdade de que a Igreja é tomada das nações, como Pedro declarou no concílio de Jerusalém. "Deus visitou os gentios, para tomar deles um povo para o Seu nome" (At 15:14). Portanto, se a Igreja é tirada das nações, ela não pode ser contada entre elas e, por conseguinte, temos uma evidência adicional contra a teoria de um suposto juízo geral em Mateus 25. O judeu não está ali, a Igreja não está ali e, portanto, a ideia de um juízo geral deve ser abandonada como totalmente infundada. Então quem são os que aparecem no juízo de Mateus 25? A própria passagem fornece a resposta para a mente simples. Ela diz que "todas as nações serão reunidas diante dEle". Claro e preciso. 

Não se trata de um julgamento de indivíduos, mas de nações como tal. Além disso, podemos acrescentar que nenhum dos que são indicados aqui terão experimentado a morte. Esta cena está em claro contraste com a de Apocalipse 20:11-15, na qual não haverá um que não tenha morrido. Em suma, em Mateus 25 temos o juízo dos vivos e em Apocalipse 20 o juízo dos mortos. Ambos são mencionados em 2 Timóteo 4:1: "Conjuro-te, pois, diante de Deus, e do Senhor Jesus Cristo, que há de julgar os vivos e os mortos, na Sua vinda e no Seu reino". Nosso Senhor Jesus Cristo julgará as nações vivas em Sua aparição, e julgará "os mortos, grandes e pequenos" no final de Seu reino Milenial. Mas vamos dar uma olhada, por um instante, no modo como as partes são organizadas no juízo de Mateus 25: "E porá as ovelhas à Sua direita, mas os bodes à esquerda". 

Ora, a crença quase universal da Igreja professa é que as "ovelhas" representam todo o povo de Deus, do início ao fim dos tempos, e os "bodes", por sua vez, representam todos os maus, do primeiro ao último. Todavia, se fosse assim, o que faremos com o terceiro grupo citado aqui como "meus irmãos"? 

O Rei se refere tanto às ovelhas como aos bodes ao falar desta terceira classe. Na verdade, o próprio motivo do juízo é o tratamento dado aos irmãos do Rei. Seria um total absurdo dizer que as ovelhas seriam o próprio grupo que está sendo mencionado. Se fosse assim, a linguagem seria completamente diferente e, em lugar de dizer "em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos", teríamos o Rei dizendo "em verdade vos digo que quando o fizestes uns para com os outros" ou "para convosco". Rogamos uma atenção especial do leitor para este ponto. 

Consideramos que se não existisse qualquer outro argumento e qualquer outra passagem sobre o assunto, bastaria este ponto para provar a falácia da teoria de um juízo geral. É impossível não enxergar estes três grupos na cena, a saber, as "ovelhas", os "bodes" e "meus pequeninos irmãos". 

E se existem três grupos não poderia haver um juízo geral, ainda mais considerando que os "meus pequeninos irmãos" não fazem parte nem do grupo das ovelhas, nem dos bodes. Não, querido leitor, aqui não se trata, de modo algum, de um juízo geral, mas de um julgamento bem específico e parcial. Trata-se de um julgamento das nações vivas, precedendo o início do reino Milenial. As Escrituras nos ensinam que, após a Igreja deixar a terra, surgirá um testemunho para as nações; o evangelho do reino será levado, por mensageiros judeus, por toda a extensão da terra, até para as regiões hoje envoltas pelas trevas do paganismo. As nações que receberem os mensageiros e os tratarem bem ficarão à direita do Rei. Aquelas, ao contrário, que os rejeitarem e os tratarem mal, ficarão à Sua esquerda. Os "meus pequeninos irmãos" são judeus — os irmãos do Messias. O tratamento dado aos judeus é a base sobre a qual as nações eventualmente serão julgadas, e este é outro argumento contra um juízo geral. 

Sabemos bem que todos os que viveram e morreram em rejeição ao evangelho de Cristo terão uma razão a mais para terem tratado mal os irmãos do Rei. 

E, por outro lado, aqueles que se encontrarão ao redor do Cordeiro em glória celestial estarão ali graças a algo muito diferente daquilo que suas obras poderiam proporcionar. Em suma, não existe sequer um detalhe na cena, um fato na história, um ponto na narrativa, que não seja contrário à noção de um juízo geral. E não apenas isto, mas quanto mais estudamos as Escrituras, mais conhecemos o modo de agir de Deus; mais conhecemos Sua natureza, Seu caráter, Seus propósitos, Seus conselhos, Seus pensamentos; mais conhecemos a Cristo, Sua Pessoa, Sua obra, Sua glória; mais conhecemos a Igreja, seu lugar diante de Deus em Cristo, sua plenitude, sua perfeita aceitação em Cristo. 

Quanto mais detalhadamente estudamos as Escrituras — quanto mais profundamente meditamos nela — mais ficamos convencidos de que não existe nela algo como um juízo geral. Quem é que, mesmo sem conhecer coisa alguma de Deus, poderia supor que Ele iria justificar hoje aqueles que são Seus, apenas para levá-los a juízo amanhã — que Ele iria apagar suas transgressões hoje e julgá-los conforme suas obras amanhã? 

Quem é que, mesmo sem conhecer coisa alguma de nosso adorável Senhor e Salvador Jesus Cristo, poderia supor que Ele seria capaz de colocar Sua Igreja, Seu corpo, Sua noiva, diante do trono do juízo junto com aqueles que morreram em seus pecados? Seria possível Ele entrar em juízo contra Seu povo pelas iniquidades e pecados dos quais Ele próprio disse: "Jamais Me lembrarei"? Isto é suficiente. Confiamos totalmente que o leitor agora esteja, de si mesmo, plenamente convencido de que não existe, e nem poderia existir, algo como uma ressurreição geral — ou algo como um juízo geral. 

Não podemos agora, no que diz respeito ao juízo em Apocalipse 20:11-15, ir muito além do que dizer que se trata de uma cena pós Milenial que incluirá todos os ímpios mortos desde os dias de Caim até o último apóstata da glória Milenial. Ali não haverá um sequer que não tenha passado pela morte, alguém cujo nome esteja no livro da vida, que não deva ser julgado por suas próprias obras e que não venha a passar da pavorosa realidade do grande trono branco para os horrores e tormentos eternos do lago que queima com fogo e enxofre. 

Quão horroroso! Quão terrível! Quão pavoroso! Oh, leitor! O que você diz acerca destas coisas? Você é um verdadeiro crente em Jesus? Você está limpo por Seu precioso sangue? Você tem nEle o abrigo contra o juízo vindouro? Se não, deixe-me suplicar a você agora, com toda ternura e sinceridade, que fuja agora mesmo da ira vindoura! Volte-se para Jesus, que está esperando para receber você para Si mesmo, para apresentá-lo a Deus na plenitude do valor de Sua obra expiatória e na plenitude do crédito que tem o Seu nome incomparável.


O REMANESCENTE JUDEU

Mateus 24:1-44 é parte de um dos mais profundos e abrangentes discursos já ouvidos pelo homem — um discurso que inclui, em sua maravilhosa extensão, o destino do remanescente judeu, a história da cristandade e o juízo das nações. Já demos uma olhada neste último assunto. Agora nos resta considerar a questão do remanescente de Israel e a história da cristandade professa, seja ela falsa ou genuína. Vamos ver primeiro o remanescente judeu. 

Para entender Mateus 24:1-44 precisamos olhar do ponto de vista das pessoas às quais o Senhor falava naquele momento. Se tentarmos importar para este discurso a luz que brilha na epístola aos Efésios, acabaremos entregando nossa mente à confusão e perderemos o solene ensinamento da passagem que agora temos diante de nós. Não encontramos aqui coisa alguma acerca da Igreja de Deus, o corpo de Cristo. 

O ensino de nosso Senhor é divinamente perfeito e, portanto, não podemos, sequer por um momento, imaginar que exista na passagem algo de prematuro. Mas seria prematuro introduzir um assunto que, naquele momento, estava oculto em Deus. A grande verdade da Igreja não poderia ser desvendada até que Cristo, o Messias que foi cortado, tivesse ocupado Seu lugar à destra de Deus e enviado o Espírito Santo ao mundo para formar, por meio de Sua presença, o um só corpo composto de judeus e gentios. Nada disso é encontrado em Mateus 24. Estamos ali em terreno totalmente judeu, cercados por circunstâncias e influências judaicas. O cenário e as alusões feitas são todas puramente judaicas. Tentar aplicar a passagem à Igreja seria perder completamente de vista o assunto de nosso Senhor e falsificar a real posição da Igreja de Deus. 

Quanto mais de perto examinarmos as Escrituras, com maior clareza veremos que as pessoas às quais as palavras são dirigidas ocupam uma perspectiva judaica e estão em terreno judeu, não importa se consideramos as pessoas às quais o Senhor Se dirigia, ou aquelas que deverão ocupar exatamente a mesma posição no final, quando a Igreja tiver deixado esta cena de uma vez para sempre. Vamos examinar a passagem. No final de Mateus 23 nosso Senhor resume Seu apelo aos líderes da nação judaica com as seguintes palavras de terrível solenidade: "Enchei vós, pois, a medida de vossos pais. Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação do inferno? 

Portanto, eis que Eu vos envio profetas, sábios e escribas; a uns deles matareis e crucificareis; e a outros deles açoitareis nas vossas sinagogas e os perseguireis de cidade em cidade; para que sobre vós caia todo o sangue justo, que foi derramado sobre a terra, desde o sangue de Abel, o justo, até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que matastes entre o santuário e o altar. Em verdade vos digo que todas estas coisas hão de vir sobre esta geração. Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis Eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste! Eis que a vossa casa vai ficar-vos deserta; porque Eu vos digo que desde agora Me não vereis mais, até que digais: Bendito o que vem em nome do Senhor" (Mt 23:32-39). 

Assim termina o testemunho do Messias para a apóstata nação de Israel. Todo esforço que o amor — até mesmo o amor divino — poderia demonstrar havia sido tentado, e tentado em vão. Profetas tinham sido enviados e apedrejados; mensageiro após mensageiro tinha ido e suplicado, ponderado, avisado e implorado, mas sem resultado. Suas poderosas palavras haviam caído em ouvidos surdos e corações endurecidos. A única recompensa dada a esses mensageiros fora um tratamento vergonhoso, o apedrejamento e a morte. Finalmente o próprio Filho foi enviado, e enviado com esta tocante declaração: "Talvez, vendo-O, seja respeitado". Respeitaram? Ah, não! Quando O viram não havia nEle beleza alguma que os atraísse. A filha de Sião não sentia nada por seu Rei. A vinha estava sob o controle de lavradores ímpios que queriam mantê-la para si mesmos. "Mas, vendo-o os lavradores, arrazoaram entre si, dizendo: Este é o herdeiro; vinde, matemo-lo, para que a herança seja nossa". 

Foi por causa da condição moral de Israel que nosso Senhor disse as palavras excepcionalmente terríveis da passagem acima; e então saiu do templo. Sabemos o quanto ele relutou em fazer isso, pois, bendito seja o Seu nome, sempre que deixa um lugar de misericórdia, ou entra em um lugar de juízo, Ele se move em ritmo lento e cuidadoso. Veja a partida da glória nos capítulos iniciais de Ezequiel. "Então saiu a glória do Senhor de sobre a entrada da casa, e parou sobre os querubins. E os querubins alçaram as suas asas, e se elevaram da terra aos meus olhos, quando saíram; e as rodas os acompanhavam; e cada um parou à entrada da porta oriental da casa do Senhor; e a glória do Deus de Israel estava em cima, sobre eles" (Ez 11:22, 23). 

Assim, de modo lento e calculado, a glória do Deus de Israel sai da casa em Jerusalém. Jeová demorou, foi relutante em partir.* Ele chegara, com amoroso entusiasmo, de alma e coração, para habitar no meio do Seu povo, para encontrar um lar bem no seio de Sua assembleia; mas foi forçado a Se retirar por causa dos seus pecados e iniquidades. De bom grado Ele ficaria, mas era impossível; e mesmo assim Ele provou, do modo como partiu, o quão relutante estava em partir. 

[* Compare esta relutante partida com Sua rápida entrada no tabernáculo em Êxodo 40:34 e no templo em 2 Crônicas 7:1. A habitação tinha acabado de ficar pronta e Ele já descia para ocupá-la, enchendo-a com Sua glória. Ele foi tão rápido em entrar quanto foi lento em partir. E não somente isto, mas antes que o livro de Ezequiel termine, vemos a glória voltando novamente, e "Jeová Shamá" permanece gravado em caracteres eternos sobre as portas da amada cidade. Nada mudou na afeição de Deus. Quem Ele ama, e como ama, Ele ama até o fim. "É o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente".] 

Não foi diferente com o Jeová Messias de Mateus 23. Ouça Suas tocantes palavras: "Quantas vezes quis Eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste!" Eis o profundo segredo: "quis Eu". Assim estava o coração de Deus. "Tu não quiseste". Assim estava o coração de Israel. Como aconteceu com a glória nos dias de Ezequiel, Ele também foi obrigado a Se retirar, mas — bendito seja o Seu nome — não sem antes deixar uma palavra que forma a preciosa base da esperança dos dias brilhantes que ainda virão, quando a glória retornar e a filha de Sião der as boas-vindas ao seu Rei com alegres cânticos: "Bendito o que vem em nome do Senhor". 

Todavia, até que aquele radiante dia amanheça, trevas, desolação e ruína é tudo o que pode ser visto na história de Israel. Aquilo que os líderes procuravam evitar, por meio da rejeição de Cristo, caiu sobre eles como uma dura e terrível realidade. "Virão os romanos, e tirar-nos- ão o nosso lugar e a nação". 

Quão literal e solene foi a forma como isto se cumpriu! Ah, seu lugar e sua nação foram tirados e o significativo ato de Jesus em Mateus 24:1 não passou da promulgação da sentença e da desolação de todo o sistema judaico. Jesus saiu do templo. O caso estava perdido. Tudo deve ser deixado de lado. Um longo período de trevas e tristeza deve tomar conta daquela obcecada nação — um período que deverá culminar naquela "grande tribulação" que deve preceder a hora do livramento final. Mas, como aconteceu nos dias de Ezequiel, havia aqueles que suspiravam e choravam por causa dos pecados e desgraças da nação. Por isso, nos dias de Mateus 24 foi possível encontrar um remanescente de almas fiéis que se juntaram ao Messias rejeitado acalentando a terna esperança da redenção e restauração de Israel. É certo que suas percepções eram bem turvas e seus pensamentos cheios de confusão. 

Todavia, o coração de cada um, como que tocado pela graça divina, batia sincero para com o Messias e estava cheio de esperança quanto ao futuro de Israel. Ora, é da maior importância que o leitor consiga reconhecer e entender o caráter desse remanescente, e saber que é disso que nosso Senhor está tratando em Seu maravilhoso discurso no Monte das Oliveiras. Supor, ainda que por um momento, que as pessoas que ouviam estivessem sobre um fundamento cristão seria exigir que abandonássemos todas as ideias genuínas quanto ao que vem a ser cristianismo, e que ignorássemos um grupo cuja existência é reconhecida ao longo dos Salmos, dos Profetas e em várias partes do Novo Testamento. Havia, e sempre haverá, "um remanescente, segundo a eleição da graça". 

Citar as passagens que revelam a história, as tristezas, as experiências e exercícios desse remanescente exigiria um volume inteiro. Por isso não tentaremos fazê-lo, mas temos grande desejo que o leitor adote a ideia de que esse remanescente fiel é representado pelo grupo de discípulos que se reunia em torno de nosso Senhor no Monte das Oliveiras. Sentimo-nos persuadidos de que, se isto não for enxergado, se perderá o verdadeiro escopo, significado e aplicação deste notável discurso. 

"E, quando Jesus ia saindo do templo, aproximaram-se dEle os Seus discípulos para Lhe mostrarem a estrutura do templo. Jesus, porém, lhes disse: Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada. E, estando assentado no Monte das Oliveiras, chegaram-se a Ele os seus discípulos em particular, dizendo: Dize-nos, quando serão essas coisas, e que sinal haverá da Tua vinda e do fim do mundo?" (ou da era, aionos.) 

Os discípulos estavam, naturalmente, ocupados com questões e expectativas terrenas e judaicas — o templo e suas cercanias. Devemos ter isto em mente se quisermos entender a pergunta que fizeram e a resposta de nosso Senhor. Até ali eles não tinham qualquer ideia além do lado terreno das coisas. Eles buscavam pelo estabelecimento do reino, pela glória do Messias, pelo cumprimento das promessas feitas aos pais. Ainda não tinham se dado conta do importante e solene fato de que o Messias estava para ser "cortado... mas não para Si mesmo" (Dn 9:26). 

É verdade que o bendito Mestre estava, pouco a pouco, procurando preparar suas mentes para este solene evento. Ele os havia avisado verdadeiramente quanto às densas sombras que estavam para se derramar em Seu caminho. Havia dito a eles que o Filho do Homem deveria ser entregue aos gentios para ser ridicularizado, flagelado e crucificado. Mas eles não entendiam o que Ele dizia. Aquilo parecia sombrio, difícil e incompreensível; e seus corações continuavam a se apegar afetuosamente à esperança da bênção e restauração nacional. 

Eles ansiavam por ver a estrela de Jacó em ascensão. Seus pensamentos estavam cheios de expectativa da restauração do reino de Israel. Portanto, nada sabiam — e como poderiam? — daquilo que estava para se desencadear: a rejeição e morte do Messias. Sem dúvida alguma o Senhor havia falado de edificar uma assembleia, mas no que diz respeito à posição e privilégios dessa assembleia, sua vocação, sua posição, suas esperanças, eles não sabiam absolutamente coisa alguma. A ideia de um corpo composto de judeus e gentios, unidos pelo Espírito Santo a uma Cabeça viva e glorificada nos céus, jamais entrara — e como poderia? — em suas cabeças. 

A parede de separação continuava de pé, e um deles — o mais proeminente dentre eles — teria de ser ensinado, muito tempo depois e com muita dificuldade, a aceitar a ideia de até admitir que os gentios entrassem no reino. 

Tudo isso, repetimos, deve ser levado em conta se quisermos ler corretamente a resposta de nosso Senhor à pergunta sobre Sua vinda e o fim dos tempos. Não há sequer uma sílaba sobre a Igreja como tal, do princípio ao fim daquela resposta. Até o versículo 14 Ele vai direto ao final, dando uma rápida ideia dos eventos que devem ocorrer entre as nações. "Acautelai-vos, que ninguém vos engane", diz Ele. "Porque muitos virão em Meu nome, dizendo: Eu sou o Cristo; e enganarão a muitos. E ouvireis de guerras e de rumores de guerras; olhai, não vos assusteis, porque é mister que isso tudo aconteça, mas ainda não é o fim. Porquanto se levantará nação contra nação, e reino contra reino, e haverá fomes, e pestes, e terremotos, em vários lugares. 

Mas todas estas coisas são o princípio de dores. Então vos hão de entregar para serdes atormentados, e matar-vos-ão; e sereis odiados de todas as nações por causa do Meu nome. Nesse tempo muitos serão escandalizados, e trair-se-ão uns aos outros, e uns aos outros se odiarão. E surgirão muitos falsos profetas, e enganarão a muitos. E, por se multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriará. Mas aquele que perseverar até ao fim será salvo. E este evangelho do reino será pregado em todo o mundo, em testemunho a todas as nações, e então virá o fim" (Mt 24:4-14). 

Temos aqui, portanto, um esboço dos mais abrangentes de todo o período a partir do momento que nosso Senhor falava até o tempo do fim. Mas o leitor precisará ter em mente que existe um intervalo não perceptível — um parêntese, uma pausa — nesse período, durante o qual o grande mistério da Igreja é revelado. Este intervalo ou pausa é totalmente deixado de lado neste discurso, principalmente porque ainda não tinha chegado o tempo de seu desenvolvimento. Ele continuava "oculto em Deus" e não poderia ser revelado até que o Messias fosse finalmente rejeitado, cortado da terra e recebido em glória nas alturas. Este discurso, em sua totalidade, teria seu pleno e perfeito cumprimento, mesmo que jamais se tivesse ouvido falar de algo como a Igreja. 

Pois a Igreja — que isto nunca seja esquecido — não tem qualquer parte nas deliberações de Deus para com Israel e o mundo. E no que diz respeito à alusão feita à pregação do evangelho no versículo 14, não devemos supor que seja a mesma coisa que o "glorioso evangelho da graça de Deus", do modo como foi pregado por Paulo. Aquele, além de ser denominado "o evangelho do reino", deverá ser pregado não com o propósito de reunir a Igreja, mas "em testemunho a todas as nações". 

Não podemos confundir as coisas que Deus, em Sua infinita sabedoria, mostrou serem distintas. A Igreja não deve ser confundida com o reino, tampouco o evangelho da graça de Deus deve ser confundido com o evangelho do reino. São coisas completamente distintas e, se as confundirmos, acabaremos não entendendo nem uma, nem outra. Além disso, gostaríamos de insistir com o leitor quanto à absoluta necessidade de se enxergar a pausa, o parêntese ou o imperceptível intervalo no qual o grande mistério da Igreja é inserido. Se isto não for claramente visto, Mateus 24 não poderá ser entendido. Mas devemos seguir adiante com o discurso de nosso Senhor. 

No versículo 15 Ele parece chamar a atenção de Seus leitores um pouco para o passado, como se quisesse falar de algo bem específico — algo da alusão feita por Daniel, com a qual um crente judeu estaria familiarizado. 

"Quando, pois, virdes que a abominação da desolação, de que falou o profeta Daniel, está no lugar santo; quem lê, atenda; então, os que estiverem na Judeia, fujam para os montes; e quem estiver sobre o telhado não desça a tirar alguma coisa de sua casa; e quem estiver no campo não volte atrás a buscar as suas vestes... E orai para que a vossa fuga não aconteça no inverno nem no sábado; porque haverá então grande aflição, como nunca houve desde o princípio do mundo até agora, nem tampouco há de haver". Tudo isso é muito claro. 

A citação de Daniel 12 não deixa qualquer dúvida quanto à aplicação da passagem. Prova que a referência não é ao cerco de Jerusalém por Tito, pois lemos em Daniel 12 que "naquele tempo livrar-se-á o teu povo", e é perfeitamente claro que o povo não foi liberto nos dias de Tito. Não, a referência é ao tempo do fim. 

A cena se passa em Jerusalém. As pessoas às quais o discurso é dirigido e aquelas envolvidas são crentes judeus — o piedoso remanescente de Israel durante a grande tribulação, após a Igreja ter saído de cena. Como alguém poderia imaginar que as pessoas às quais a passagem se refere pudessem ser consideradas como estando em terreno cristão? Que importância teria para elas a alusão feita ao inverno ou ao sábado? Portanto, mais uma vez: "Então, se alguém vos disser: Eis que o Cristo está aqui, ou ali, não lhe deis crédito... se vos disserem: Eis que Ele está no deserto, não saiais. Eis que Ele está no interior da casa; não acrediteis". 

Que aplicação teria tais palavras para pessoas que estão instruídas a aguardar pelo Filho de Deus vindo do Céu, que sabem que quando Ele voltar a este mundo elas irão encontrá-Lo entre nuvens e voltar com Ele para a casa do Pai? Poderia algum cristão bem informado da esperança que lhe diz respeito ser enganado por pessoas dizendo que Cristo está aqui ou ali, no deserto ou no interior da casa? Impossível. O cristão está aguardando pelo Noivo vindo do Céu, e sabe que está totalmente fora de questão que Cristo apareça na terra se não estiver trazendo consigo todo o Seu povo. Assim, a simples verdade deixa tudo resolvido, e tudo o que queremos é abordá-la com simplicidade. 

O cristão mais simples sabe muito bem que seu Senhor não aparecerá para si como um raio ou relâmpago, mas como a resplandecente Estrela da manhã e, portanto, entende que Mateus 24 não pode se aplicar à Igreja, muito embora a Igreja certamente possa estudar o capítulo com interesse e obter benefícios dele, como acontece com todas as outras passagens proféticas. 

E, podemos acrescentar, o interesse será ainda mais intenso, e o benefício ainda mais profundo, na proporção em que enxergarmos a verdadeira aplicação destas passagens das Escrituras. O limite de espaço impede que entremos tanto quanto gostaríamos no restante deste maravilhoso discurso, mas quanto mais detalhadamente cada sentença for examinada, maior o peso que se dará a cada circunstância, e maior a clareza com que poderemos ver que as pessoas às quais foi dirigido não têm natureza cristã. Toda a cena é judaica e terrena, e não cristã e celestial. Há ali muito ensino para aqueles que se encontrarão, eventualmente, na posição ali prevista, e nada pode ser mais claro do que o fato de que o parágrafo inteiro, do versículo 15 ao 42, se refere ao período que se passa entre o arrebatamento dos santos e a aparição do Filho do Homem. Alguns talvez sintam dificuldade em entender o versículo 34: "Não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam". 

Mas devemos nos lembrar de que a palavra "geração" é constantemente usada nas Escrituras com um sentido moral. Não deve ser limitada a certo número de pessoas que estiverem vivas na ocasião, mas leva em consideração o povo. Na passagem que lemos, ela se aplica simplesmente à geração judaica, mas o modo como as palavras são colocadas pode deixar em aberto também a questão do tempo, de maneira que o coração deve ser mantido sempre de prontidão para a vinda do Senhor. 

Nada há nas Escrituras que interfira com a constante expectativa desse grande evento. Pelo contrário, cada parábola, cada figura, cada alusão é colocada na forma de palavras que garantam que cada pessoa espere pela volta do Senhor durante o tempo de sua vida, deixando ainda margem para o prolongamento do tempo em conformidade com a paciente graça de um Deus Salvador. *


A CRISTANDADE

Que pensamentos e sentimentos diversos são despertados na alma pelo simples ouvir da palavra "cristandade"! Trata-se de uma palavra terrível. Ela coloca diante de nós, de uma só vez, aquela imensa massa de pessoas professas e batizadas que se denominam a si mesmos Igreja de Deus, mas que não são; que dão a si mesmas o título de cristianismo, mas não são. Cristandade é uma terrível e sombria anomalia. Não é uma coisa nem outra. Não é judeu, nem gentio, nem Igreja de Deus. 

Trata-se de uma misteriosa mistura corrompida, uma deformação espiritual, a obra prima de Satanás, o corruptor da verdade de Deus e destruidor de almas humanas, uma armadilha, um engano, uma pedra de tropeço, a mais sombria mancha moral no universo de Deus. Trata-se da corrupção de nada menos do que aquilo que há de melhor e, por isso, é a pior das corrupções. Trata-se daquilo que Satanás fez a partir do cristianismo professo. 

É, de longe, pior que o judaísmo, pior que todas as mais sombrias formas de paganismo. Por possuir uma luz mais elevada e privilégios mais ricos, isto a torna a profissão mais elevada e faz com que ocupe o mais eminente lugar. Finalmente, é para essa horrível apostasia que estão reservados os mais pesados juízos de Deus — a mais amarga borra da taça de Sua justa ira. Há, bendito seja Deus, alguns poucos nomes na cristandade que, por graça, não contaminaram suas vestes. Há algumas brasas vivas entre suas cinzas inertes — pedras preciosas entre o horrível entulho. 

Todavia, no que diz respeito à massa da profissão cristã à qual o termo cristandade se aplica, nada pode ser mais consternador, quer pensemos em sua condição atual ou em seu destino futuro. Duvidamos que os cristãos, de um modo geral, tenham uma percepção clara do verdadeiro caráter e inevitável ruína daquilo que os cerca. Se tivessem, ficariam preocupados e sentiriam a necessidade premente de se manterem à parte, em santa separação, dos caminhos da cristandade, em um claro testemunho contra seu espírito e princípios. Mas vamos voltar ao profundo discurso de nosso Senhor no Monte das Oliveiras, no qual, como já observamos, Ele trata da questão da profissão cristã. Ele faz isso em três parábolas distintas, a saber, a do servo, das dez virgens e dos talentos. Em cada uma e em todas vemos as mesmas duas coisas que foram mostradas acima, o genuíno e o espúrio, o verdadeiro e o falso, o brilhante e o sombrio, aquilo que é de Cristo e aquilo que é de Satanás, aquilo que pertence ao Céu e aquilo que emana do inferno. 

Devemos olhar de relance para as três parábolas que contêm, apesar de sua brevidade, um imenso manancial de ensino prático e dos mais solenes. Abram em Mateus 24:45-47. "Quem é, pois, o servo fiel e prudente, que o seu senhor constituiu sobre a sua casa, para dar o sustento a seu tempo? 

Bem-Aventurado aquele servo que o seu senhor, quando vier, achar servindo assim. Em verdade vos digo que o porá sobre todos os seus bens". Aqui, portanto, temos definida a fonte e objetivo de todo ministério na casa de Deus. "Que o seu senhor constituiu sobre a sua casa". Esta é a fonte. "Para dar o sustento a seu tempo". Este é o objetivo. Estas coisas são da mais alta importância e dignas da mais profunda atenção do leitor. Todo ministério na casa de Deus, seja nos dias do Antigo ou do Novo Testamento, é por ordenação divina. Não existe nas Escrituras algo como uma autoridade humana ordenando alguém para o ministério. Tampouco existe algo como um ministério auto constituído. 

Ninguém além de Deus, pode fazer ou ordenar um ministro, qualquer que seja seu tipo ou qualificação. Assim, nos tempos do Antigo Testamento, Jeová ordenou Aarão e seus filhos para o sacerdócio e, se um estranho pretendesse se infiltrar nas funções do santo ofício, deveria ser condenado à morte. 

Nem mesmo o próprio rei ousava tocar no incensório sacerdotal, pois nos é dito de Uzias, rei de Judá, que "havendo-se já fortificado, exaltou-se o seu coração até se corromper; e transgrediu contra o Senhor seu Deus, porque entrou no templo do Senhor para queimar incenso no altar do incenso. Porém, o sacerdote Azarias entrou após ele, e com ele oitenta sacerdotes do Senhor, homens valentes. E resistiram ao rei Uzias, e lhe disseram: A ti, Uzias, não compete queimar incenso perante o Senhor, mas aos sacerdotes, filhos de Arão, que são consagrados para queimar incenso; sai do santuário, porque transgrediste; e não será isto para honra tua da parte do SENHOR Deus... Assim ficou leproso o rei Uzias até ao dia da sua morte" (2 Cr 26:16-21). T

al foi o solene resultado — a terrível consequência de alguém ousar se intrometer naquilo que era uma ordenação totalmente divina. Acaso isto não tem algo a dizer à cristandade? Certamente. É algo que emite uma nota de alerta, que diz à Igreja professa, em alto e bom som, para tomar cuidado com a intromissão humana em uma área que pertence apenas a Deus. "Porque todo o sumo sacerdote, tomado dentre os homens, é constituído a favor dos homens [e não por homens] nas coisas concernentes a Deus, para que ofereça dons e sacrifícios pelos pecados... e ninguém toma para si esta honra, senão o que é chamado [não por homens, mas] por Deus, como Arão" (Hb 5). Tampouco estava este princípio de ordenação divina restrito ao santo e elevado ofício do tabernáculo. Homem algum ousava colocar sua mão na menor parte que fosse daquela estrutura sagrada a menos que tivesse autoridade recebida diretamente de Jeová. "Depois falou o Senhor a Moisés, dizendo: Eis que Eu tenho chamado por nome a Bezalel, o filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá" (Êx 31). 

E nem Bezalel poderia escolher seus companheiros no trabalho, ou ordenar quem quisesse para trabalhar, do mesmo modo como não poderia ter escolhido ou ordenado a si mesmo. Não, isso também era uma prerrogativa divina. "E eis que eu", diz Jeová, "tenho posto com ele a Aoliabe". Assim tanto Aoliabe como Bezalel receberam sua comissão diretamente do próprio Jeová, a única fonte de toda autoridade ministerial. E nem podia ser diferente no caso do ministério e do ofício profético. 

Só Deus poderia fazer, preparar e enviar um profeta. Oh, mas havia aqueles dos quais Jeová precisava dizer: "Não mandei esses profetas, contudo eles foram correndo" (Jr 23:21). Eram pessoas não consagradas se intrometendo no campo da profecia, assim como aqueles que se intrometiam no ofício do sacerdócio. Todavia, todos atraíram para si mesmos o juízo de Deus. 

Será que este grande princípio mudou? Acaso o ministério foi tirado de seu antigo fundamento? Porventura o manancial de águas vivas foi desviado de sua divina fonte? Será que esta instituição tão gloriosa e preciosa foi despojada de sua sublime dignidade? Seria possível que, na época do Novo Testamento, o ministério tivesse sido rebaixado de sua divina excelência? Teria, ele se transformado numa mera ordenação humana? Poderia alguém ordenar seu companheiro, ou ordenar a si próprio, para qualquer ministério na casa de Deus? Que resposta devemos dar a estas perguntas? Sem dúvida alguma, e graças a Deus por isso, nenhuma outra resposta há senão um claro e enfático Não! 

O ministério era, é e sempre será divino; divino em sua fonte, divino em sua natureza, divino em cada princípio e aspecto. "Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos" (1 Co 12:4-6). 

"Mas agora Deus colocou os membros no corpo, cada um deles como quis... E a uns pôs Deus na igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas, em terceiro doutores, depois milagres, depois dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas" (1 Co 12:18, 28). "Mas a graça foi dada a cada um de nós, segundo a medida do dom de Cristo. Por isso diz: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens... E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo" (Ef 4:7-13). 

Eis a grande fonte de todo ministério na Igreja de Deus, do primeiro ao último — do alicerce estabelecido em graça, até a pedra do topo, em glória. Não vem do homem e nem é ordenado pelo homem, mas é de Jesus Cristo, e de Deus Pai que O ressuscitou dentre os mortos, e no poder do Espírito Santo (veja Gálatas 1). Não há nas Escrituras qualquer coisa referente a algum tipo de autoridade humana em qualquer área do ministério na Igreja. 

Se for uma questão de dom, está enfaticamente declarado que se trata de dom de Cristo. Se for uma questão de posição ordenada, nos é dito, com igual clareza e ênfase, que Deus coloca os membros. Se for uma questão de responsabilidade local, seja ela de ancião ou diácono, trata-se de uma designação exclusivamente divina, exercida por mão dos apóstolos ou daqueles por eles delegados. Tudo isso está tão claro, tão definido, tão palpável nas páginas das Escrituras que a única coisa que se pode dizer é: "Como lês?". 

E quanto mais penetramos sob a superfície — quanto mais somos guiados pelo Espírito Eterno nas mais preciosas e profundas regiões da inspiração — mais convencidos ficaremos de que o ministério, em cada uma de suas áreas e aspectos, é divino em sua fonte, natureza e princípios. A verdade a este respeito resplandece em todo o seu fulgor nas Epístolas, mas temos sua essência nas palavras de nosso Senhor em Mateus 25:45: "Que o seu senhor constituiu sobre a sua casa". A casa pertence ao Senhor e somente Ele pode designar Seus servos, o que Ele faz conforme Sua vontade soberana. Igualmente claro é o assunto do ministério, conforme é declarado na parábola e desenvolvido nas Epístolas. "Para dar o sustento a seu tempo". 

"Para edificação do corpo de Cristo" — "para que a igreja receba edificação". É isto que está junto ao terno coração de Jesus. Ele queria que Sua casa fosse aprimorada, que Sua Igreja fosse edificada, que Seu corpo fosse alimentado e cuidado. Para este fim, Ele deu dons e os mantêm na Igreja, e irá mantê-los até que não sejam mais necessários. Mas, oh!, existe um lado sombrio nesse quadro. Devemos estar preparados para isso, já que temos diante de nós o quadro da cristandade. Se existe um servo fiel, sábio e bendito, existe também um servo mau que, no seu coração diz: "O meu senhor tarde virá". Preste atenção nisto. É no coração do servo mau que o pensamento da demora da vinda tem sua origem. E qual é o resultado? Ele começa "a espancar os seus conservos, e a comer e a beber com os ébrios". Não precisamos comentar o modo terrível como isso tem sido retratado na história da cristandade. 

Ao invés de um verdadeiro ministério fluindo da Cabeça ressuscitada e glorificada nos céus, promovendo a edificação do corpo, a bênção das almas e a prosperidade da casa, temos uma falsa autoridade clerical, um governo arbitrário, se assenhoreando da herança de Deus, numa ávida busca pela riqueza e poder seculares, pela permissividade mundana e satisfação dos próprios desejos, exaltação pessoal e domínio sacerdotal das mais variadas e imagináveis formas e resultados. O leitor fará bem se aplicar seu coração em compreender estas coisas. Para isto deverá apreender, com clareza e poder, a diferença entre clericalismo e ministério. O primeiro não passa de pretensão humana; o último é uma instituição puramente divina. O primeiro tem sua fonte no coração do homem mau; o último provém de um Salvador ressuscitado e exaltado que, depois de ressuscitado dentre os mortos, recebeu dons para serem dados aos homens e os derrama sobre Sua Igreja conforme a Sua própria vontade. O primeiro é verdadeiramente um flagelo e maldição; o último, uma bênção divina dada aos homens. 

Este, em sua essência, flui primorosamente do céu e para lá retorna; aquele, flui do inferno que é a sua origem e é para lá que retorna. Tudo isso é extremamente solene e deveria exercer uma poderosa influência em nossa alma. Está chegando o dia quando Cristo, o Senhor, irá tratar com justiça sumária tudo aquilo que o homem ousou estabelecer em Sua casa. Não falamos aqui de indivíduos — apesar de ser algo muito sério e terrível alguém praticar ou se envolver com aquilo sobre o que um julgamento tão medonho está para cair. Falamos de um sistema — um grande princípio que se espalha, em uma corrente profunda e sombria, por toda a extensão da Igreja professa — falamos do clericalismo e do poder sacerdotal, em todas as suas formas e ramificações. É contra essa coisa terrível que solenemente alertamos nossos leitores. Nenhuma linguagem humana seria capaz de descrever o mal que há nisso, tampouco pode a linguagem humana expor adequadamente a profunda bênção do genuíno ministério na Igreja de Deus. 

O Senhor Jesus não apenas concede os dons ministeriais, mas, em Sua maravilhosa graça, recompensará abundantemente o exercício fiel e diligente desses dons. Todavia, no que diz respeito àquilo que o homem estabeleceu, lemos acerca de seu destino nestas veementes palavras: "Virá o senhor daquele servo num dia em que o não espera, e à hora em que ele não sabe, e separá-lo-á, e destinará a sua parte com os hipócritas; ali haverá pranto e ranger de dentes". 

Que o gracioso Senhor possa livrar Seus servos e Seu povo de qualquer participação nessa grande impiedade que tem penetrado até mesmo no seio daquilo que se denomina a Igreja de Deus. 

E, por outro lado, que Ele possa levá-los a compreender, a apreciar e a exercitar aquele verdadeiro, precioso e divino ministério que emana de Si próprio e é designado, em Seu infinito amor para a verdadeira bênção e crescimento dessa Igreja que é tão cara ao Seu coração. Enquanto buscamos nos manter longe do mal do clericalismo (como certamente devemos fazer), corremos o risco — deveras um grande risco — de cairmos no extremo oposto, que é o de desprezar o ministério. Isto deve ser cuidadosamente evitado. Devemos sempre ter em mente que o ministério adequado à Igreja é o ministério vindo de Deus. Sua fonte é divina. Sua natureza é celestial e espiritual. Seu objetivo é reunir, é edificar a Igreja de Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo concede os diversos dons — evangelistas, pastores e mestres ou doutores. É dEle o grande reservatório de dons espirituais. Ele nunca abriu mão disso e nem abrirá. Apesar de tudo aquilo que Satanás tem feito na Igreja professa; apesar de todos os feitos daquele "servo mau"; apesar de toda a pretensa usurpação de autoridade do homem que de forma alguma lhe pertence; apesar de tudo isso, nosso Senhor ressuscitado e glorificado tem as "sete estrelas". É dEle que provêm todos os dons de ministério, todo o poder e autoridade. 

Só Ele pode fazer de alguém um ministro. Se Ele não conceder um dom, não pode existir um ministério genuíno. Pode existir a vã pretensão — a usurpação culposa, a simulação vazia, o discurso inútil — mas não haverá um átomo sequer de ministério verdadeiro, divino e terno, exceto onde nosso soberano Senhor quiser conceder o dom. 

E até mesmo onde Ele concede o dom, esse dom deve ser "despertado" e diligentemente cultivado, caso contrário o "aproveitamento" não será "manifesto a todos". O dom deve ser exercitado no poder do Espírito Santo, ou não promoverá o objetivo para o qual foi divinamente designado. Mas estamos apenas antecipando o que ainda está para nos ser apresentado na parábola dos talentos, por isso terminaremos aqui simplesmente lembrando o leitor que o grave assunto com o qual nos ocupamos tem ligação direta com a vinda de nosso Senhor, ainda mais considerando que todo ministério genuíno é exercido tendo em vista aquele grande e glorioso evento. E não apenas isto, mas aquela imitação, aquela coisa corrupta e má, será judicialmente tratada quando Cristo, o Senhor, surgir em Sua glória.


AS DEZ VIRGENS

Abordaremos agora esta solene parte do discurso de nosso Senhor no qual Ele apresenta o reino dos céus comparado a "dez virgens". O ensino contido nesta parábola tão interessante e significativa é de uma aplicação mais ampla do que a do servo à qual já nos referimos, considerando que ela aborda todo o espectro da profissão cristã e não fica restrita ao ministério, seja ele dentro ou fora da casa. 

Ela se relaciona direta e explicitamente à profissão cristã, tanto a falsa como a verdadeira. "Então o reino dos céus será semelhante a dez virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram ao encontro do esposo". Há quem acredite que esta parábola refira-se ao remanescente judeu, mas não parece ser esta a ideia que ela dá, tanto pelo contexto no qual ocorre, quanto pelos termos nela utilizados. No que diz respeito ao contexto como um todo, quanto mais de perto nós a examinarmos, mais claramente veremos que a porção judaica do discurso termina com Mateus 24:44. Isto é algo tão claro que descarta qualquer questão. 

Igualmente distinta é a porção cristã, que se estende, como vimos, de Mateus 24:45 a Mateus 25:30, enquanto de Mateus 25:31 ao final temos os gentios. Tamanha ordem e plenitude encontradas neste maravilhoso discurso deve tocar todo leitor atento. Ele apresenta o judeu, o cristão e o gentio, cada um em seu terreno distinto e em conformidade com seus próprios princípios. Não há uma mistura de uma coisa com outra, não há confusão de coisas que diferem. Em suma, a ordem, a plenitude e a abrangência deste profundo discurso são coisas divinas que enchem a alma de "assombro, amor e adoração". Depois de estudá-lo, só podemos fazer nossas, em uníssono, as palavras do apóstolo que disse: "Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os Seus juízos, e quão inescrutáveis os Seus caminhos!" 

E então, quando examinamos os termos exatos utilizados por nosso Senhor na parábola das dez virgens, acabamos percebendo que esta não se aplica a judeus, mas a cristãos professos — aplicase a nós. Proclama e ensina uma solene lição ao escritor e também ao leitor destas linhas. Vamos, então, aplicar nosso coração à sua leitura. "Então o reino dos céus será semelhante a dez virgens que, tomando as suas lâmpadas, saíram ao encontro do esposo". 

O cristianismo primitivo era especialmente caracterizado pelo fato aqui indicado, a saber, de aguardar pelo ansiado encontro com um Noivo que voltaria. Os primeiros cristãos foram levados a se desligar das coisas presentes e a saírem, de mente e coração, ao encontro do Salvador que amavam e pelo qual aguardavam. Não se tratava, evidentemente, de sair de um lugar para outro; não era uma questão de lugar, mas algo moral e espiritual. Era uma saída de coração, ao encontro de um amado Salvador cujo retorno era ansiosamente aguardado, dia após dia. É impossível ler as epístolas dirigidas às diversas igrejas sem perceber que a esperança da eminente e segura volta do Senhor governava os corações de Seu amado povo nos primeiros dias. 

Eles esperavam pelo Filho vindo do céu. Sabiam que Ele viria para levá-los, para estarem Consigo para sempre, e o conhecimento e poder dessa esperança tinha o efeito de desligar seus corações das coisas presentes. Sua esperança, viva e celestial, acabou por torná-los indiferentes às coisas deste mundo. Eles esperavam pelo Salvador. Acreditavam que Ele poderia vir a qualquer momento e, por isso, as obrigações desta vida acabavam sendo tão somente assumidas e atendidas para o momento — sem dúvida alguma atendidas de forma completa e adequada — mas apenas no caráter transitório que tinham, enquanto viviam em grande expectativa. Tudo isso é comunicado ao nosso coração, de forma breve, porém clara, pela expressão: "Saíram ao encontro do esposo". 

Não há como conscientemente aplicar isto ao remanescente judeu, ainda mais sabendo que eles não sairão ao encontro de seu Messias, mas, ao contrário, permanecerão em sua posição ou em meio às circunstâncias até que Ele venha e coloque Seu pé no Monte das Oliveiras. Eles não aguardarão pela vinda do Senhor para levá-los embora desta terra para estarem com Ele no céu, mas Ele virá para trazer-lhes libertação em sua própria terra, e para fazê-los feliz ali mesmo, sob Seu próprio reino pacífico e bendito durante o milênio. Porém o chamado feito aos cristãos foi para "saírem". Espera-se deles que estejam sempre de mudança; que não se acomodem no mundo, mas que estejam de saída em uma sincera e santa expectativa pela glória celestial para a qual são chamados, e pelo Noivo celestial com Quem estão desposados, e cujo breve advento são ensinados a aguardar. Tal é a ideia verdadeira, divina e normal para a condição e atitude esperadas de um cristão. E uma ideia tão terna era maravilhosamente entendida e colocada em prática pelos primeiros cristãos. Mas, oh!, somos lembrados de que, na cristandade estamos diante tanto do que é genuíno como daquilo que é falso. Há o "joio" e há também o "trigo" no reino dos céus, portanto lemos acerca destas dez virgens que "cinco delas eram prudentes, e cinco loucas". No cristianismo professo existe o verdadeiro e o falso, o genuíno e a imitação, o real e o ilusório. Sim, e isto deve continuar até o tempo do fim, até que o Noivo venha. O joio não é convertido em trigo, tampouco as virgens loucas transformadas em prudentes. Não, jamais. O

 joio irá queimar e as virgens loucas serão deixadas do lado de fora. Até aqui, pelo que vemos de um aparente progresso levado a efeito pelos meios hoje em operação — a pregação do evangelho e as diversas organizações beneficentes funcionando em todo o mundo — percebemos, graças a todas as parábolas e ao ensino de todo o Novo Testamento, que o reino dos céus se revela como uma mescla de mal das mais deploráveis. Trata-se de um processo que corrompe, uma repugnante adulteração da obra de Deus engendrada pelo inimigo e um real progresso do mal em princípio, profissão e prática. E tudo isso seguirá até o fim. As virgens loucas são vistas quando surge o Noivo. De onde viriam, se fosse correta a ideia de que todos deverão se converter antes da vinda do Senhor? Se todos forem levados ao conhecimento do Senhor pelos meios hoje utilizados, então como explicar a existência do mesmo número de virgens loucas e sábias nessa ocasião? Mas talvez alguém alegue que isto não passa de uma parábola, uma figura. 

Certamente, mas figura de quê? Certamente não de um mundo inteiro convertido. Afirmar isto seria ofender o volume sagrado e tratar o solene ensino de nosso Senhor de um modo tal que não ousaríamos tratar nem mesmo o ensino de um mero mortal. Não, leitor, a parábola das dez virgens ensina, sem dúvida alguma, que quando o Noivo vier entrarão em cena as virgens loucas e, evidentemente, se existirem as virgens loucas é porque elas não terão sido previamente convertidas. 

Até uma criança é capaz de entender isto. Não conseguimos enxergar como seria possível, levando-se em consideração esta parábola, manter a teoria de um mundo convertido antes da vinda do Noivo. Mas vamos examinar um pouco mais de perto estas virgens loucas. Sua história é cheia de admoestações para todos os que professam ser cristãos. Trata-se de algo muito sutil, mas de uma abrangência impressionante. "As loucas, tomando as suas lâmpadas, não levaram azeite consigo". 

Existe a profissão exterior, mas não uma realidade interior — nenhuma vida espiritual — nenhuma unção — nenhuma ligação vital com a fonte de vida eterna — nenhuma união com Cristo. Nada além da lâmpada da profissão e do seco pavio de uma crença nominal, teórica e racional. Isto é particularmente solene. Lança uma tremenda responsabilidade sobre aquela imensa massa de professos batizados que, neste exato momento, nos rodeia, na qual existe tanta aparência exterior, porém tão pouca realidade interior. Todos professam ser cristãos. 

A lâmpada da profissão cristã pode ser vista em todas as mãos, mas, oh!, quão poucos trazem o azeite em seus vasos, o espírito de vida em Cristo Jesus, o Espírito Santo habitando em seus corações. Sem isto, tudo é completamente inútil e vão. Pode haver a mais elevada profissão, pode existir o mais ortodoxo credo, alguém pode ser batizado, pode receber a ceia do Senhor, pode estar regularmente registrado e ser perfeitamente reconhecido como membro de uma comunidade cristã, pode ser um professor da escola dominical ou um ministro ordenado por alguma religião. Pode ser alguém que seja tudo isso e, mesmo assim, não possuir uma centelha sequer de vida divina, nem mesmo um raio de luz celestial, qualquer ligação com o Cristo de Deus. 

Ora, existe algo de particularmente terrível no pensamento de se ter tão somente uma medida de religião suficiente para enganar o coração, amortecer a consciência e arruinar a alma — religião suficiente apenas para dar nome de vivo a quem está morto — suficiente para deixar alguém sem Cristo, sem Deus e sem esperança neste mundo; suficiente para sustentar a alma com uma falsa confiança, e enchê-la de uma falsa paz, até que o Noivo venha e, então, os olhos sejam abertos quando for tarde demais. Assim é com as virgens loucas. Elas são muito parecidas com as prudentes. Um observador comum talvez não seja capaz de ver qualquer diferença por algum tempo. 

Todas se preparam juntas. Todas têm lâmpadas. E, além disso, todas acabam indo descansar e adormecem, tanto as prudentes como as loucas. Todas se levantam com o clamor da meia-noite e preparam suas lâmpadas. Até aqui não existe uma diferença visível. As virgens loucas acendem suas lâmpadas — a lâmpada da profissão cristã é acesa com o pavio seco de uma fé nominal, teórica e sem vida. Oh! tudo em vão — pior do que em vão, um engano fatal para a destruição da alma. Aqui surge a grande diferença — a bem definida linha de demarcação — com uma clareza terrível, sim, apavorante. "E as loucas disseram às prudentes: Dai-nos do vosso azeite, porque as nossas lâmpadas se apagam". Isso prova que suas lâmpadas estavam acesas, pois se não estivessem acesas não poderiam se apagar. Mas era apenas uma luz falsa, tremulante e passageira. 

Não era alimentada pela divina fonte. Era a luz da mera profissão dos lábios, alimentada por uma crença racional, com duração apenas suficiente para enganar a si mesmas e a outros, e apagar bem na hora em que mais precisavam dela, deixando-as nas terríveis trevas da noite eterna. "Nossas lâmpadas se apagam". Terrível descoberta! "Aí vem o esposo, e nossas lâmpadas se apagam. Nossa vã profissão cristã está sendo revelada pela luz de Sua vinda. Pensamos que estava tudo em ordem. Professamos a mesma fé, tivemos o mesmo tipo de lâmpada, o mesmo tipo de pavio; mas, oh! agora descobrimos, para horror nosso, que nos enganamos a nós mesmas, que não temos aquilo que é necessário, o espírito de vida em Cristo, a unção do Santo, a ligação viva com o Noivo. 

O que faremos? Oh, virgens prudentes, tenham pena de nós e compartilhem conosco seu azeite. Façam isso, por misericórdia, compartilhem um pouco conosco, nem que seja uma gota dessa coisa tão essencial, para não perecermos para sempre". Oh, tudo em vão. Nenhuma delas pode compartilhar este azeite com outra. Cada uma possui o suficiente para si. Além do mais, ele só pode ser recebido do próprio Deus. Um homem pode dar luz, mas não pode dar o azeite. Este é uma dádiva que provém somente de Deus. "Mas as prudentes responderam, dizendo: Não seja caso que nos falte a nós e a vós, ide antes aos que o vendem, e comprai-o para vós. 

E, tendo elas ido comprá-lo, chegou o esposo, e as que estavam preparadas entraram com ele para as bodas, e fechou-se a porta". De nada adianta buscar por amigos cristãos que nos ajudem ou que nos deem suporte. De nada adianta correr de um lado para o outro procurando alguém em quem se apoiar — algum santo, ou algum eminente mestre — de nada adianta buscar apoio em nossa Igreja, ou em nosso credo, ou em nossos sacramentos. 

Queremos azeite. Não podemos viver sem ele. Onde encontrá- lo? Não no homem, ou na Igreja, ou nos santos, ou nos pais. Devemos obtê-lo de Deus; e Ele, bendito seja o Seu nome, o dá graciosamente. "O dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor". Mas, repare bem, trata-se de algo individual. Cada um deve tê-lo para si mesmo. Ninguém pode crer, ou obter vida para outro. Cada um deve tratar disso pessoalmente com Deus. 

A ligação que faz a conexão da alma com Cristo é algo completamente individual. Não existe algo como uma fé de segunda mão. Uma pessoa pode nos ensinar religião, teologia ou a letra das Escrituras, mas não pode nos dar o azeite; não pode nos dar fé; não pode nos dar vida. "É dom de Deus". Que pequena e preciosa palavra, "dom". É como Deus. É tão gratuito quanto o ar de Deus; gratuito como Seus raios solares; gratuita como Suas refrescantes gotas de orvalho. Mas, repetimos e com solene ênfase, cada um deve obtê-lo para si mesmo e tê-lo em si mesmo. "Nenhum deles de modo algum pode remir a seu irmão, ou dar a Deus o resgate dele (pois a redenção da sua alma é caríssima, e cessará para sempre), para que viva para sempre, e não veja corrupção" (Sl 49:7-9). 

Leitor, o que você diz destas solenes realidades. Você é uma virgem louca ou prudente? Você já obteve vida em um Salvador ressuscitado e glorificado? Você é um mero professo de uma religião, satisfeito com a mera rotina comum e sem vida de ir à igreja, possuindo apenas um pouco de religião que o torne alguém respeitável neste mundo, mas não o suficiente para ligá-lo com o céu? Insistimos sinceramente com você para que pense seriamente nestas coisas. Pense nelas agora. Pense no indescritível horror de descobrir que sua lâmpada da mera profissão cristã está se apagando e deixando você em densas trevas — trevas palpáveis — as trevas exteriores de uma noite eterna. Quão terrível será descobrir que a porta foi fechada antes que você pudesse embarcar rumo às núpcias; foi fechada na sua cara! Que lamento de agonia, "Senhor, Senhor, abre-nos!" Que contundente e esmagadora resposta: "Em verdade vos digo que vos não conheço". 

Oh, querido amigo, dê a estas solenes palavras um lugar em seu coração agora mesmo, enquanto a porta ainda está aberta, enquanto o dia da graça se estende pela maravilhosa paciência de Deus. Está chegando rapidamente aquele momento quando a porta de misericórdia será fechada para você para sempre, quando toda esperança acabará e sua preciosa alma será precipitada em um sombrio e eterno desespero. Que o Espírito de Deus possa tirá-lo de seu sono fatal e não permita que você descanse até encontrar o verdadeiro repouso na obra completa do Senhor Jesus Cristo e nos Seus benditos pés, em devota adoração. Devemos agora encerrar este texto, mas antes de fazê-lo gostaríamos de, por um momento, dar uma olhada nas virgens prudentes. 

De acordo com o ensino desta parábola, a grande característica que as distingue e as separa das virgens loucas é que, logo de início, elas "levaram azeite em suas vasilhas, com as suas lâmpadas". Em outras palavras, o que distingue os verdadeiros crentes daqueles que meramente professam é que os primeiros têm em seus corações a graça do Espírito Santo de Deus; eles têm o espírito de vida em Cristo Jesus e o Espírito Santo habitando neles como o selo, o penhor, a unção e o testemunho. Este grande e glorioso fato caracteriza hoje todos os verdadeiros crentes no Senhor Jesus Cristo — um fato estupendo, maravilhoso, com toda certeza — um imenso e inefável privilégio que deveria sempre curvar nossa alma em santa adoração diante de nosso Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo, cuja redenção já consumada nos garantiu tão grande bênção. 

Quão triste é pensar que, apesar deste privilégio tão santo e elevado, somos obrigados a ler, como mostram as palavras de nossa parábola: "Tosquenejaram todas, e adormeceram!". Todas igualmente, tanto as prudentes quanto as loucas, adormeceram. O Noivo tardou em vir, e todas, sem exceção, perderam o frescor, o fervor e o poder da esperança da Sua vinda, e adormeceram. É isto que declara nossa parábola, e é este o solene fato da história. Todo o corpo professo adormeceu. A bendita esperança que brilhou com tanto fulgor no horizonte dos primeiros cristãos, se desvaneceu com muita rapidez. 

E enquanto perscrutamos as páginas da história da Igreja durante dezoito séculos, desde os Pais Apostólicos ao início do presente século, em vão buscamos por alguma referência clara à esperança específica da Igreja — a volta pessoal do bendito Noivo. Na verdade, aquela esperança foi virtualmente perdida pela Igreja, e não apenas isto, mas hoje é quase uma heresia ensiná-la e, nestes últimos dias, centenas de milhares de ministros que professam a Cristo não ousam pregar ou ensinar sobre a vinda do Senhor conforme o ensino das Escrituras. É verdade, bendito seja Deus, que uma grande mudança aconteceu no último século. Houve então um grande despertamento. 

Deus, por meio do Seu Espírito Santo, voltou a chamar a atenção de Seu povo para verdades há muito esquecidas e, entre elas, a gloriosa verdade da vinda do Noivo. Muito então perceberam que a razão da demora do Noivo se devia simplesmente à paciência de Deus para conosco, pois Ele não quer que nenhum pereça, mas que todos venham a se arrepender. Precioso motivo! Mas eles também viram que, apesar dessa paciência, nosso Senhor está próximo. Cristo vem. O clamor da meia-noite já foi ouvido: "Aí vem o esposo, saí-lhe ao encontro". 

Muitos milhões de vozes ecoam esse clamor tão comovente, até que ele alcance, em seu poder moral, de um polo a outro, "desde o rio do Egito" aos confins da terra, conclamando toda a Igreja a esperar — todos juntos — pela gloriosa vinda do Noivo que é tão bendito aos nossos corações. Amados irmãos no Senhor, despertem! Que cada alma seja despertada. Vamos deixar de lado a indolência do conforto mundano e da satisfação própria — vamos nos colocar acima da debilitante influência do formalismo religioso e da tediosa rotina — vamos jogar de lado os dogmas da falsa teologia e sair, com vontade e na afeição do coração, ao encontro de nosso Noivo que está chegando. Que estas solenes palavras atinjam nossa alma com revigorado poder: "Vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora". 

Que a resposta de nossa vida e coração seja: "Ora vem, Senhor Jesus". Sinistra é a fonte do mal que hoje passa; Despertai, ó santos, vós filhos da graça; Buscai os perdidos com fé destemida, Sabendo o preço da cruz e sua lida. Cantai, inspirados, do amor sem medida, Enquanto aguardamos, ao céu, a subida — Que pode ser hoje, oh doce certeza! — Com lombos cingidos e a luz sempre acesa.


OS TALENTOS

Agora só falta considerarmos aquela parte do discurso de nosso Senhor na qual Ele volta a tratar do assunto tão solene da responsabilidade do ministério durante o tempo de Sua ausência. Que isto está intimamente ligado à esperança de Sua vinda é evidente pelo fato de que, tendo concluído a parábola das dez virgens com a forte expressão, "vigiai, pois, porque não sabeis o dia nem a hora", Ele segue dizendo: "Porque isto é também como um homem que, partindo para fora da terra, chamou os seus servos, e entregoulhes os seus bens". Existe uma diferença essencial entre a parábola dos talentos e a do servo em Mateus 24:45-51. Na última, temos o ministério dentro da casa. Na primeira, por outro lado, temos o ministério no exterior, no mundo. Mas em cada uma encontramos um grande fundamento para todo ministério, a saber, o dom e a autoridade de Cristo. "Chamou os seus servos, e entregou-lhes os seus bens". Os servos são dEle, e os bens são dEle. Ninguém além de Cristo, o Senhor, pode colocar um homem no ministério, do mesmo modo como ninguém pode conceder dons espirituais. 

É totalmente impossível para qualquer um ser ministro de Cristo a menos que Ele próprio o tenha chamado e preparado para a obra. Trata-se de algo tão claro que não admite um questionamento sequer. Um homem pode ser ministro de uma religião, pode pregar as doutrinas do evangelho e ensinar teologia, mas não pode ser um ministro de Cristo a menos que o próprio Cristo o chame e o prepare com dons para a obra. Se fosse uma questão de ministério dentro da casa, a questão seria "que o seu senhor constituiu sobre a sua casa". Caso se trate de uma questão de ministério exterior, no mundo, nos é dito que Ele "chamou os seus servos, e entregou-lhes os seus bens". Este grande e primordial princípio do ministério está poderosamente incorporado nestas palavras de um dos maiores ministros que já existiu, quando ele diz: "Dou graças ao que me tem confortado [var. "me fortaleceu"], a Cristo Jesus Senhor nosso, porque me teve por fiel, pondo-me no ministério" (1 Tm 1:12). Assim deve ser em todos os casos, não importa qual seja a medida, o caráter ou a esfera do ministério. Somente Cristo, o Senhor, pode colocar alguém no ministério e capacitá-lo para o cumprir. 

Se não for assim, o caso ou será, ou de algum homem se colocando a si mesmo no ministério, ou de algum seu semelhante fazendo isso, ambos agindo igualmente de forma contrária à vontade de Deus e contra todos os princípios do verdadeiro ministério, conforme o ensino da Palavra. Se quisermos ser guiados pelas Escrituras, devemos ver que todo ministério, dentro ou fora da casa, deve ser uma designação divina e por capacitação divina. Se não for assim, é pior do que nada. Um homem pode declarar a si mesmo ministro ou ser feito um por seus colegas, mas é tudo em vão. Não é algo vindo do céu — não provém de Deus — não é feito por Jesus Cristo; e, no porvir, isso ficará manifesto e será julgado como uma das piores e mais ousadas formas de usurpação. É da maior importância que o leitor cristão agarre totalmente este grande princípio do ministério. Ele é tão simples quanto solene. 

E, além do mais, trata-se de algo sobre um fundamento verdadeiramente divino que não pode ser questionado por todo aquele que se submete — como todo cristão deveria se submeter — com absoluta e irrestrita submissão, à autoridade da divina Palavra. Que o leitor pegue sua Bíblia e leia cuidadosamente cada linha nela que trata do assunto do ministério. Se abrir na parábola do servo na casa, lerá: "Que o seu Senhor constituiu sobre a Sua casa". O servo não constitui a si mesmo e nem é ordenado por seus companheiros. A ordenação é divina. O mesmo acontece na parábola dos talentos, o mestre chama seus próprios servos e dá a eles os seus bens. O chamado e o aparelhamento são divinos. Temos outro aspecto da mesma verdade em Lucas 19. 

"Certo homem nobre partiu para uma terra remota, a fim de tomar para si um reino e voltar depois. E, chamando dez servos seus, deu-lhes dez minas, e disse-lhes: Negociai até que Eu venha". A diferença entre Lucas e Mateus parece ser esta: em Lucas, trata-se da responsabilidade humana; em Mateus o que está em destaque é a soberania divina. Mas em ambos o grande princípio essencial é claramente mantido e inquestionável, a saber, que todo ministério é por ordenação divina. A mesma verdade vem ao nosso encontro em Atos dos Apóstolos. Quando alguém precisou ser escolhido para preencher o lugar de Judas, apelaram para Jeová: "Tu, Senhor, conhecedor dos corações de todos, mostra qual destes dois [Tu] tens escolhido, para que tome parte neste ministério e apostolado". 

E até mesmo quando se trata de uma questão de responsabilidade local, como a dos diáconos em Atos 6, ou de anciãos, em Atos 14, trata-se de algo feito por ordenação direta dos apóstolos. Em outras palavras, é algo divino. Um homem não poderia ordenar a si mesmo diácono e muito menos ancião. No caso do primeiro, enquanto os diáconos cuidavam dos bens das pessoas, estes últimos deviam, segundo a ordem em graça e ternura moral do Espírito, selecionar homens em quem pudessem confiar; mas a ordenação era divina, tanto dos diáconos como dos anciãos. 

Assim, seja ela uma questão de dom ou de responsabilidade local, tudo permanece sobre uma base puramente divina. Este é o ponto de suma importância. Além disso, se abrirmos nas epístolas veremos que a mesma grande verdade irá brilhar em pleno e radiante fulgor diante de nós. Assim, no início de Romanos 12 lemos: "Porque pela graça que me é dada, digo a cada um dentre vós que não pense de si mesmo além do que convém; antes, pense com moderação, conforme a medida da fé que Deus repartiu a cada um. Porque assim como em um corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma operação, Assim nós, que somos muitos, somos um só corpo em Cristo, mas individualmente somos membros uns dos outros. 

De modo que, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada..." Em 1 Coríntios 12 lemos: "Mas agora Deus colocou os membros no corpo, cada um deles como quis" (versículo 18). E, mais uma vez, "a uns pôs Deus na igreja, primeiramente apóstolos..." (versículo 28). O mesmo em Efésios 4: "Mas a graça foi dada a cada um de nós segundo a medida do dom de Cristo". Todas estas passagens, e muitas outras que poderiam ser citadas, sevem para estabelecer a verdade que nós desejamos muito mostrar a nossos leitores, a saber, que o ministério em todas as suas áreas é divino — provém de Deus, vem do céu e é por Jesus Cristo. 

Não existe absolutamente coisa alguma no Novo Testamento relacionada a algum tipo de autoridade humana para ministrar na Igreja de Deus. Onde quer que procuremos entre as páginas sagradas, só encontraremos a mesma bendita doutrina que está contida naquela breve sentença de nossa parábola: "Chamou os seus servos, e entregou-lhes os seus bens". Toda a doutrina do Novo Testamento relacionada ao ministério está incorporada aqui; e insistimos sinceramente com o leitor cristão que permita que esta doutrina domine completamente sua alma e exerça toda sua influência sobre o seu caráter, andar e conduta.* 

[* Não restringimos, de forma alguma, a aplicação dos "talentos" a alguns dons espirituais específicos. Cremos que a parábola se aplica a um amplo espectro do serviço cristão, do mesmo modo que a parábola das dez virgens abrange um amplo espectro da profissão cristã.] 

Mas talvez a pergunta que se faça seja esta: Não ocorre uma adaptação do vaso para o dom espiritual que é depositado nele? Sem dúvida alguma, e esta mesma adaptação é claramente apresentada nas palavras de nossa parábola: "E a um deu cinco talentos, e a outro dois, e a outro um, a cada um segundo a sua capacidade". Este é um ponto do mais profundo interesse e jamais deve ser perdido de vista. O Senhor conhece o uso que pretende fazer de um homem. Ele conhece o caráter do dom que pretende depositar no vaso, e assim Ele dá forma ao vaso e molda o homem adequadamente. Não podemos duvidar que Paulo era um vaso especialmente formado por Deus para o lugar que depois iria ocupar, e para a obra que iria fazer. 

E assim acontece em todos os casos. Se Deus designa um homem para ser um orador em público, Ele lhe dá pulmões, dá a ele uma voz, proporciona uma estrutura física adaptada para a obra que pretende que ele faça. O dom vem de Deus; mas há sempre uma referência muito clara à habilidade do homem. Se isto for perdido de vista, nossa compreensão do verdadeiro caráter do ministério certamente será bastante imperfeita. Jamais devemos nos esquecer de duas coisas, a saber, do dom divino e do vaso humano no qual o dom é depositado. Existe a soberania de Deus e existe a responsabilidade do homem. Quão perfeitos e belos são todos os caminhos de Deus! 

Mas, oh!, o homem estraga tudo e o mero toque do dedo humano só serve para turvar o brilho da obra divina. Mesmo assim, jamais nos esqueçamos de que o ministério é divino em sua fonte, natureza, poder e objetivo. Se o leitor terminar este texto convencido de alma e coração acerca desta grande verdade, teremos alcançado nosso objetivo ao escrevê-lo. Mas nunca é demais perguntar: O que todo esse assunto do ministério tem a ver com a vinda do Senhor? Muita coisa, em diversos aspectos. Acaso nosso bendito Senhor não apresentou o tema por vezes seguidas em Seu discurso no Monte das Oliveiras? E porventura este discurso não é todo ele uma resposta à pergunta dos discípulos, "que sinal haverá da Tua vinda e do fim do mundo?" 

Não é a Sua vinda o grande e proeminente assunto do discurso como um todo, e de cada seção dele em particular? Sem dúvida alguma. E qual é o próximo tema proeminente? Acaso não é o ministério? Veja a parábola do servo a quem é dada a responsabilidade de cuidar da casa. Como ele deve servir? Tendo em vista o retorno de seu Senhor. 

Do mesmo modo o ministério tem uma conexão com a partida e retorno do Mestre. Ele se encontra entre estes dois grandes eventos e é caracterizado por eles. E o que é que leva ao fracasso no ministério? Perder de vista a volta do Senhor. O servo mau diz em seu coração, "meu Senhor tarde virá", e, como consequência, começa "a espancar os seus conservos, e a comer e a beber com os ébrios". O mesmo ocorre na parábola dos talentos. A palavra solene e instigante para a alma é "negociai até que Eu venha". Em suma, aprendemos que o ministério, seja ele na casa de Deus ou fora, no mundo, deve ser exercido tendo sempre em vista a volta do Senhor. "E muito tempo depois veio o senhor daqueles servos, e fez contas com eles". 

Todos os servos precisam ter sempre em mente o solene fato de que haverá um tempo quando será feito o acerto de contas. Isto é o que irá controlar seus pensamentos e sentimentos em tudo o que diz respeito ao seu ministério. Atente para as importantes palavras a seguir, com as quais um servo procura animar outro: "Conjuro-te, pois, diante de Deus, e do Senhor Jesus Cristo, que há de julgar os vivos e os mortos, na Sua vinda e no Seu reino, que pregues a palavra, instes a tempo e fora de tempo, redarguas, repreendas, exortes, com toda a longanimidade e doutrina. Porque virá tempo em que não suportarão a sã doutrina; mas, tendo comichão nos ouvidos, amontoarão para si doutores conforme as suas próprias concupiscências; e desviarão os ouvidos da verdade, voltando às fábulas. Mas tu, sê sóbrio em tudo, sofre as aflições, faze a obra de um evangelista, cumpre o teu ministério. 

Porque Eu já estou sendo oferecido por aspersão de sacrifício, e o tempo da minha partida está próximo. Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a Sua vinda" (2 Tm 4:1-8). Porventura esta tocante e importante passagem não nos mostra como o ministério está intimamente conectado à vinda do Senhor? 

O bendito apóstolo, o mais devotado, dotado e eficaz obreiro que já trabalhou na vinha de Cristo, o mais habilidoso mordomo a manusear os mistérios de Deus, o mais sábio construtor, o grande ministro da Igreja e pregador do evangelho, o incomparável servo, este raro e precioso vaso, levou adiante sua obra, cumpriu seu ministério e exerceu suas santas responsabilidades tendo sempre em vista "aquele dia". Ele aguardava, e continua aguardando, aquela solene e gloriosa ocasião quando o justo Juiz colocará sobre sua fronte "a coroa da justiça". 

E acrescenta, com terna doçura, "não somente a mim, mas também a todos os que amarem a Sua vinda". Isto é peculiarmente tocante. Haverá uma coroa de justiça "naquele dia", não apenas para o dotado, laborioso e devotado Paulo, mas para cada um que ame a vinda de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Não há dúvida de que Paulo terá, em sua coroa, gemas de um brilho peculiar; mas, antes que alguém pense que a coroa de justiça era só para Paulo, ele acrescenta estas ternas palavras: "também a todos os que amarem a Sua vinda". O Senhor seja louvado por tais palavras! 

Possam elas ter o efeito de despertar nosso coração, não apenas para amar a vinda de nosso Senhor, mas também para servir com uma devoção mais intensa e dedicada tendo em vista aquele dia glorioso! Que as duas coisas estão intimamente conectadas podemos ver na sequência da parábola dos talentos. Não há muito que possamos fazer além de citar as palavras de nosso Senhor. Quando os servos receberam os talentos, lemos que "o que recebera cinco talentos negociou com eles, e granjeou outros cinco talentos. 

Da mesma sorte, o que recebera dois, granjeou também outros dois. Mas o que recebera um, foi e cavou na terra e escondeu o dinheiro do seu senhor. E muito tempo depois veio o senhor daqueles servos, e fez contas com eles. Então aproximou-se o que recebera cinco talentos, e trouxe-lhe outros cinco talentos, dizendo: Senhor, entregaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco talentos que granjeei com eles. E o seu senhor lhe disse: Bem está, servo bom e fiel. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor. 

E, chegando também o que tinha recebido dois talentos, disse: Senhor, entregaste-me dois talentos; eis que com eles granjeei outros dois talentos. Disselhe o seu Senhor: Bem está, bom e fiel servo. Sobre o pouco foste fiel, sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor". É interessante e instrutivo notar a diferença entre a parábola dos talentos, conforme ela é contada em Mateus, e a parábola dos dez servos em Lucas 19. Em Mateus trata-se de uma questão da soberania divina; em Lucas trata-se da responsabilidade humana. 

Nesta, cada um recebe uma soma igual, mas na outra um recebe cinco, outro dois, conforme a vontade do mestre. Então, quando chega o dia da prestação de contas, encontramos em Lucas uma recompensa clara em conformidade com o trabalho feito, enquanto em Mateus a palavra é: "sobre muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor". Não lhes é dito o que receberão, ou sobre quantas coisas serão colocados. O mestre é soberano, tanto em Seus dons como nas recompensas; e o ponto alto disso tudo é: "entra no gozo do teu senhor". Isto, para um coração que ama o Senhor, está além de qualquer outra coisa. É verdade que haverá as dez cidades e as cinco cidades. Haverá uma recompensa ampla, distinta e definitiva pela responsabilidade exercida, pelo serviço apresentado e pelo trabalho executado. 

Tudo será recompensado. Mas, acima e além de tudo brilha esta preciosa palavra: "Entra no gozo do teu senhor". Nenhuma recompensa poderia jamais se igualar a isto. O senso de amor que transpira destas palavras levará cada um a lançar sua "coroa da justiça" aos pés de seu Senhor. A própria coroa que o justo Juiz dará, nós de bom grado a lançaremos aos pés de um amável Salvador e Senhor. Basta um sorriso Seu para tocar o coração com muito maior poder e profundidade que a mais fulgurante coroa colocada sobre a fronte. Uma palavra mais antes de terminarmos. Quem não trabalhou? Quem escondeu o dinheiro de seu senhor? Quem demonstrou ser um "mau e negligente servo"? 

Aquele que não conhecia o coração de seu mestre, o caráter de seu mestre, o amor de seu mestre. "Mas, chegando também o que recebera um talento, disse: Senhor, eu conhecia-te, que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhaste; e, atemorizado, escondi na terra o teu talento; aqui tens o que é teu. Respondendo, porém, o seu senhor, disselhe: Mau e negligente servo; sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei? Devias então ter dado o meu dinheiro aos banqueiros e, quando eu viesse, receberia o meu com os juros. 

Tirai-lhe pois o talento, e dai-o ao que tem os dez talentos. Porque a qualquer que tiver será dado, e terá em abundância; mas ao que não tiver até o que tem serlhe-á tirado. Lançai, pois, o servo inútil nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes". Quão terrível e solene! Que imenso contraste entre os dois servos! Um conhece, ama, confia em seu senhor e o serve. O outro esconde, teme, desconfia e não faz coisa alguma. Um entra no gozo do seu senhor, o outro é lançado nas trevas exteriores, um lugar de pranto e ranger de dentes. Quão solene! Quão persuasivo para a alma é isso tudo! E quando é que tudo se revela? Quando o Mestre volta! 

[Nota - Podemos acrescentar, em conexão com as observações feitas sobre o ministério, que todo cristão tem seu lugar e obra específica para desempenhar. Todos são solenemente responsáveis diante do Senhor em saber seu lugar e ocupá-lo, em conhecer seu trabalho e executá-lo. Trata-se de uma verdade clara, prática e plenamente confirmada pelo princípio sobre o qual temos insistido, a saber, que todo ministério e toda obra deve ser recebida das mãos do Mestre, executada sob Sua supervisão e em plena consciência de Sua vinda. Estas coisas nunca devem ser esquecidas.]


OBSERVAÇOES FINAIS

Devemos agora concluir esta série de textos, e é com um forte sentimento de relutância que o fazemos. O tema é por demais interessante, profundamente prático e proveitoso em extremo. Todavia, ele é bastante sugestivo e abre um extenso campo de visão para a mente espiritual explorar com um interesse que nunca termina, pois o assunto é inexaurível. Todavia, devemos, ao menos por enquanto, finalizar nossas meditações nesta linha de verdade tão maravilhosa, mas ao fazê-lo, estamos ansiosos por chamar a atenção do leitor, da forma mais sucinta, para uma ou duas coisas que mal foram mencionadas ao longo destes textos. Nós as consideramos não só interessante, mas de verdadeiro valor prático para ajudar a esclarecer o entendimento de muitos ramos do grande assunto que tem ocupado nossa atenção. O leitor que viajou conosco ao longo das várias ramificações de nosso assunto irá se lembrar de uma referência rápida àquilo que nos aventuramos a chamar de "um intervalo, pausa ou parêntese despercebido" na relação de Deus com Israel e com a terra. 

Trata-se de um ponto do mais profundo interesse, e esperamos ser capazes de mostrar ao leitor que não se trata de alguma questão curiosa, de um assunto misterioso e sombrio, ou de uma noção favorita de alguma escola ou interpretação profética em particular. Muito pelo contrário, consideramos isto como um ponto que derrama uma torrente de luz sobre muitas ramificações de nosso assunto como um todo. Foi o que descobrimos para nós mesmos, e é assim que desejamos apresentar aos nossos leitores. Aliás, questionamos com veemência se porventura alguém pode entender corretamente a profecia ou sua verdadeira posição e consequências, sem enxergar o sutil intervalo ou pausa à qual nos referimos acima. Mas vamos nos voltar diretamente para a Palavra e abrir no capítulo 9 do livro de Daniel. Os primeiros versículos desta notável seção nos revelam o amado servo de Deus em um profundo exercício de alma relacionado à triste condição se seu tão amado povo de Israel — uma condição na qual, através do Espírito de Cristo, ele entra com profundidade. Embora ele próprio não tivesse participado pessoalmente dessas ações que trouxeram ruína à nação, mesmo assim ele se identifica, da forma mais completa, com o povo, e toma para si os seus pecados em confissão e juízo-próprio diante de Deus. 

Não podemos, no momento, tentar citar toda a extraordinária oração e confissão de Daniel, mas o assunto que imediatamente nos diz respeito agora é apresentado no versículo 20. "Estando eu ainda falando e orando, e confessando o meu pecado, e o pecado do meu povo Israel, e lançando a minha súplica perante a face do Senhor, meu Deus, pelo monte santo do meu Deus, estando eu, digo, ainda falando na oração, o homem Gabriel, que eu tinha visto na minha visão ao princípio, veio, voando rapidamente, e tocou-me, à hora do sacrifício da tarde. Ele me instruiu, e falou comigo, dizendo: Daniel, agora saí para fazer-te entender o sentido. No princípio das tuas súplicas, saiu a ordem, e eu vim, para to declarar, porque és mui amado; considera, pois, a palavra, e entende a visão. Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade, para cessar a transgressão, e para dar fim aos pecados, e para expiar a iniquidade, e trazer a justiça eterna, e selar a visão e a profecia, e para ungir o Santíssimo" (Dn 9:20-24). Em razão de nosso limitado espaço não poderemos entrar em algum argumento mais complexo para provar que as "setenta semanas" da passagem acima significam, na realidade, quatrocentos e noventa anos. Assumimos isto como sendo um fato. 

Acreditamos que Gabriel tenha sido comissionado a instruir o profeta amado e a informá-lo de que, a partir da ordem para reconstruir Jerusalém, deveria passar um período de quatrocentos e noventa anos, e então Israel seria introduzido na bênção. Isto é algo tão simples e claro quanto qualquer coisa pode ser. Podemos asseverar, com total confiança, que é menos provável que o sol nasça amanhã na hora esperada, que o povo de Daniel ser introduzido na bênção no final do período acima mencionado pelo mensageiro angelical. Trata-se de algo tão certo quanto o trono de Deus. Nada pode impedir isso. 

Nem todos os poderes da terra e do inferno juntos são capazes de barrar o total e perfeito cumprimento da Palavra de Deus saída da boca de Gabriel. Quando o último grão de areia do último dos quatrocentos e noventa anos deixar a ampulheta, Israel entrará na posse de toda a preeminência e glória à qual foi destinado. É impossível ler Daniel 9:24 e não enxergar isto. Mas pode ser que o leitor se sinta disposto a perguntar — e a perguntar com certo espanto — "Porventura os quatrocentos e noventa anos já não passaram há muito tempo?" A resposta é que seguramente não. Se assim fosse, Israel estaria agora em sua própria terra, sob o bendito reinado de seu próprio Messias amado. As Escrituras não podem falhar e tampouco nós podemos tratar suas afirmações de maneira leviana e superficial, como se pudessem significar qualquer coisa, ou tudo, ou coisa alguma. A palavra é precisa. "Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo". 

Nem mais, nem menos do que setenta semanas. Se isto significar literalmente semanas, a passagem não tem qualquer sentido ou significado. Seria um insulto aos nossos leitores perder tempo combatendo um absurdo deste. Mas se Gabriel se referiu a setenta semanas de anos, como estamos totalmente persuadidos de que tenha sido o caso, então temos diante de nós um período bem distinto e definido — um período que se estende do momento em que Ciro emitiu a ordem para restaurar Jerusalém, até o momento da restauração de Jerusalém. Todavia ainda assim o leitor pode querer perguntar, "Como pode ser assim? Passou muito mais que quatrocentos e noventa anos, quatro vezes mais, desde que o rei da Pérsia emitiu sua ordem, e mesmo assim não há sinal da restauração de Israel. Certamente deve existir algum outro modo de interpretar as setenta semanas". Nada podemos fazer além de repetir nossa afirmação, de que os quatrocentos e noventa anos ainda não se cumpriram. Houve uma pausa — um parêntese, um intervalo longo e despercebido. 

Que o leitor observe atentamente Daniel 9:25-26: "Sabe e entende: desde a saída da ordem para restaurar, e para edificar a Jerusalém, até ao Messias, o Príncipe, haverá sete semanas [49 anos], e sessenta e duas semanas [434 anos]; as ruas e o muro se reedificarão, mas em tempos angustiosos" ou, "tempos apertados", isto é, as ruas e o muro de Jerusalém foram construídos no menor dos dois períodos citados, ou em quarenta e nove anos. "E depois das sessenta e duas semanas será cortado o Messias, mas não para Si mesmo" ou "e não será mais". É aqui que chegamos a essa marcante, memorável e solene época.

O Messias, ao invés de ser recebido, é cortado. No lugar de sua ascensão ao trono de Davi, Ele vai para a cruz. Ao invés de entrar na posse de todas as promessas, Ele nada tem. Sua única porção — no que diz respeito a Israel e à terra — foi a cruz, o vinagre, a lança e o túmulo emprestado. O Messias foi rejeitado, cortado e nada ganhou. E agora? Deus mostrou Sua intenção suspendendo por um tempo Suas ações dispensacionais relativas a Israel. O curso do tempo é interrompido. Cria-se uma grande lacuna. Quatrocentos e oitenta e três anos se cumprem; restam sete — uma semana cancelada, e todo o tempo desde a morte do Messias passou como um intervalo não percebido — uma pausa ou parêntese, durante o qual Cristo tem estado escondido nos céus, e o Espírito Santo tem trabalhado na terra na formação do corpo de Cristo, a Igreja, a noiva celestial. Quando o último membro tiver sido incorporado a este corpo, o próprio Senhor virá e receberá o Seu povo para Si, para conduzi-lo de volta à casa do Pai, para estar ali com Ele na inefável comunhão daquele bendito lar, enquanto Deus, por meio de Suas ações governamentais, prepara Israel e a terra para a introdução do Primogênito no mundo. 

Quanto a este intervalo e tudo o que deveria ocorrer dentro dele, Gabriel mantém um profundo segredo. Se ele entendia ou não isso, não é esta a questão. Fica claro que ele não estava comissionado a falar sobre o assunto, mesmo porque ainda não havia chegado a hora de fazê-lo. Ele passa, com um salto misterioso e maravilhoso, sobre eras e gerações — vai de um cabo a outro da carta marítima profética, e cita em uma ou duas breves sentenças um período extenso de aproximadamente dois mil anos. 

A tomada de Jerusalém pelos romanos é, assim, rapidamente mencionada: "O povo do príncipe, que há de vir, destruirá a cidade e o santuário". Então é apresentado um período que já dura dezoito séculos da seguinte maneira: "E o seu fim será com uma inundação; e até ao fim haverá guerra; estão determinadas as assolações". Então, com grande rapidez, somos conduzidos ao tempo do fim, quando a última das setenta semanas, os últimos sete anos dos quatrocentos e noventa, se cumprirão. "E ele [o Príncipe] firmará aliança com muitos [judeus] por uma semana [sete anos]; e na metade da semana fará cessar o sacrifício e a oblação; e sobre a asa das abominações virá o assolador, e isso até à consumação; e o que está determinado será derramado sobre o assolador". 

Chegamos aqui ao final dos quatrocentos e noventa anos que foram determinados ou distribuídos para o povo de Daniel. Tentar interpretar este período sem enxergar a pausa e o longo intervalo despercebido, acabará necessariamente lançando a mente em total confusão. É algo impossível de ser feito. Inúmeras teorias já foram divulgadas, especulações e cálculos sem fim foram tentados, mas tudo em vão. Os quatrocentos e noventa anos ainda não se cumpriram e tampouco se cumprirão até que a Igreja tenha deixado definitivamente este cenário e subido para estar com seu Senhor em Seu brilhante lar celestial. Os capítulos 4 e 5 de Apocalipse nos mostram o lugar que os santos celestiais deverão ocupar durante a última das setenta semanas de Daniel, enquanto encontramos em Apocalipse 6-18 os vários atos governamentais de Deus, preparando Israel e a terra para a introdução do Primogênito no mundo.* 

[* Estamos cientes de que existe um debate entre os expositores, se os eventos de Apocalipse 6-18 devem ocupar uma semana inteira ou apenas metade. Não tentamos oferecer aqui uma opinião. Alguns consideram que os ministérios públicos de João Batista e de nosso Senhor tenham ocupado uma semana, ou sete anos, e que em conseqüência da rejeição de ambos por Israel, a semana teria sido cancelada e ficado por se cumprir. Trata-se de uma questão interessante, mas que de modo algum afeta os grandes princípios que temos diante de nós ou a interpretação do livro de Apocalipse. Podemos acrescentar que as expressões "quarenta e dois meses" — "mil duzentos e sessenta dias" — "um tempo, e tempos, e a metade de um tempo" indicam o período de meia semana ou três anos e meio.] 

Queremos muito esclarecer estas questões para o leitor. Elas nos têm ajudado muito no entendimento da profecia e eliminaram várias dificuldades. Estamos plenamente convencidos de que ninguém pode entender o livro de Daniel, ou mesmo o escopo geral da profecia, se não enxergar que a última das setenta semanas ainda está para ser cumprida. Nem mesmo um jota ou til da Palavra de Deus pode jamais passar, e considerando que Ele declarou que "setenta semanas estão determinadas sobre" o povo de Daniel, e que no final desse período ele será introduzido na bênção, fica claro que o período ainda não se cumpriu. Mas a menos que enxerguemos o intervalo, e a suspensão na contagem do tempo em função da rejeição do Messias, não há como decifrar o cumprimento das setenta semanas de Daniel, ou dos quatrocentos e noventa anos. 

Outro fato importante para o leitor ter em mente é este: a Igreja não tem qualquer parte nos procedimentos de Deus para com Israel e a terra. A Igreja não pertence ao tempo, mas à eternidade. Ela não é terrena, mas celestial. Ela é chamada à existência durante um intervalo não registrado — um intervalo ou parêntese resultante do Messias ter sido cortado. Humanamente falando, se Israel tivesse recebido o Messias, então as setenta semanas ou quatrocentos e noventa anos teriam se cumprido. Mas Israel rejeitou seu Rei, e Deus O chamou à Sua presença até que o povo reconheça sua iniqüidade. 

Deus suspendeu seus procedimentos públicos para com Israel e a terra, apesar de estar certamente controlando todas as coisas por Sua providência, e mantendo Seu olhar sobre a semente de Abraão, sempre amada por causa do patriarca. Enquanto isso Ele está tirando dentre judeus e gentios esse corpo chamado Igreja, para ser uma companhia para Seu Filho na glória celestial — para estar totalmente identificada com Ele em Sua atual rejeição neste mundo, e para aguardar em santa paciência por Seu glorioso advento. Tudo isso distingue a posição do cristão da forma mais clara possível. Sua porção e expectativas são também definidas com igual clareza. De nada adianta procurar na página profética pela posição da Igreja, sua vocação e esperança. Não está ali. É algo completamente fora de propósito para o cristão ficar ocupado com datas e eventos históricos, como se estas coisas lhe dissessem respeito. Não há dúvida de que todas estas coisas têm seu lugar, seu valor e seu interesse, quando conectadas aos desígnios de Deus para com Israel e a terra. Mas o cristão não deve jamais perder de vista o fato de pertencer ao céu, de estar inseparavelmente ligado a um Cristo que foi rejeitado na terra e aceito no céu, que sua vida está oculta com Cristo em Deus e que é seu santo privilégio aguardar, dia a dia, hora a hora, pela vinda de seu Senhor. 

Nada deve ofuscar a compreensão dessa bendita esperança por um momento sequer. Nada, senão uma só coisa, pode causar seu atraso, e esta é a paciência de nosso Senhor, que não deseja que alguém pereça, mas que todos venham a arrepender-se — preciosas palavras estas para um mundo culpado e perdido! A salvação está pronta para ser revelada, e Deus está pronto para julgar. Nada há para se esperar além da reunião do último eleito e então — oh! pensamento bendito! — nosso querido e amável Salvador virá e nos receberá para Si, para estarmos com Ele onde Ele está, e para jamais sairmos de Sua presença. Então, quando a Igreja partir para estar com seu Senhor no lar celestial, Deus voltará a agir publicamente com Israel. 

O povo será levado a uma grande tribulação durante a semana à qual já nos referimos. Mas no final daquele período de inigualável pressão e sofrimento, seu Messias há tanto rejeitado aparecerá para seu alívio e libertação. Ele virá como o cavaleiro montado no cavalo branco, acompanhado pelos santos celestiais. Ele executará um julgamento sumário sobre Seus inimigos, e tomará para Si Seu grande reino e poderio. Os reinos do mundo se tornarão reinos de nosso Senhor e de Seu Cristo. 

Satanás será preso por mil anos e todo o universo repousará sob o bendito e benevolente governo do Príncipe da paz. Finalmente, ao término dos mil anos, Satanás será solto e terá permissão para fazer mais um desesperado esforço — um esforço que terminará com sua derrota e confinamento eterno no lago de fogo, para ser ali atormentado juntamente com a besta e o falso profeta por toda a eternidade. Em seguida vem a ressurreição e o juízo dos ímpios que morreram, quando serão lançados no lago que queima com fogo e enxofre — terrível e tremendo pensamento este! 

Coração algum jamais será capaz de conceber — língua alguma será capaz de contar — os horrores daquele lago de fogo. Mas mal temos tempo para tratar dessa imagem horrível e sinistra e eis que diante da visão da alma surgem as indizíveis glórias dos novos céus e da nova terra: a santa cidade é vista descendo do céu, e sons angelicais enchem os ouvidos, "Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o Seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o Seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda a lágrima; e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas. 

E o que estava assentado sobre o trono disse: Eis que faço novas todas as coisas". Oh, amado leitor cristão, que cenas temos diante de nós! Que imensas realidades! Que fulgurantes glórias morais! Possamos nós viver na luz e poder dessas coisas! Possamos acalentar essa bendita esperança de ver Aquele que nos amou e Se entregou a Si mesmo por nós — que não gostaria de desfrutar de Sua glória sozinho, mas suportou a ira de Deus para poder nos ligar Consigo e compartilhar conosco todo o Seu amor e glória para todo o sempre. Oh! viver por Cristo e aguardar por Sua vinda! 

Nas alturas do céu, lá na casa do Pai, Ele foi preparar-me lugar Grato de tanto amor, de minha boca hoje sai, Meu louvor e um canto sem par. Muito em breve estarei lá, de branco, na luz, Onde as trevas jamais vão entrar, Com meus olhos verei o meu terno Jesus, E Suas marcas de amor, contemplar. Findo todo o pesar e o pecado cruel, Livre, então, para sempre do mal, Pela graça de Deus, na mansão lá no céu, Viverei esse dia eternal.

7. A Ceia do Senhor

A ordenação da Ceia do Senhor deve ser considerada por toda mente espiritual, como uma prova particularmente tocante do benigno cuidado do Senhor e de Seu terno amor por Sua Igreja. Desde a época de sua instituição até o tempo presente, a Ceia tem sido um testemunho contínuo, embora silencioso, da verdade que o inimigo tem procurado corromper e colocar de lado por todos os meios ao seu alcance, de que a redenção é um fato consumado para ser desfrutado até pelo mais simples crente em Jesus. Passaram-se dezoito séculos* desde que o Senhor Jesus designou "o pão e o cálice" na Ceia como significativos símbolos do Seu corpo oferecido e do Seu sangue derramado por nós, e apesar de toda heresia, toda divisão, e toda controvérsia e discórdia, e da guerra de princípios e preconceitos que a página manchada da história eclesiástica registra, esta ordenação tão expressiva tem sido observada pelo povo de Deus em todas as épocas. 

*Nota: O autor viveu no século XIX 

É verdade que o inimigo tenha conseguido, em um amplo segmento da Igreja professa, envolver a Ceia do Senhor em uma mortalha de negra superstição, apresentando-a de uma maneira tal que efetivamente escondesse do participante a grandiosa e eterna realidade daquilo que é memorial, substituindo Cristo e Seu sacrifício consumado por uma ordenança sem efeito algum - uma ordenança que, além de tudo, pelo modo como é administrada, prova ser de total inutilidade e oposição à verdade. Mesmo assim, não obstante o erro fatal de Roma relativo à ordenança da Ceia do Senhor, a mesma Ceia continua a comunicar, a todo ouvido circunciso e a toda mente espiritual, a mesma verdade profunda e preciosa - ela anuncia "a morte do Senhor até que venha" (1 Co 11.26). 

O corpo foi oferecido, o sangue foi derramado UMA VEZ, para não ser mais repetido; e o partir do pão nada mais é do que o memorial dessa verdade emancipadora. Portanto, com que profundo interesse e gratidão deveria o crente contemplar "o pão e o cálice"! Sem que seja proferida uma única palavra, são ali anunciadas verdades ao mesmo tempo, tão preciosas quanto gloriosas: a graça reinando; a redenção consumada; o pecado tirado; a justiça eterna introduzida; o aguilhão da morte banido; a glória eterna assegurada; "graça e glória" reveladas como o dom gracioso de Deus e do Cordeiro - a unidade de "um só corpo", assim batizado por "um Espírito". Que festa! Conduz a alma, num abrir e fechar de olhos, de volta no tempo, através de um período de mil e oitocentos anos, e mostra-nos o próprio Senhor, "na noite em que foi traído", sentado à mesa da ceia e instituindo ali uma festa que, desde aquela noite solene até ao raiar da manhã, deveria conduzir cada coração crente, ao mesmo tempo, para a cruz que passou e para a glória que virá! 

Desde então, esta festa, e pela própria simplicidade do seu caráter e devido ao profundo significado dos seus elementos, tem condenado a superstição, que iria querer deificá-la e adorá-la, a irreverência, que iria procurar profaná-la, e a infidelidade, que a poria inteiramente de lado. E, além disso, tudo, ao mesmo tempo que tem condenado todas estas coisas, ela tem fortalecido, confortado e levado refrigério ao coração de milhões dos amados filhos de Deus. É doce pensarmos nisto - é doce termos em mente, quando nos reunimos, no primeiro dia da semana, em torno da Ceia do Senhor, que apóstolos, mártires e santos têm se reunido em torno deste banquete e encontrado ali, segundo a sua medida de compreensão, refrigério e bênção. 

Escolas de teologia têm surgido, florescido e desaparecido; doutores e pais têm acumulado volumes de teologia; heresias implacáveis têm obscurecido a atmosfera e rasgado a igreja professa de uma ponta à outra; a superstição e o fanatismo têm mostrado as suas teorias sem fundamento e ideias extravagantes; cristãos professos dividiram-se em inumeráveis seitas - todas essas coisas aconteceram, mas a Ceia do Senhor tem continuado, em meio às trevas e confusão, a contar a sua história simples, mas abrangente: "Porque todas às vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que venha" (I Cor. 11:26). 

Preciosa festa! Graças a Deus pelo grande privilégio de celebrá-la! E ainda assim ela não passa de um símbolo cujos elementos devem ser, aos olhos naturais, pobres e desprezíveis. Pão partido, vinho derramado - quão simples! Somente a fé pode identificar o símbolo, as coisas representadas, e a fé não necessita das circunstâncias fortuitas que a falsa religião introduziu com o fim de acrescentar dignidade, solenidade e temor àquilo que deve todo o seu valor, seu poder e sua impressionabilidade ao fato de ser um memorial de um fato eterno que a falsa religião nega.. Que eu e você, querido leitor, possamos penetrar com mais alento e inteligência no significado da Ceia do Senhor, e com uma experiência mais profunda nessa bem-aventurança que é o partir aquele pão que é a "comunhão do corpo de Cristo" e o beber daquele cálice que é a "comunhão do sangue de Cristo". Ao terminar estas poucas linhas introdutórias, encomendo este artigo aos ternos cuidados do Senhor, rogando a Ele que possa usá-lo para as almas de Seu povo. *


PENSAMENTOS ACERCA DA CEIA DO SENHOR 

"Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei: isto é o Meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de Mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o Novo Testamento no Meu sangue: fazei isto, todas às vezes que beberdes, em memória de Mim. Porque todas às vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que venha" (I Cor. 11:23 a 26). 

Desejo fazer alguns comentários sobre o assunto da Ceia do Senhor, com o propósito de dirigir a atenção de todos aqueles que amam o nome de Cristo, e as coisas que Ele instituiu, a um interesse mais fervoroso e afetivo nesta importante e revigorante ordenança. Devemos bendizer ao Senhor por sua bondosa consideração instituindo, em vista de nossa necessidade, um memorial da Sua paixão, e também por haver estabelecido uma mesa à qual todos os Seus membros possam se achegar, sem qualquer outra condição além daquela que é indispensável: a ligação pessoal e obediência a Ele. 

O bendito Senhor conhecia muito bem a inclinação dos nossos corações de nos esquivarmos dEle, e uns dos outros, e pelo menos um dos Seus propósitos na instituição da Ceia foi o de impedir esta nossa tendência. 

Ele desejava reunir o Seu povo em torno da Sua bendita Pessoa; desejava pôr-lhes uma mesa onde, tendo em vista o Seu corpo ferido e o Seu sangue derramado, pudessem lembrar dEle e da intensidade do Seu amor por eles, e de onde pudessem também olhar adiante, para o futuro, e contemplar a glória da qual a cruz é o eterno fundamento. Ali, mais do que em qualquer parte, eles aprenderiam a esquecer as suas divergências e a amarem-se uns aos outros; ali poderiam ver à sua volta aqueles que o AMOR DE DEUS havia convidado para banquetear, e aos quais O SANGUE DE CRISTO teria tornado idôneos para que ali estivessem. 

Todavia, a fim de poder comunicar mais facilmente ao meu leitor o que tenho a dizer sobre este assunto, vou limitar-me aos quatro tópicos seguintes: 1. A natureza da ordenança da Ceia do Senhor. 2. As circunstâncias em que foi instituída a Ceia do Senhor. 3. Para quem foi instituída a Ceia do Senhor. 4. A ocasião e a maneira de celebrar a Ceia do Senhor.


1- A NATUREZA DA ORDENAÇÃO DA CEIA DO SENHOR

Este é um ponto de grande importância. Se não compreendermos a natureza desta ordenança, vamos nos perder em nossos pensamentos acerca dela. A Ceia é, portanto, pura e simplesmente uma festa de ação de graças - de agradecimento por graça já recebida. O próprio Senhor, quando da sua instituição, assinala o seu caráter dando graças: "E, tomando o pão, e havendo dado graças..." (Lc 22.19). 

Louvor, e não oração, é a expressão adequada àqueles que se sentam à mesa do Senhor. É verdade que tenhamos muito pelo que orar, muito a confessar, muito que lamentar, mas a mesa não é lugar para lamentações: a linguagem que emana dela é: "Dai bebida forte aos que perecem, e o vinho aos amargosos do espírito; para que bebam, e se esqueçam da sua pobreza, e do seu trabalho não se lembrem mais". (Pv 31.6,7). 

Nosso cálice é um "cálice de bênção", um cálice de ação de graças, o símbolo divinamente designado para aquele sangue precioso que obteve nosso resgate. "O pão que partimos não é porventura a comunhão do corpo de Cristo?" (1Co 10.16). 

Como, então, poderíamos parti-lo com corações tristes ou semblantes carregados? Poderiam os membros de uma família, depois das fadigas do dia, se assentar à mesa da ceia com corações tristes e semblantes descaídos? É claro que não. A ceia era a refeição mais importante da família, a única que reunia toda a família. Os rostos que talvez não fossem vistos durante o dia, certamente estariam presentes à mesa da ceia, e não há dúvida de que se sentiriam felizes por estarem ali. 

O mesmo deveria acontecer na Ceia do Senhor: a família deveria estar reunida ali, e quando reunidos, deveriam estar alegres, verdadeiramente felizes, no amor que os reúne. É verdade que cada coração pode ter a sua própria história peculiar - suas tristezas íntimas, provas, fracassos e tentações, coisas essas desconhecidas de todos os demais; mas não são elas o objeto a ser contemplado na ceia: expô-las seria desonrar o Senhor da festa, e fazer do cálice de bênção um cálice de dor. O Senhor nos convidou para a festa, e ordenou que, apesar de todas as nossas deficiências, puséssemos a plenitude do Seu amor e a eficácia do Seu sangue entre as nossas almas e tudo mais; e quando o olhar da fé está ocupado com Cristo, não há lugar para nada mais. 

Se o meu pecado for o objeto em vista e o que prende os meus pensamentos, é natural que eu deva sentir-me miserável, pois estou olhando na direção exatamente oposta daquilo que Deus ordena que eu contemple; estou recordando a minha miséria e pobreza, que é exatamente o que Deus me manda esquecer. Deste modo é perdido o verdadeiro caráter da ordenança que, ao invés de ser uma festa de gozo e alegria, torna-se uma ocasião de melancolia e de depressão espiritual; e a preparação para ela, e os pensamentos a seu respeito, acabam ficando mais para aquilo que se podia esperar em relação ao Monte Sinai (Êxodo 19), do que a alegre festa de família. 

Se alguma vez pudesse prevalecer um sentimento de tristeza na celebração dessa ordenança, seria, sem dúvida, quando da sua primeira instituição, quando, conforme veremos ao tratarmos do segundo ponto de nosso assunto, havia tudo aquilo que podia possivelmente produzir profunda tristeza e desolação de espírito. Todavia, mesmo assim, o Senhor Jesus pôde dar graças; o gozo que inundava a Sua alma era profundo demais para ser perturbado pelas circunstâncias ao Seu redor. Ele sentiu gozo até mesmo nas pisaduras e nos ferimentos de Seu corpo e no derramamento do Seu sangue, gozo esse que está muito além do alcance da compreensão e do sentimento humano. E se Ele pôde alegrar-se em espírito e dar graças ao partir aquele pão que deveria ser, para todas as gerações futuras dos fiéis, o memorial do Seu corpo oferecido, não deveríamos nós regozijarmos com isso, nós que estamos firmados nos benditos resultados de toda a Sua obra e paixão? Sim, isso nos faz regozijar. 

Mas alguém poderá perguntar: Não deve existir uma preparação adequada? Devemos nos sentar à mesa do Senhor com tanta indiferença como se nos sentássemos à mesa de uma ceia qualquer? É claro que não - precisamos ser genuínos em nossos motivos, e o primeiro passo para se conseguir isso é ter paz com Deus - aquela doce certeza de nossa salvação eterna que certamente não é o resultado de suspiros ou lágrimas de penitência vindos do homem, mas a consequência simples da obra consumada do Cordeiro de Deus, confirmada pelo Espírito de Deus. Conhecendo isto mediante a fé, sabemos o que é que nos torna perfeitamente aptos para Deus. Há muitos que pensam estar acrescentando honra à mesa do Senhor quando se aproximam dela com as suas almas curvadas até o pó, sob um sentimento do peso insuportável dos seus pecados. 

Tal pensamento só pode provir do legalismo do coração humano, essa fonte sempre fértil de pensamentos que são, ao mesmo tempo, desonrosos para Deus, desonrosos para a cruz de Cristo, injuriosos para o Espírito Santo e completamente perturbadores da nossa paz. Podemos nos sentir satisfeitos pela honra e a pureza da mesa do Senhor serem mais plenamente mantidas quando O SANGUE DE CRISTO é tido como o ÚNICO direito de aproximação, do que quando se acrescentam a ele a dor e a penitência humana.* 

*Nota: É necessário que tenhamos em mente que, apesar de ser somente o sangue de Cristo o que introduz o crente, em santa ousadia, na presença de Deus, ainda assim, em nenhum lugar, ele é apresentado como sendo nosso centro ou vínculo de união. 

É deveras precioso para cada alma lavada pelo sangue recordar, no secreto da presença divina, que o sangue expiador de Jesus removeu para sempre seu pesado fardo de pecado. Contudo, o Espírito Santo só pode nos reunir à Pessoa de um Cristo ressuscitado e glorificado, o Qual, havendo derramado o sangue do concerto eterno, subiu ao céu no poder de uma vida que não se acaba, à qual a justiça divina se liga inseparavelmente. 

Um Cristo vivo é, portanto, o nosso centro e elo de união. Havendo o sangue satisfeito a Deus a nosso respeito, reunimo-nos em torno de nossa Cabeça ressuscitada e exaltada no céu. "Eu, quando for levantado da Terra, todos atrairei a Mim" (Jo 12.32). 

Vemos, no cálice da Ceia do Senhor, o símbolo do sangue derramado; mas não nos reunimos em torno do cálice, nem do sangue, mas em torno dAquele que o verteu. O sangue do Cordeiro removeu todos os obstáculos à nossa comunhão com Deus; e, como prova disso, o Espírito Santo veio batizar os crentes em um só corpo, e reuni-los em torno da Cabeça ressuscitada e glorificada. 

O vinho é o memorial de uma vida derramada pelo pecado; o pão, o memorial de um corpo oferecido pelo pecado, mas não estamos reunidos em torno de uma vida que foi entregue, nem de um corpo oferecido, mas em torno de um Cristo vivo, que não morre mais, e cujo corpo não pode ser oferecido outra vez, nem o Seu sangue ser derramado de novo. Há nisto uma grande diferença; e quando encarada em conexão com a disciplina da casa de Deus, a diferença torna-se imensamente importante. Há muitos que estão prontos a julgar que, quando alguém é posto fora ou recusado à comunhão, esteja sendo questionado se existe uma ligação entre a sua alma e Cristo. 

Uma breve consideração deste ponto, à luz das Escrituras, bastará para provar que tal dúvida não é levantada. Se considerarmos o caso do "iníquo" de 1 Coríntios 5, veremos nele um que foi posto fora da comunhão da Igreja na Terra, mas que, todavia, era, como se costuma dizer, um cristão. Portanto, ele não foi afastado por não ser cristão: tal dúvida nunca foi levantada, nem deveria ser, não importa em que circunstância for. Como podemos nós dizer se alguém está eternamente ligado a Cristo ou não? Porventura temos nós a guarda do livro da vida do Cordeiro? 

Estaria a disciplina da Igreja de Deus fundamentada sobre o que nós podemos ou não saber? Estaria o homem de 1 Coríntios 5 eternamente ligado a Cristo ou não? Acaso a Igreja foi incumbida de investigar isso? Vamos até supor que pudéssemos ver o nome de alguém inscrito no livro da vida, ainda assim isto não seria a base para o recebermos na assembleia na Terra, ou para o conservarmos nela. 

A responsabilidade que cabe à Igreja é a de se conservar pura na doutrina, pura na prática e nas suas associações, e tudo isso com base no fato de ser a Casa de Deus. "Mui fiéis são os Teus testemunhos: a santidade convém à Tua casa, Senhor, para sempre" (Sl 93.5). Será que quando alguém era separado ou "cortado" da congregação de Israel, era por não ser ele israelita? De modo algum; mas por causa de alguma contaminação moral ou cerimonial que não poderia ser permitida na Assembleia de Deus. 

No caso de Acã (Josué 7), não obstante haver seiscentas mil almas que desconheciam o seu pecado, Deus disse, "Israel pecou". Por quê? Porque eram considerados como a Assembleia de Deus, e nela havia impureza que, se não fosse julgada, acabaria com tudo. Contudo, a questão da preparação será melhor entendida à medida que formos desenvolvendo o assunto. Quero, no entanto, frisar outro princípio ligado com a natureza da Ceia do Senhor, a saber, que existe o reconhecimento inteligente da unidade do corpo de Cristo em ligação com ela. "O pão que partimos não é porventura a comunhão do corpo de Cristo? Porque nós, sendo muitos, somos um só corpo: porque todos participamos do mesmo pão" (1Co 10.16,17). 

Ora, havia faltas lamentáveis e triste confusão a este respeito em Corinto: com efeito, o grande princípio da unidade parecia ter sido completamente perdido de vista em Corinto. Por isso o apóstolo observa que "quando vos ajuntais num lugar, não é para comer a ceia do Senhor. Porque, comendo, cada um toma antecipadamente a sua própria ceia" (1Co 11.20,21). Havia isolamento, e não unidade; era uma questão individual e não corpórea: a expressão "a sua própria ceia" é posta em claro contraste com "a ceia do Senhor". A Ceia do Senhor requer que o corpo seja totalmente reconhecido: se o corpo não for reconhecido, não passa de sectarismo, e o próprio Senhor já não tem o Seu lugar. Se a mesa for posta sobre qualquer princípio mais limitado do que aquele que abrange todo o corpo de Cristo, torna-se uma mesa sectária e perde seu direito sobre os corações dos fiéis. 

Por outro lado, onde quer que a mesa seja posta sobre este princípio divino, que abrange todos os membros do corpo simplesmente como tais, todo aquele que se recusar a comparecer, é culpado de cisma, e isto também segundo os claros princípios de 1 Coríntios 11. "E até importa que haja entre vós heresias, para que os que são aprovados se manifestem entre vós" (1 Co 11.19). Quando o grande princípio da Igreja é deixado de lado por qualquer segmento do corpo, é forçoso que haja heresias, para que os que são aprovados possam se manifestar. E em circunstâncias assim, torna-se o dever de cada um examinar-se a si próprio, e assim comer a Ceia. Os "aprovados" permanecem em contraste com os hereges, ou aqueles que faziam a sua própria vontade*. 

*Nota: Aqueles que entendem o grego, poderão observar que no original deste capítulo tão importante, a palavra traduzida por "aprovados" (vers.19) provém da mesma raiz daquela que é traduzida como "examine-se" (vers.28). 

Vemos assim que o homem que se examina a si mesmo, toma o seu lugar entre os que são aprovados, e é exatamente o contrário daqueles que estavam entre os hereges. Ora, o significado da palavra herege não é meramente aquele que professa falsas doutrinas, se bem que alguém possa ser herege por fazê-lo, mas trata-se de uma pessoa que persiste em fazer a sua própria vontade. O apóstolo sabia que importava haver heresias em Corinto, vendo que havia ali seitas: aqueles que estavam fazendo sua própria vontade agiam em oposição à vontade de Deus, e assim causavam divisão, pois a vontade de Deus tinha a ver com todo o corpo. Aqueles que estavam agindo hereticamente estavam desprezando a Igreja de Deus. Mas alguém poderia perguntar: Acaso as numerosas denominações existentes atualmente na Igreja professa não acabam com a ideia de se conseguir unir todo o corpo? E em circunstâncias assim, não é melhor que cada denominação tenha a sua própria mesa? 

Se existe algo que uma pergunta como esta possa insinuar é que o povo de Deus já não pode atuar segundo os princípios estabelecidos por Deus, mas que lhes resta a miserável alternativa de proceder de acordo com a conveniência humana. Porém, graças a Deus, não é este o caso. A verdade de Deus permanece para sempre, e o que o Espírito Santo ensina em 1 Coríntios 11 continua a ser uma obrigação para cada membro da Igreja de Deus. Havia divisões, heresias e iniquidade na assembleia de Corinto, do mesmo modo como há divisões, heresias e iniquidade hoje na Igreja professa; mas o apóstolo não lhes disse que estabelecessem mesas separadas como uma alternativa, nem mandou que deixassem de partir o pão como outra. Não, ele insiste com eles nos princípios e na santidade que estão associados com a "Igreja de Deus", e recomenda aos que podem examinar-se a si mesmos - os "aprovados" do versículo 19 - que comam. A expressão é, "assim coma". 

Portanto, devemos comer: nosso cuidado deve estar no "assim", conforme o Espírito de Deus nos ensina; e isto em verdadeiro reconhecimento da santidade e unidade da Igreja de Deus.* *Nota: Talvez seja conveniente acrescentarmos aqui uma palavra para orientação de algum cristão sincero que possa encontrar-se em circunstâncias que obriguem a decidir-se entre as pretensões de legitimidade que possam partir de mesas diferentes, as quais aparentemente tenham sido postas sobre o mesmo princípio. Encorajar alguém a tomar uma decisão correta é, no meu modo de ver, um serviço valioso. Suponhamos, portanto, que eu me encontrasse numa localidade onde duas ou mais mesas tivessem sido postas: o que deveria fazer? 

Creio que deveria indagar a origem dessas diferentes mesas, a fim de descobrir como se tornou necessário ter mais do que uma mesa. Se, por exemplo, um grupo de crentes, que se reúne num mesmo local, consente e retém entre eles quaisquer princípios errôneos acerca da Pessoa do Filho de Deus, ou que comprometam a unidade da Igreja de Deus na Terra; se, digo, tais princípios são permitidos e mantidos na assembleia, ou se as pessoas que os professam e ensinam são recebidas e reconhecidas pela assembleia; em tais deploráveis e humilhantes circunstâncias, aquele que é fiel não deve mais permanecer naquele lugar. Por quê? Porque não posso tomar o meu lugar a essa mesa sem me identificar com princípios claramente anticristãos. A mesma observação aplica-se, evidentemente, se for um caso de má conduta que não tenha sido julgado pela assembleia.

Agora, se acontece de um grupo de cristãos se encontrar nas circunstâncias acima descritas, a eles caberia a responsabilidade de manter A PUREZA DA VERDADE DE DEUS, reconhecendo, ao mesmo tempo, a unidade do corpo. Não somente temos de manter a graça da mesa do Senhor, como também a santidade dela. 

A verdade não pode ser sacrificada para manter a unidade, nem a verdadeira unidade será jamais prejudicada pela estrita observância da verdade. Não se deve imaginar que a unidade do corpo de Cristo seja prejudicada quando alguém se separa de uma comunidade fundamentada em princípios errôneos, ou que acolha más doutrinas ou práticas errôneas. 

A Igreja de Roma acusou os Reformadores de causarem divisão por terem eles se separado dela; mas sabemos que a Igreja de Roma era culpada, e ainda é, de cisma porque impunha falsas doutrinas sobre seus membros. Deve ficar bem claro que se a verdade de Deus é colocada em dúvida por qualquer comunidade, e que, para tornar-me membro dessa comunidade, devo identificar-me com alguma doutrina errônea ou mau proceder, então não pode ser divisão, o fato de eu me separar de uma tal comunidade: pelo contrário, tenho o dever de me separar. Quando a Igreja é desprezada, o Espírito é entristecido e desonrado, o fim será, inevitavelmente, esterilidade espiritual e frio formalismo: e embora os homens possam substituir o poder espiritual pelo intelectual, e os dons do Espírito Santo por habilidade e talento humanos, o fim será "como a tamargueira no deserto" (Jr 17.6). 

O verdadeiro modo de se progredir na vida divina é viver para a Igreja e não para nós mesmos. 

O homem que vive para a Igreja, encontra-se em completa harmonia com a vontade do Espírito, e irá, necessariamente, crescer. Ao contrário, o homem que vive para si próprio, tendo os seus pensamentos girando em torno de si, e a sua energia concentrada na sua pessoa, acaba logo tornando-se restringente e formal, e com toda a probabilidade, abertamente mundano. Sim, ele acabará tornando-se mundano, em algum aspecto deste termo tão abrangente; porque o mundo e a Igreja encontram-se em direta oposição entre si; e não existe nenhum outro aspecto em que esta oposição seja vista com maior clareza do que no seu aspecto religioso. 

Aquilo que é normalmente chamado de mundo religioso revela-se, quando examinado à luz da presença de Deus, muito mais hostil aos verdadeiros interesses da Igreja de Deus do que qualquer outra coisa. Mas devo passar logo a outras ramificações de nosso assunto, trazendo mais um princípio bem simples ligado à Ceia do Senhor, para o qual quero chamar a especial atenção do leitor cristão. 

O princípio é este: a celebração da ordenança da Ceia do Senhor deveria ser a clara expressão da unidade de TODOS os crentes, e não apenas da unidade de um determinado número reunido sobre certos princípios que os diferenciem de outros. Se há algum termo de comunhão proposto, salvo o de suma importância que diz respeito à fé no sacrifício de Cristo e a uma conduta condizente com essa fé, a mesa torna-se a mesa de uma seita e não tem direito algum sobre os corações dos fiéis. Além do mais, se assentando-me à uma mesa assim, devo identificar-me com qualquer coisa, quer seja um princípio ou uma prática, que não seja ordenada nas Escrituras como um termo de comunhão, também, nesse caso, a mesa torna-se a mesa de uma seita. 

Não é uma questão de ali existirem ou não cristãos; na verdade seria difícil encontrar uma mesa entre as comunidades originadas da Reforma da qual não participassem alguns cristãos. O apóstolo não disse que "até importa que haja entre vós heresias, para que os que são cristãos se manifestem entre vós. Não, mas "para que os que são aprovados, se manifestem (1Co 11.19). Tampouco disse, "Examine-se pois o homem a si mesmo para ver se é cristão, e assim coma". Não, mas "examine-se pois o homem a si mesmo" (1 Co 11.28). Quer dizer, certifique-se que é um dos que não somente são retos em suas consciências quanto à sua participação individual, mas que estejam também confessando a unidade do corpo de Cristo. 

Quando os homens estabelecem seus próprios termos para a comunhão, aí você encontrará o princípio da heresia; e aí será também uma divisão. Por outro lado, onde a mesa é posta da maneira e segundo princípios que um cristão submisso a Deus pode, como tal, tomar o seu lugar, torna-se, então, cisma não comparecer; porque com a nossa presença e andando de acordo com a posição que ali tomamos e a profissão que fazemos, tanto quanto está em nós, confessamos a unidade da Igreja de Deus - esse grande objetivo para o qual o Espírito Santo foi enviado do céu à Terra. Havendo o Senhor Jesus ressuscitado de entre os mortos e tomado o Seu lugar à destra de Deus, enviou o Espírito Santo ao mundo com o propósito de formar um corpo. 

Note bem: formar um corpo - não muitos corpos. Ele não tem nenhuma condolência por muitos corpos, embora tenha uma bendita compaixão pelos muitos membros que há nesses corpos, pois eles, embora sendo membros de seitas ou divisões, são, todavia, membros de um só corpo; porém Ele não forma os muitos corpos, mas somente o único corpo, "pois todos nós fomos batizados em um Espírito formando um corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos, quer livres, e todos temos bebido de um Espírito" (1 Co 12.13). Espero que não haja um mal-entendido quanto a este ponto. Digo que o Espírito Santo não pode aprovar as divisões na Igreja professa, porque Ele Mesmo disse acerca delas, "nisto, porém... não vos louvo" (1Co 11.17). 

Ele é entristecido por elas - e gostaria de impedi-las; Ele batiza os crentes na unidade de um só corpo, de maneira que não pode ser admitido, por qualquer pessoa inteligente, que o Espírito Santo possa apoiar as divisões, que são uma tristeza e uma desonra para Si. Todavia, devemos fazer distinção entre a habitação do Espírito na Igreja e Sua habitação nos indivíduos. Ele habita no corpo de Cristo, que é a Igreja (veja 1 Coríntios 3.17; Efésios 2.22), e também no corpo do crente, conforme lemos: "O nosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de Deus" (1Co 6.19). 

Portanto, o único corpo ou comunidade no qual o Espírito Santo pode habitar é em toda a Igreja de Deus; e a única pessoa na qual Ele pode habitar é o crente. Mas, como já foi observado, a mesa do Senhor, em qualquer localidade, deveria ser a expressão da unidade de toda a Igreja. Isto nos leva a outro princípio que está associado à natureza da Ceia do Senhor. A Ceia do Senhor é um ato mediante o qual não só anunciamos a morte do Senhor até que venha, mas onde também damos expressão a uma verdade fundamental, na qual nunca será demais ou inoportuno insistir para com a consciência dos cristãos em nossa época, isto é, que todos os crentes são "um só pão e um só corpo". Trata-se de um erro muito comum enxergarmos esta ordenança simplesmente como um meio pelo qual é transmitida graça à alma do indivíduo, e não como um ato relacionado com todo o corpo; e relacionado também com a glória dAquele que é a Cabeça da Igreja. 

Que é um meio pelo qual a graça flui para a alma do que comunga individualmente, não pode haver dúvida, porque há bênção em cada ato de obediência. Mas que a bênção individual seja apenas uma pequena parte, pode ser visto pelo leitor atento de 1 Coríntios 11. É a morte do Senhor e a vinda do Senhor que são apresentadas com proeminência perante as nossas almas na Ceia do Senhor, e onde quer que um destes elementos seja excluído deve haver algo de errado. Se existir qualquer coisa que impeça a plena expressão da morte do Senhor, ou a exposição da unidade do corpo, ou a compreensão clara da vinda do Senhor, então deve haver alguma coisa que está radicalmente errada no princípio sobre o qual a mesa está posta, e precisamos apenas de um "olho simples" (Lc 11.34), e uma vontade inteiramente submissa à Palavra e ao Espírito de Cristo para poder detectar o mal. Possa o leitor cristão examinar, agora mesmo, em um espírito de oração, a mesa à qual habitualmente toma o seu lugar, para ver se ela passa pelo tríplice teste de 1 Coríntios 11. 

Se não passar, você deve abandoná-la, em nome do Senhor e para o bem da Igreja. Há, na Igreja professa, heresias, e há divisões que provém das heresias, mas "examine-se pois o homem a si mesmo, e assim coma" a Ceia do Senhor; e se, de uma vez por todas, alguém perguntar qual é o significado do termo "examine-se", pode responder que é, em primeiro lugar, ser pessoalmente fiel ao Senhor no ato de partir o pão; e, em segundo lugar, estar desvencilhado de toda e qualquer divisão, assumindo uma posição firme e decidida sobre o amplo princípio que abrange todos os membros do rebanho de Cristo. 

Não só devemos ter o cuidado de andar em pureza de coração e vida perante o Senhor, mas também de verificar que a mesa da qual participamos nada tenha a ela associada, que possa de algum modo agir como um impedimento à unidade da Igreja. 

Não se trata de uma questão meramente pessoal. Não há nada que prove de maneira mais completa a decadência da cristandade nestes dias ou o terrível grau em que o Espírito Santo é entristecido, do que o miserável egoísmo que mancha, sim, que polui os pensamentos dos cristãos professos. Tudo é feito para girar em torno da mera questão do ego. É o meu perdão - a minha segurança - a minha paz - o meu jeito de ser e os meus sentimentos, e não a glória de Cristo ou o bem da Sua amada Igreja. 

Daí a necessidade de aplicarmos ao nosso estado as palavras do profeta Ageu: "Assim diz o Senhor dos Exércitos: Aplicai os vossos corações aos vossos caminhos. Subi ao monte, e trazei madeira, e EDIFICAI A CASA, e dela me agradarei; e EU SEREI GLORIFICADO. 

Olhastes para muito, mas eis que alcançastes pouco; e esse pouco, quando o trouxestes para casa, eu lhe assoprei. Por que causa? disse o Senhor dos Exércitos: por causa da minha casa, que está deserta, e cada um de vós corre à sua própria casa" (Ag 1.7-9). 

Eis aqui a raiz da questão. O "eu" permanece em contraste com a casa de Deus; e se o "eu" for colocado como nosso objeto, não é de admirar que haja uma triste falta de gozo, energia e poder espiritual. Para possuirmos estas coisas temos de estar em comunhão com os pensamentos do Espírito. Ele pensa no corpo de Cristo; e se nós estivermos pensando em nós mesmos, devemos necessariamente estar em desacordo com Ele; e as consequências se evidenciam.


2-AS CIRCUNSTÂNCIAS EM QUE FOI INSTITUÍDA A CEIA DO SENHOR

Havendo tratado daquilo que considero ser, de longe, o ponto mais importante em nosso assunto, devo seguir considerando, em segundo lugar, as circunstâncias em que a Ceia do Senhor foi instituída. Foram circunstâncias particularmente solenes e tocantes. 

O Senhor estava a ponto de entrar em um terrível conflito com todos os poderes das trevas - iria enfrentar toda a terrível inimizade do homem; e esgotar, até o fim, o cálice da justa ira de Jeová contra o pecado. Tinha diante de Si um terrível amanhã - o mais terrível que jamais foi enfrentado por qualquer homem ou anjo; todavia, a despeito de tudo, lemos que "na noite em que foi traído, tomou o pão" (1Co 11.23). 

Que amor mais desinteressado! "Na noite em que foi traído" - noite de profunda dor - a noite de Sua agonia e de suor de sangue - a noite em que foi traído por um, negado por outro e abandonado por todos os Seus discípulos - nessa mesma noite, o coração amabilíssimo de Jesus estava cheio de pensamentos acerca da Sua Igreja - foi nessa mesma noite que Ele instituiu a ordenança da Ceia do Senhor. Ele designou o pão para ser o emblema do Seu corpo oferecido, e o vinho para ser o emblema do Seu sangue derramado, e é o que agora eles são para nós, todas as vezes que deles participamos, pois a Palavra assegura que "todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que venha" (1Co 11.26). 

Podemos dizer que tudo isso concede peculiar importância e sagrada solenidade à Ceia do Senhor; e, além disso, nos dá uma ideia das consequências de se comer e beber indignamente.* 

*Nota: É comum empregar-se o termo "indignamente", nesta passagem, às pessoas que celebram, ao passo que a palavra refere-se à maneira de fazê-lo. 

O apóstolo nunca pensou em questionar o cristianismo dos coríntios; pelo contrário, no prefácio da sua epístola, ele os vê como a "Igreja de Deus, que está em Corinto... santificados em Cristo Jesus, chamados santos (ou santos por vocação)" (1 Co 1.2). 

Como poderia ele ter usado esta linguagem no primeiro capítulo e, no capítulo onze, colocar em dúvida a dignidade desses mesmos santos para poderem estar à Ceia do Senhor? Impossível. Ele os considerava como santos, e, como tais, exortou-os a celebrarem a Ceia do Senhor, de uma maneira digna. 

A questão de se encontrarem entre eles cristãos que não fossem verdadeiros, nunca é levantada; de modo que é de todo impossível que a palavra "indignamente" pudesse ser aplicada a pessoas. A sua aplicação diz respeito unicamente à maneira. As pessoas eram dignas, mas a maneira não o era; e foram convidadas, na sua qualidade de santos, a julgarem-se a si mesmas quanto ao seu modo de proceder, caso contrário o Senhor poderia julgá-las em suas pessoas, como era já o caso de alguns. 

Em resumo: foram convidadas como verdadeiros cristãos, a julgarem-se a si mesmas. Se tivessem dúvidas de como deviam fazê-lo, então seriam incapazes de julgar o quer que fosse. Eu nunca pensaria em colocar meu filho a julgar se ele é ou não meu filho; mas espero que ele julgue a si próprio quanto ao seu modo de ser, caso contrário, se não o fizer, talvez eu tenha que fazer, por meio de castigo, aquilo que ele deveria ter feito por meio do juízo próprio. É por considerá-lo meu filho que não vou consentir que se sente à minha mesa com a roupa suja e maneiras impróprias. 

A voz com que a ordenança sussurra ao ouvido circunciso é sempre a mesma. O pão e o vinho são símbolos de um significado profundo; o trigo moído e a uva esmagada combinam-se para dar forças e alegria ao coração: e não são apenas significativos em si mesmos, mas também são para serem usados na Ceia do Senhor como os próprios emblemas que o bendito Senhor em Pessoa ordenou na noite anterior à Sua crucificação; de modo que a fé pode reconhecer o Senhor Jesus presidindo à Sua própria mesa - pode vê-lo tomar o pão e o vinho, e ouvi-Lo dizer: "Tomai, comei, isto é o Meu corpo"; e também do cálice, "Bebei dele todos; porque isto é o Meu sangue, o sangue do Novo Testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados" (Mt 26.26-28). 

Em suma, a ordenança reconduz a alma àquela noite à qual já nos referimos - coloca diante de nós toda a realidade da cruz e da paixão do Cordeiro de Deus, em que toda nossa alma pode descansar e se regozijar; faz-nos lembrar, da maneira mais tocante, do amor desinteressado e da pura devoção dAquele que, quando o Calvário projetava a sua negra sombra sobre o Seu caminho, e o cálice da justa ira de Jeová contra o pecado, do qual Ele estava a ponto de ser a vítima de expiação, estava sendo cheio para Si, podia, contudo, ocupar-Se de nós e instituir uma festa que haveria de ser ao mesmo tempo, a expressão da nossa união com Ele e com todos os membros do Seu corpo. 

E acaso não devemos concluir que o Espírito Santo tenha feito uso da expressão "na noite em que foi traído" com o propósito de remediar as desordens que haviam surgido na igreja em Corinto? Porventura não havia uma repreensão severa contra o egoísmo daqueles que tomavam "a sua própria ceia", na referência que o Espírito faz àquela noite em que o Senhor da festa foi traído? Sem dúvida que havia. Pode o egoísmo prevalecer à vista da cruz? Podem os pensamentos acerca dos nossos próprios interesses, ou das nossas conveniências, ser permitidos na presença dAquele que Se sacrificou por nós? 

É claro que não. Poderíamos nós desprezar propositada e impiedosamente a Igreja de Deus - poderíamos nós insultar ou excluir membros amados do rebanho de Cristo, enquanto contemplássemos essa cruz na qual o Pastor do rebanho e Cabeça do Corpo, foi crucificado?

* Ah, não! Deixe que os crentes tão somente permaneçam perto da cruz - que se lembrem dessa "noite em que foi traído" - que tenham em mente o corpo oferecido e o sangue derramado do Senhor Jesus Cristo, e logo haverá um fim a toda heresia, divisão e egoísmo. 

*Nota: O leitor há de notar que o texto não toca no assunto da disciplina segundo as Escrituras. Pode haver muitos membros do rebanho de Cristo que não poderiam ser recebidos na Assembleia sobre a Terra, por estarem, possivelmente, contaminados por doutrinas falsas ou práticas errôneas. Porém, embora talvez não os possamos receber, não levantamos, de modo nenhum, a questão de estarem inscritos no livro da vida do Cordeiro. Este assunto não é da competência e nem prerrogativa da Igreja de Deus, "O Senhor conhece os que são Seus, e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniquidade" (2Tm 2.19). 

Se ao menos nos lembrássemos de que o Próprio Senhor é Quem preside à Sua mesa, para dar o pão e o vinho; se pudéssemos ouvi-Lo dizer, "Tomai-o, e reparti-o entre vós" (Lc 22.17), estaríamos melhor capacitados a encontrar todos os nossos irmãos no único terreno cristão de comunhão que Deus pode reconhecer. Em suma, a Pessoa de Cristo é o centro de união dado por Deus. "Eu", disse Cristo, "quando for levantado da Terra, todos atrairei a Mim" (Jo 12.32). 

Cada crente pode ouvir o seu bendito Senhor falando desde a cruz, e dizendo acerca de seus conservos, Eis aí os teus irmãos; e, na verdade, se pudéssemos ouvir estas palavras claramente, procederíamos, em certa medida, como agiu o discípulo amado para com a mãe de Jesus: nosso coração e nosso lar estariam sempre abertos a todos os que tivessem sido assim encomendados aos nossos cuidados. A Palavra diz: "Recebei-vos uns aos outros, como também Cristo nos recebeu para glória de Deus" (Rm 15.7). 

Existe outro ponto digno de atenção em conexão com as circunstâncias em que foi instituída a Ceia do Senhor, a saber, a sua ligação com a Páscoa judaica. "Chegou, porém, o dia dos asmos, em que importava sacrificar a Páscoa. E mandou a Pedro e João, dizendo: Ide, preparai-nos a Páscoa, para que a comamos... E, chegada a hora, pôs-se à mesa, e com Ele os doze apóstolos. 

E disse-lhes: Desejei muito comer convosco esta Páscoa, antes que padeça; porque vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no reino de Deus. 

E tomando o cálice (o cálice da Páscoa), e havendo dado graças, disse: Tomai-o, e reparti-o entre vós; porque vos digo que já não beberei do fruto da vide, até que venha o reino de Deus" (Lc 22.7-18). A Páscoa era, conforme sabemos, a grande festa de Israel, celebrada pela primeira vez na noite inesquecível da sua feliz libertação da escravidão do Egito. Quanto à sua ligação com a Ceia do Senhor, consiste em ser o nítido tipo daquilo que a ceia é o memorial. A Páscoa apontava para a cruz que estava adiante; a ceia aponta para a cruz que ficou para trás. 

Porém, Israel já não estava em uma condição moral adequada para guardar a Páscoa, em conformidade com os pensamentos de Deus acerca dela; e o Senhor Jesus, na ocasião mencionada acima, estava afastando completamente os Seus discípulos do elemento judaico que nela havia, e levando-os para uma nova ordem das coisas. 

Não deveria mais ser um cordeiro sacrificado, mas pão partido e vinho bebido em comemoração a um sacrifício UMA vez oferecido, e cuja eficácia havia de ser eterna. Aqueles cujas mentes estejam vergadas sob o fardo das ordenanças judaicas, talvez ainda possam procurar, de uma maneira ou de outra, por uma repetição periódica, seja de um sacrifício ou de algo designado para levá-los a um lugar de maior proximidade com Deus.* 

*Nota: A igreja de Roma afastou-se de tal modo da verdade expressada na Ceia do Senhor, que diz oferecer, na missa, "um sacrifício incruento pelos pecados dos vivos e dos mortos". 

Ora, somos ensinados, em Hebreus 9.22, que "sem derramamento de sangue não há remissão"; consequentemente, a igreja de Roma não tem remissão de pecados para os seus membros. Ela os rouba desta preciosa realidade, e em lugar disso lhes dá algo anômalo e totalmente fora das Escrituras, denominado "sacrifício incruento" ou "missa". 

Isso, que em conformidade com sua própria prática e com o testemunho de Hebreus 9.22 nunca pode tirar pecado, ela oferece dia após dia, semana após semana, ano após ano. Um sacrifício sem sangue deve ser, se é verdade o que está nas Escrituras, um sacrifício sem remissão. Portanto, e por conseguinte, o sacrifício da missa é uma absoluta cegueira criada pelo diabo, por intermédio de sua representação em Roma, para esconder da vista do pecador o glorioso sacrifício de Cristo oferecido "uma vez", para nunca mais ser repetido. "Havendo Cristo ressuscitado dos mortos, já não morre: a morte não mais terá domínio sobre Ele" (Rm 6.9). 

Cada novo sacrifício da missa tão somente declara a ineficácia de todos os sacrifícios anteriores, de modo que Roma está apenas zombando do pecador com uma sombra vazia. Mas ela é coerente com sua impiedade, pois recusa o cálice aos leigos, e ensina seus membros que eles têm o corpo e o sangue e tudo mais em uma hóstia. Mas se o sangue continua no corpo, está claro que ele não está derramado, e então voltamos ao mesmo ponto obscuro, ou seja, "não há remissão". "Sem derramamento de sangue não há remissão" (Hb 9.22). 

Quão completamente diferente é a preciosa e tão revigorante instituição da Ceia do Senhor, como nos é apresentada no Novo Testamento. Ali encontramos o pão partido, e o vinho despejado - os significativos símbolos de um corpo oferecido e de sangue derramado. O vinho não está no pão porque o sangue não está no corpo, pois se assim fosse não haveria "remissão". 

Em poucas palavras, a Ceia do Senhor é o memorial singular de um sacrifício eternamente consumado; e por isso mesmo ninguém pode participar dela, com inteligência e graça, senão aqueles que conhecem a plena remissão dos pecados. Não é que nós, de modo algum, façamos do conhecimento um termo de comunhão, pois muitos filhos de Deus, devido ao ensino errôneo e por muitas outras razões, não conhecem a perfeita remissão de pecados, e se fossem excluídos com base nesse fato, seria fazer do conhecimento um termo de comunhão, em vez de vida e obediência. 

Contudo, se eu não souber, por experiência própria, que a redenção é um fato consumado, verei muito pouco significado nos símbolos do pão e do vinho; e, além disso, corro, então, grande perigo de ligar uma espécie de eficácia aos símbolos memoriais, eficácia esta que pertence somente à grande realidade que eles simbolizam. 

Há alguns que pensam que na Ceia do Senhor a alma faz, ou renova, um concerto com Deus, desconhecendo que se tivéssemos que fazer um pacto com Deus estaríamos inevitavelmente arruinados; visto que o único resultado possível de um pacto entre Deus e o homem seria o rompimento do pacto por uma das partes (no caso o homem), e o consequente juízo. Graças a Deus que não existe nada que se pareça com um pacto entre Deus e nós. O pão e o vinho, na Ceia, falam de uma verdade profunda e extraordinária: fala do corpo oferecido e do sangue derramado do Cordeiro de Deus - o Cordeiro provido pelo próprio Deus. Aqui a alma pode descansar perfeitamente satisfeita; trata-se do NOVO TESTAMENTO NO SANGUE DE CRISTO, e não de um pacto entre Deus e o homem. 

O concerto do homem falhou de forma notória, e o Senhor Jesus teve que deixar passar de Si o cálice do fruto da vide (símbolo de gozo na Terra). O mundo não tinha para Ele nenhuma alegria - Israel havia se tornado "uma planta degenerada, de vide estranha" (Jr 2.21). 

Por conseguinte, só podia dizer: "Porque vos digo que já não beberei do fruto da vide, até que venha o reino de Deus" (Lc 22.18). Um período longo e sombrio teria que vir sobre Israel, antes que o seu Rei pudesse encontrar algum gozo na sua condição moral; porém durante este período, a "Igreja de Deus" devia fazer "a festa" dos asmos, em todo o seu significado e poder moral, pondo de lado "o fermento velho... da maldade e da malícia" (1 Co 5.8) como resultado da comunhão com Aquele cujo sangue purifica de todo o pecado. Contudo, o fato da Ceia do Senhor ter sido instituída imediatamente após a Páscoa, nos ensina um mui valioso princípio de verdade, a saber, que os destinos da Igreja e de Israel estão inseparavelmente ligados com a cruz do Senhor Jesus Cristo. 

É verdade que a Igreja tem um lugar mais elevado, identificada, até, com sua Cabeça ressuscitada e glorificada; todavia, tudo se baseia na Cruz. Sim, foi na cruz que o puro feixe de trigo foi moído e o suco da videira viva espremido pela mão do próprio Jeová, para conceder força e alegria aos corações do Seu povo celestial e terrenal, para todo o sempre. O Príncipe da Vida tomou da justa mão de Jeová o cálice da ira, cálice de horror, e bebeu-o até o fim, a fim de poder colocar nas mãos do Seu povo o cálice da salvação, cálice do amor inefável de Deus, para que eles pudessem beber dele e esquecer a sua pobreza, e da sua miséria não se lembrarem mais. A Ceia do Senhor expressa tudo isso. Ali o Senhor preside; ali os redimidos deveriam se reunir em santa comunhão e amor fraternal, para comer e beber na presença do Senhor; e enquanto fazem isto, podem olhar para trás, para a noite de profunda angústia do seu Senhor, e olhar para diante, para o Seu dia de glória - essa "manhã sem nuvens" (2 Sm 23.4), "quando vier para ser glorificado nos Seus santos, e para Se fazer admirável naquele dia em todos os que creem (2 Ts 1.10).


3-PARA QUEM FOI INSTITUÍDA A CEIA DO SENHOR

Devemos considerar agora, em terceiro lugar, as pessoas para quem, e para quem somente, a Ceia do Senhor foi instituída. A Ceia do Senhor, portanto, foi instituída para a Igreja de Deus - a família dos redimidos. Todos os membros dessa família deveriam estar presentes; porque ninguém pode estar ausente sem incorrer na culpa de desobediência à ordem clara de Cristo e do Seu apóstolo inspirado; e a consequência desta desobediência certamente será declínio espiritual e um fracasso completo no testemunho para Cristo. Contudo, tais consequências são somente o resultado da ausência deliberada à mesa do Senhor. Existem circunstâncias que, em certos casos, podem representar um obstáculo intransponível, embora possa haver o mais ardente desejo de se estar presente à celebração da ordenança, o que, aliás, acontecerá sempre com aquele que é espiritual. 

Todavia podemos estabelecer, como um imutável princípio da verdade, que ninguém que se ausente voluntariamente da mesa do Senhor poderá fazer progresso na vida espiritual. "TODA a congregação de Israel" era convidada a celebrar a Páscoa (Êxodo 12). Nenhum membro da congregação podia ausentar-se impunemente. "Quando um homem for limpo, e não estiver de caminho, e deixar de celebrar a Páscoa, tal alma dos seus povos será extirpada: porquanto não ofereceu o oferta do Senhor a seu tempo determinado; tal homem levará o seu pecado". (Nm 9.13). 

Julgo que seria uma contribuição realmente valiosa à causa da verdade, e promover os interesses da Igreja de Deus, se pudéssemos despertar a atenção para este assunto tão importante. Há muita indiferença e leviandade na ideia que muitos cristãos têm acerca da frequência à mesa do Senhor; e, onde não existe essa indiferença, há a má vontade que se origina em opiniões imperfeitas sobre a justificação. Tanto um como o outro destes empecilhos, embora tão diferentes em seu caráter, derivam de uma e mesma origem, ou seja, do egoísmo. 

Todo aquele que é indiferente quanto a este assunto deixará, egoisticamente, que circunstâncias insignificantes interfiram com a sua frequência à Ceia: será impedido por compromissos familiares, amor próprio ou comodidade pessoal, condições do tempo, coisas sem importância, ou, como acontece frequentemente, indisposições físicas imaginárias - coisas, aliás, que passam despercebidas ou não têm importância alguma, quando se trata de se atingir algum objetivo nas coisas deste mundo. Quantas vezes acontecem que homens, que não têm energia espiritual suficiente para fazê-los sair de casa no dia do Senhor, encontram força bastante para levá-los a andar alguns quilômetros para compromissos nas coisas deste mundo na segunda-feira. Como isto é, infelizmente, verdade! 

Como é triste pensarmos que os interesses materiais exercem uma influência muito mais poderosa no coração do crente do que a glória de Cristo e o bem-estar da Igreja! Pois é este o modo como devemos encarar a questão da Ceia do Senhor. Quais seriam os nossos sentimentos, na glória do reino vindouro, se pudéssemos recordar que, enquanto estávamos no mundo, uma feira ou mercado, ou qualquer outro atrativo mundano, tivesse ocupado o nosso tempo e as nossas energias, enquanto a assembleia do povo do Senhor, em redor da Sua mesa, fora negligenciada? Amado leitor cristão: Se você tem o hábito de se ausentar da assembleia de cristãos, rogo-lhe que pondere o assunto diante do Senhor, antes de voltar a ausentar-se. Pense em todos os efeitos nocivos da sua ausência. Você está falhando no seu testemunho por Cristo; você está prejudicando as almas dos seus irmãos, e você está impedindo o progresso da sua própria alma em graça e conhecimento. Não pense que suas ações não tenham influência em toda a Igreja de Deus: neste exato momento você está, ou ajudando, ou atrapalhando cada membro desse corpo sobre a Terra. "Se um membro padece, todos os membros padecem com ele" (1 Co 12.26).

 Este princípio não deixou de ser verdadeiro, apesar de os crentes professos terem se dividido em tantas seitas diferentes. Pelo contrário, trata-se de algo tão divinamente verdadeiro, que não existe um único crente sobre a Terra que não esteja sendo um auxílio ou um empecilho para o corpo de Cristo em sua totalidade; e se há alguma verdade no princípio já apontado (isto é, que a assembleia dos cristãos, e o partir do pão, em qualquer localidade são, ou deveriam ser, a expressão da unidade de todo o corpo), você não pode deixar de reconhecer que, com a ausência nessa assembleia ou sua recusa em unir-se aos demais para dar expressão a esta unidade, você está causando um sério dano a todos os seus irmãos, bem como à sua própria alma. 

Gostaria de deixar estes comentários entregues ao seu coração e à sua consciência, em nome do Senhor, esperando que Ele os torne convincentes.* *Nota: Eu só posso sentir-me responsável a estar presente na assembleia quando ela estiver reunida no correto fundamento da Igreja, isto é, o fundamento que foi colocado no Novo Testamento. As pessoas podem se reunir, e se intitularem a Igreja de Deus, em qualquer localidade, mas se não mostrarem as características e princípios da Igreja de Deus, como nos são apresentados na Sagradas Escrituras, não posso considerá-las. Caso se recusem a julgar o mundanismo, a carnalidade, ou falsas doutrinas, ou se lhe falta poder espiritual para fazê-lo, é evidente que não se encontram sobre o correto fundamento da Igreja: são meramente uma comunidade religiosa, a qual, no seu caráter coletivo, não tenho responsabilidade alguma, perante Deus, de reconhecer. 

Portanto, o filho de Deus necessita de muito poder espiritual e submissão à Palavra de Deus para poder conduzir-se através de todas as sinuosidades da Igreja professa nestes dias particularmente difíceis e maus. Porém, não só esta indiferença de espírito condenável e perniciosa age como um impedimento para muitos para se apresentarem à mesa do Senhor, mas as opiniões imperfeitas de justificação produzem o mesmo triste resultado. Se a consciência não for perfeitamente purificada, se não houver perfeito descanso no testemunho que Deus dá acerca da obra consumada de Cristo, haverá, ou desinteresse pela Ceia do Senhor, ou falta de inteligência na sua celebração. Só podem anunciar a morte do Senhor os que conhecem, mediante o ensino do Espírito Santo, o valor da morte do Senhor. 

Se eu considero a ordenança como um meio de ser levado a uma posição de maior proximidade de Deus ou de obter um senso mais claro de minha aceitação, é impossível que eu possa celebrá-la da maneira correta. Devo crer, como me ordena o Evangelho, que TODOS os meus pecados foram tirados para SEMPRE, antes de poder tomar o meu lugar à mesa do Senhor, com alguma medida de inteligência espiritual. Se o assunto não for encarado à luz deste conhecimento, a Ceia do Senhor só poderá ser considerada como se fosse mais um passo na subida para o altar de Deus, e a Lei diz-nos que não podemos subir por degraus para o altar de Deus, ou será descoberta a nossa nudez (Êxodo 20.26). O significado disto é que todos os esforços humanos para se aproximar de Deus devem levar à descoberta da nudez humana. Vemos assim que se for a indiferença que impede o cristão de estar no partir do pão, é algo por demais condenável aos olhos de Deus, e prejudicial tanto para os seus irmãos como para si próprio; e se o impedimento for um conhecimento imperfeito da justificação, não somente é inaceitável, como desonroso para o amor do Pai, para a obra do Filho e para o testemunho claro e inequívoco do Espírito Santo. Mas não é com pouca frequência que se ouve dizer, e isso até mesmo por aqueles que professam ter espiritualidade e inteligência, frases como: "Não tenho nenhum proveito espiritual em ir às reuniões da assembleia: sinto-me mais feliz ficando em casa lendo a Bíblia". Gostaria de perguntar, carinhosamente, a essas pessoas: Acaso não devemos ter um motivo mais nobre em nossa maneira de agir do que a nossa própria felicidade? Não será a obediência à ordem de nosso bendito Senhor - uma ordem dada "na noite em que foi traído" - um motivo muito mais nobre que qualquer coisa que esteja ligada ao "eu"? 

Se Ele deseja que o Seu povo se reúna em Seu nome, com o fim expresso de anunciar a Sua morte até que venha, devemos nós recusar fazê-lo por nos sentirmos mais felizes em nossas casas? O Senhor nos diz para estarmos à mesa; nós respondemos: "Sentimo-nos mais felizes em casa". Nossa felicidade, portanto, deve estar baseada na desobediência; e neste caso, é uma felicidade impura. É muito melhor, se tiver de ser assim, que sejamos infelizes no caminho da obediência, do que sermos felizes no caminho da desobediência. Todavia, creio firmemente que a ideia de ser mais feliz em casa é mera ilusão, e o fim de todos que são iludidos por ela confirmará este parecer. Tomé podia ter pensado que não fazia diferença se estivesse ou não presente com os outros discípulos, mas teve que passar sem a presença do Senhor e esperar oito dias até que os discípulos se reunissem no primeiro dia da semana; e foi só então, e naquele local, que aprouve ao Senhor revelar-Se à sua alma: E o mesmo acontecerá com aqueles que dizem: "Sentimo-nos mais felizes em casa do que na assembleia de crentes. Ficarão indubitavelmente para trás em conhecimento e experiência; e poderão dar-se por felizes se não forem incluídos no terrível "Ai" pronunciado pelo profeta, "Ai do pastor inútil que abandona o rebanho; a espada cairá sobre o seu braço e sobre o seu olho direito; o seu braço completamente se secará, e o seu olho direito completamente se escurecerá" (Zc 11.17). 

E também, "Não deixando a nossa congregação, como é costume de alguns, antes admoestando-nos uns aos outros; e tanto mais, quando vedes que se vai aproximando aquele dia. Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas uma certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários" (Hb 10.25-27). 

Quanto à objeção que se faz com fundamento na aridez e falta de proveito encontradas nas assembleias dos cristãos, geralmente será notado que a maior aridez espiritual será sempre encontrada num espírito contencioso e insatisfeito; e não duvido que se aqueles que se queixam da falta de proveito das reuniões e tiram daí um argumento para ficarem em suas casas, gastassem mais tempo a sós na secreta dependência do Senhor, buscando Sua bênção para as reuniões, teriam uma experiência muito diferente. Agora, havendo demonstrado a partir das Escrituras quem deve estar no partir do pão, vamos continuar para considerar quem não deve estar. Neste ponto, as Escrituras são igualmente claras: em suma, ninguém que não pertença à verdadeira Igreja de Deus deveria estar ali. A mesma lei que ordenava que toda a congregação de Israel comesse a páscoa, mandava que todos os estrangeiros incircuncisos não a comessem; e agora que Cristo, a nossa Páscoa, foi sacrificado por nós, ninguém pode celebrar a festa (que deve continuar durante toda esta dispensação), nem partir o pão ou beber o vinho em verdadeira recordação do Senhor, senão os que conhecem as virtudes purificadoras e saneadoras do Seu precioso sangue.

 Comer e beber sem este conhecimento, é comer e beber indignamente - é comer e beber para condenação; como a mulher em Números 5, que bebeu da água amarga para tornar a condenação mais real e terrivelmente solene. Ora, é nisto que a culpa da Cristandade é particularmente manifestada. Ao tomar a Ceia do Senhor, a Igreja professa tem, à semelhança de Judas, metido a mão na mesa com Cristo e O tem traído; tem comido com Ele, e, ao mesmo tempo, levantado o seu calcanhar contra Ele. 

Qual será o seu final? Será igual ao de Judas. "E, tendo Judas tomado o bocado, saiu logo. E..." - o Espírito Santo acrescenta, com terrível solenidade - "...ERA JÁ NOITE" (Jo 13.30). Que terrível noite! A mais forte expressão do amor divino tão somente desencadeou a mais forte expressão do ódio humano. Assim acontecerá também com a falsa Igreja professa coletivamente, e cada falso crente individualmente; e todos aqueles que, embora batizados em nome de Cristo, e assentando-se à mesa de Cristo, têm, todavia, sido Seus traidores, irão encontrar-se, por fim, lançados nas trevas exteriores - mergulhados numa noite que nunca verá os alvores da manhã - atirados em um abismo de uma interminável e inexprimível lamentação; e embora possam dizer ao Senhor: "Temos comido e bebido na Tua presença, e Tu tens ensinado nas nossas ruas" (Lc 13.26), a Sua solene resposta, de partir o coração, será, enquanto lhes fechar a porta, "Digo-vos que não sei donde vós sois; apartai-vos de Mim" (Lc. 13.27). 

Oh, leitor, pense nisto, eu suplico a você; e se você ainda se encontra em seus pecados, não contamine a mesa do Senhor com a sua presença; mas, em vez de ir mais longe como um hipócrita, encaminhe-se ao Calvário, como um pobre pecador arruinado e culpado, e receba perdão e purificação dAquele que morreu para salvar pecadores como você.


4-A OCASIÃO E A MANEIRA DE CELEBRAR A CEIA DO SENHOR

Após termos considerado, pela misericórdia do Senhor, a natureza da Ceia do Senhor, as circunstâncias em que ela foi instituída, e as pessoas a quem foi designada, gostaria apenas de acrescentar uma palavra quanto ao que nos ensinam as Escrituras sobre a ocasião e o modo de sua celebração. 

Embora a Ceia do Senhor não tivesse sido instituída pela primeira vez no primeiro dia da semana, os capítulos 24 de Lucas e 20 de Atos são suficientes para demonstrar, a todo aquele que se submete à Palavra, que esse é o dia no qual a ceia deveria ser especialmente celebrada. O Senhor partiu o pão com Seus discípulos "no primeiro dia da semana" (Lc 24.1,30); e "no primeiro dia da semana" os discípulos reuniram-se para partir o pão (At 20.7). Estas passagens são mais que suficientes para provar que não era uma vez por mês, nem uma vez em três meses, nem tampouco uma vez em seis meses, que os discípulos deveriam reunir-se para o partir do pão, mas uma vez por semana, pelo menos, e essa no primeiro dia da semana. 

Não temos qualquer dificuldade em ver que há uma característica moral apropriada no primeiro dia da semana para a celebração da Ceia do Senhor: é o dia da ressurreição - o dia da Igreja, em contraste com o sétimo dia, que era o dia de Israel. E da mesma forma que, na instituição da ordenança, o Senhor separou totalmente os Seus discípulos das coisas judaicas (ao recusar-se a beber do fruto da vide - o cálice da páscoa - e então instituindo uma outra ordenança), também, no dia em que esta ordenança deveria ser celebrada, observamos o mesmo contraste entre as coisas celestiais e terrenais. É no poder da ressurreição que podemos anunciar apropriadamente a morte do Senhor. 

Quando o conflito terminou, Melquisedeque trouxe pão e vinho e abençoou Abraão em nome do Senhor. Assim também, nosso Melquisedeque, quando terminou o conflito e conquistada a vitória, veio da ressurreição com pão e vinho, para fortalecer e animar os corações do Seu povo, e soprar sobre eles aquela paz que Ele comprara com tanto empenho. Se, portanto, o primeiro dia da semana for o dia indicado nas Escrituras para os discípulos partirem o pão, fica evidente que o homem não tem autoridade para alterar o período para uma vez por mês ou uma vez a cada seis meses. 

E não duvido que, quando as afeições para com a Pessoa do Senhor são vivas e fervorosas, o cristão desejará anunciar a morte do Senhor tão frequentemente quanto lhe for possível; na verdade, quer-nos parecer, pelo início do livro de Atos, que os discípulos partiam o pão diariamente. Podemos deduzir isto na frase, "e partindo o pão em casa" (At 2.46). 

Contudo, não temos necessidade de depender da mera inferência quanto à questão do primeiro dia da semana ser o dia em que os discípulos se reuniam para partir o pão: somos claramente ensinados assim, e vemos a sua beleza e adequação moral. Isto quanto à ocasião. Quero agora falar algo quanto à maneira de celebrar a Ceia. A principal aspiração dos cristãos deveria ser mostrar que o partir do pão é o objetivo primeiro e mais importante de se reunirem no primeiro dia da semana. Deveriam mostrar que não é para a pregação ou ensino que se reúnem, se bem que o ensino possa ser um complemento feliz, mas que o partir do pão é o assunto principal que têm em vista. É a obra de Cristo que anunciamos na Ceia, pelo que ela deveria ter o primeiro lugar; e, depois de ter sido plenamente anunciada, deveria haver uma plena e desimpedida oportunidade para a obra do Espírito Santo no ministério. 

A missão do Espírito é expor e exaltar o Nome, a Pessoa e a Obra de Cristo; e se Lhe for permitido orientar a assembleia de cristãos, o que sem dúvida fará, Ele dará sempre o primeiro lugar à obra de Cristo. Não posso terminar estes comentários sem manifestar meu profundo sentimento da fraqueza e a superficialidade de tudo quanto tenho dito sobre um assunto tão importante. Sinto, na presença do Senhor, perante Quem desejo escrever e falar, que tenho falhado tanto em mostrar toda a verdade acerca deste assunto, que quase me sinto tentado a impedir que estas páginas sejam publicadas. 

Não é que eu tenha uma sombra de dúvida quanto à verdade que tenho procurado frisar; não: mas sinto que, para escrever sobre um assunto como é o partir do pão, numa época em que há tanta confusão entre os cristãos professos, há a necessidade de afirmações diretas, claras e transparentes, para o que me sinto pouco capacitado. 

Temos apenas uma vaga ideia de como a questão do partir do pão está ligada inteiramente com a posição e testemunho da Igreja na Terra; e conhecemos igualmente muito pouco da maneira como este assunto tem sido inteiramente mal compreendido pela Igreja professa. É preciso que o partir do pão seja a afirmação clara do fato que todos os crentes são um só corpo; porém a Igreja professa, por haver se fragmentado em seitas, e levantado uma mesa para cada seita, tem negado este fato, na prática. Na verdade, o partir do pão tem sido deixado para um segundo plano. 

A mesa, a qual o Senhor deveria presidir, é quase perdida de vista pela maneira como é posta à sombra do púlpito, no qual o homem preside; esse púlpito que é, oh! muitíssimas vezes o instrumento para criar e perpetuar a desunião, é, para muitos, o objeto preponderante; enquanto a mesa, que, se fosse convenientemente compreendida, perpetuaria o amor e a união, é convertida em algo bem secundário. E até mesmo nos mais louváveis esforços para se recuperar um estado de coisas tão lamentável, que completo fracasso temos testemunhado. Que resultado tem alcançado a Aliança Evangélica? Tem tido este resultado: tem desenvolvido uma existente necessidade entre cristãos professos, necessidade essa que eles são confessadamente incapazes de alcançar. Querem uma união que são incapazes de conseguir. Por quê? Porque não querem abdicar de tudo aquilo que foi acrescentado à verdade e se reunirem em conformidade com a verdade, para partirem o pão como discípulos. Digo, como discípulos, e não como membros de igreja, Independentes, Batistas, etc... 

Não é que tais pessoas não possam estar de posse de muita verdade preciosa, refiro-me àqueles de entre eles que amam o Senhor Jesus Cristo: certamente que podem; mas não possuem a verdade que iria impedi-los de se reunirem para partir o pão. Como poderia a verdade jamais impedir os crentes de darem expressão à unidade da Igreja? Impossível! A existência de um espírito sectário naqueles que retém a verdade pode fazer isto, mas a verdade nunca. 

Mas como é que as coisas estão atualmente na Igreja professa? Cristãos de várias comunidades podem reunir-se para leitura, orações e cânticos, durante a semana, mas quando chega o primeiro dia da semana, não têm a mínima ideia de darem a única prova real e eficaz da sua unidade, que o Espírito pode reconhecer, e que consiste no partir do pão. "Nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo: porque todos participamos do mesmo pão" (1 Co 10.17). 

O pecado em Corinto era não esperarem uns pelos outros. Isto é evidente pela exortação com que o apóstolo resume toda a questão em 1 Coríntios 11.33: "Portanto, meus irmãos, quando vos ajuntais para comer, esperai uns pelos outros".

 Por que deviam esperar uns pelos outros? Sem dúvida para poderem manifestar melhor a sua unidade. Porém, que teria dito o apóstolo se, ao invés de se reunirem num mesmo lugar, tivessem ido a lugares diferentes, segundo as suas diferentes opiniões acerca da verdade? Nesse caso, ele poderia ter dito, com a maior ênfase possível: "Não podeis comer a Ceia do Senhor". Todavia, talvez alguém pergunte: Como poderiam todos os crentes de Londres se reunir num só lugar? Respondo que se não pudessem se reunir num mesmo lugar, poderiam, ao menos, se reunir segundo o mesmo princípio. Como se reuniam os crentes de Jerusalém? A resposta é: "E era um o coração" (At 4.32). 

Sendo assim, tinham pouca dificuldade quanto ao local de reunião. O "alpendre de Salomão" (At 5.12), ou qualquer outro lugar, seria adequado ao propósito que tinham. Manifestavam a sua unidade, e isto, também, de um modo inequívoco. Nem a questão de vários lugares, nem os vários graus de conhecimento e realizações, podiam interferir, em qualquer medida, na sua unidade. Havia "um só corpo e um só Espírito" (Ef 4.4). Para finalizar, eu diria que o Senhor, com toda a certeza, irá honrar aqueles que têm fé para crer e confessar a unidade da Igreja na Terra; e quanto maior for a dificuldade para se agir assim, maior será a honra. 

Que o Senhor conceda a todo o Seu povo um "olho simples" (Lc 11.34), e um espírito humilde e honesto. Teu corpo morto, aqui Senhor amado, nós enxergamos neste pão que foi partido; e o vinho, que no cálice é derramado, aponta para o Teu sangue puro, lá, vertido. E quando, assim, nos reunimos aqui, somos, em Ti, de "um só corpo" , a expressão. Na cruz - Teu sangue puro derramado ali - Tua morte, oh Senhor, nos deu a salvação. Irmãos em Ti, oh quão doce é a união - Tua graça vamos sempre celebrar - é em Teu nome, para Ti é a reunião, pois onde estás, sabemos, é o lugar. 

Nós temos uma esperança - que Tu virás; a Ti, nos ares, nós desejamos ver, quando Tu levares Teu povo ao Lar, e nós reinarmos para sempre Contigo.

8. A Unidade do Corpo

"E falou o Senhor a Moisés, dizendo: Ordena aos filhos de Israel que te tragam azeite de oliveira, puro, batido, para a luminária, para manter as lâmpadas acesas continuamente. Arão as porá em ordem perante o Senhor continuamente, desde a tarde até à manhã, fora do véu do testemunho, na tenda da congregação; estatuto perpétuo é pelas vossas gerações. Sobre o candelabro de ouro puro porá em ordem as lâmpadas perante o Senhor continuamente. Também tomarás da flor de farinha, e dela cozerás doze pães; cada pão será de duas dízimas de um efa. E os porás em duas fileiras, seis em cada fileira, sobre a mesa pura, perante o Senhor. E sobre cada fileira porás incenso puro, para que seja, para o pão, por oferta memorial; oferta queimada é ao Senhor. Em cada dia de sábado, isto se porá em ordem perante o Senhor continuamente, pelos filhos de Israel, por aliança perpétua. E será de Arão e de seus filhos, os quais o comerão no lugar santo, porque uma coisa santíssima é para eles, das ofertas queimadas ao Senhor, por estatuto perpétuo. "E apareceu, no meio dos filhos de Israel, o filho de uma mulher israelita, o qual era filho de um homem egípcio; e o filho da israelita e um homem israelita discutiram no arraial. Então o filho da mulher israelita blasfemou o nome do Senhor, e o amaldiçoou, por isso o trouxeram a Moisés; e o nome de sua mãe era Selomite, filha de Dibri, da tribo de Dã. E eles o puseram na prisão, até que a vontade do Senhor lhes pudesse ser declarada. E falou o Senhor a Moisés, dizendo: Tira o que tem blasfemado para fora do arraial; e todos os que o ouviram porão as suas mãos sobre a sua cabeça; então toda a congregação o apedrejará." 

(Levítico 24:15)


"E aos filhos de Israel falarás, dizendo: Qualquer que amaldiçoar o seu Deus, levará sobre si o seu pecado. E aquele que blasfemar o nome do Senhor, certamente morrerá; toda a congregação certamente o apedrejará; assim o estrangeiro como o natural, blasfemando o nome do Senhor, será morto. E quem matar a alguém certamente morrerá. Mas quem matar um animal, o restituirá, vida por vida. Quando também alguém desfigurar o seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito: Quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado a algum homem, assim se lhe fará. Quem, pois, matar um animal, restitui-lo-á, mas quem matar um homem será morto. Uma mesma lei tereis; assim será para o estrangeiro como para o natural; pois eu sou o Senhor vosso Deus. E disse Moisés, aos filhos de Israel, que levassem o que tinha blasfemado para fora do arraial, e o apedrejassem; e fizeram os filhos de Israel como o Senhor ordenara a Moisés." 

( Levítico 24)


"Há um só corpo e um só Espírito, como também fostes chamados em uma só esperança da vossa vocação."

(Efésios 4:4)


Eu creio, amados irmãos, que não exista um só entre nós, independente da experiência ou extensão de nossa carreira, que não seja afetado pela inexprimível importância de termos a verdade de Deus de forma clara diante de nós. E não apenas diante de nossa mente, mas em nosso coração, como uma realidade divina — algo que nos influencia e nos molda — um elo vivo entre a nossa alma e o Deus vivo, não apenas como uma questão de salvação individual, por mais infinitamente preciosa que esta possa ser, mas como a senda que somos chamados a trilhar, e a posição que ocupamos como cristãos. 

À medida que avançarem, amados irmãos, irão descobrir que nada permanece, em nosso coração, além da verdade de Deus e do fato de a recebermos diretamente dEle, não importa qual o instrumento que a tenha comunicado. Vocês devem estar prontos a dar razão, não apenas da esperança que trazem, mas da senda que trilham, do nicho que ocupam — devem ser capazes de apresentar uma razão divina para tudo, caso contrário não encontrarão firmeza. Isto nunca ficou tão claro quanto agora quando, como todos sabemos, as pessoas estão sendo provadas. 


Encontra-se em andamento na igreja professa e até mesmo em nosso meio, irmãos, um processo de testar e peneirar, o qual a maioria de vocês é capaz de sentir. Não há dúvida de que alguns de nós, podem sentir mais do que outros, porém até o observador menos atento não pode deixar de ver que a peneira está fazendo seu trabalho na igreja professa — fazendo seu trabalho entre nós e tornando manifesto, de forma notável, quem tem sido realmente ensinado por Deus e quem tem meramente se agarrado a algo de si mesmo, ou seguido cegamente as pegadas de seu companheiro. Tem ficado claro, irmãos, se nossa fé está na sabedoria de homens ou no poder de Deus. A fé de segunda mão está sendo provada e achada em falta. Esta não pode se sustentar no dia da prova. 

A responsabilidade de cada um, individualmente, é para com o Deus vivo. Assim, de tudo o que devo dizer, há algo, amados, que creio ter sido colocado pelo Espírito de Deus em meu coração para que eu insistisse com vocês — e vocês sabem que sempre falo com toda confiança e liberdade, e me sinto seguro de que irão receber isto da mesma maneira. Portanto, irmãos, sinto que o Espírito de Deus gostaria que eu enfatizasse primeiro a importância que tem a fé de vocês estar firmada somente no poder de Deus; que não importa a medida dela, o importante é que seu ponto de apoio esteja na sabedoria e no poder de Deus. 

Para que, mesmo que não conseguissem encontrar uma segunda pessoa para apoiá-los, mesmo que não conquistassem a solidariedade de mais ninguém, tivessem ao menos a bendita consciência de que Deus comunicou à alma de vocês uma verdade recebida dEle, a qual é a fonte de toda autoridade, a base da confiança que vocês têm e o verdadeiro segredo do poder que desfrutam. Certa vez um santo, que passava por um período de profundo exercício, contou que precisou fazer a si mesmo esta pergunta e respondê-la da forma mais solene, com a mais piedosa simplicidade: "Se o mundo todo e a igreja deixassem de existir, seria a palavra de Deus a corda suficiente para me transportar através do abismo?". 


Esta é a pergunta, meus irmãos, e é a mesma que irei sugerir que cada um de vocês faça logo de início, do mais velho ao mais novo. Vejo diante de mim, santos de Deus que já eram assim muito antes de mim, e vejo diante de mim, santos de Deus com talvez poucos dias ou poucas semanas nesta posição. Todavia, o princípio no qual agora insisto com vocês é um princípio de importância fundamental; um princípio de valor indizível no qual gostaria de insistir com vocês e, se não fizer nada além de insistir, e voltar a insistir, e cravar este princípio no íntimo das almas de vocês, sentirei não ter falado em vão. 

A pergunta é esta — Você poderia afirmar, mesmo que ficasse totalmente sozinho, que a palavra de Deus é totalmente suficiente, e ainda que o mundo e a igreja deixassem de existir, ela continuaria sendo totalmente suficiente como uma corda capaz de levá-lo através do abismo? Portanto, aí está a pergunta. Vocês são capazes de respondê-la afirmativamente, amados? Faço uma pausa e deixo a pergunta com vocês, para que cada um pondere na própria presença de nosso único Senhor e Mestre: Você tem um senso tal do valor e autoridade da palavra de Deus; você já chegou a um senso assim da realidade desta verdade, desta revelação que Deus lhe deu, que, ainda que não tivesse uma segunda pessoa para apoiá-lo, pudesse dizer: "Isto é totalmente suficiente para mim"? É claro, amados, que vocês dirão que somente o Espírito pode torná-los capazes de tomar posse dessa palavra, desfrutar dela e mantê-la.


É verdade. Todavia falo agora do valor da palavra de Deus e estou convencido de que nunca houve um momento na história da igreja de Deus neste mundo em que tenha ficado tão clara a necessidade de que nossa alma, amados irmãos, precisasse estar enraizada e ancorada, fundamentada e reforçada no conhecimento do fato de que vocês encontram na palavra de Deus tudo o que venham a precisar — na palavra de Deus do modo como ela faz morada no coração de vocês por intermédio do Espírito. Agora alguns de vocês poderiam querer perguntar: "O que essas observações iniciais têm a ver com a passagem que foi lida?" Ou talvez perguntem: "Qual é o seu assunto? Qual é a sua mensagem?" Bem, amados irmãos, vou dizer logo que minha tese é esta: a unidade da igreja de Deus conforme é declarada em Efésios 4:4. E mais uma vez, se alguém se sentir disposto a perguntar o que o capítulo 24 de Levítico tem a ver com a unidade da igreja de Deus, respondo que tem a ver da seguinte forma. 

Fiz a leitura de Levítico 24 com o propósito de ilustrar para vocês, irmãos, a partir da história de Israel e da unidade da nação de Israel, a verdade ainda mais profunda da unidade do único corpo. Agora meu objetivo é colocar diante de vocês o fato de que a unidade do Israel de Deus, Seu povo terreno, é uma ilustração, um tipo se preferirem assim, da unidade ainda mais sublime da igreja de Deus. Então o que foi que observaram na passagem do capítulo 24 de Levítico? Vocês têm ali uma das figuras mais belas e expressivas possíveis para ocupar a mente espiritual; vocês têm nesses doze pães dispostos sobre a mesa de ouro diante do Senhor, a clara figura da unidade indissolúvel e, ao mesmo tempo, a perfeita distinção das doze tribos de Israel. Eis uma grande verdade — a perfeita distinção e, ao mesmo tempo, a indissolúvel unidade das doze tribos de Israel. 


E vocês devem ter notado — não acredito que pudessem ter deixado de notar — a frequência com que as palavras "perpétuo, perpétua e continuamente" ocorrem neste capítulo. Estas palavras aparecem repetidas vezes durante a leitura desta passagem. O que elas significam, amados irmãos? Significam que a unidade do povo de Deus, Israel, não era algo momentâneo ou futuro; era uma grande verdade, uma eterna verdade de Deus representada naqueles doze pães sobre a mesa de ouro, diante do Senhor. Oh, irmãos, que tipo, que apresentação! Além disso, no que diz respeito à intenção desta passagem, talvez vocês se sintam dispostos a fazer outra pergunta: "O que o parágrafo sobre o apedrejamento do blasfemo tem a ver com tudo isso?" 

Creio que tem muito a ver, amados irmãos. Creio que o fato de o Espírito Santo reunir essas coisas nesta passagem é algo significativo, importante e instrutivo. No apedrejamento do blasfemo você tem aquilo que pode ser o destino da nação sob a ação governamental de Deus. Mas, ao mesmo tempo, naqueles doze pães sobre a mesa de ouro, vocês têm a verdade eterna da condição da nação do ponto de vista de Deus — quando vista da perspectiva de Deus a nação era UMA, independente de como pudesse estar sua condição quando vista da perspectiva do homem. Repito, amados — do ponto de vista de Deus, vista à luz daquelas sete lâmpadas de ouro que, em outras palavras, eram a expressão da luz e do testemunho do Espírito Santo baseado e ligado à perfeita obra de Cristo, Israel é UM, a nação é uma. Há doze tribos mantidas em unidade, apesar de, com já disse, sob as deliberações governamentais de Deus, e vistas da perspectiva humana, elas poderem estar sofrendo, como nação, o castigo por seu pecado.


Em suma, não importa o quanto a nação de Israel possa estar dispersa, ferida e esmagada do ponto de vista humano; do ponto de vista de Deus — nos conselhos eternos de Deus — e da perspectiva da fé ela é uma e indivisível. Negar isto é colocar em dúvida a integridade da verdade de Deus. Se pudermos tratar de forma leviana e inconsequente uma passagem em relação a um determinado assunto, então podemos fazer o mesmo com todas as passagens. E agora darei alguns exemplos da forma como a fé se apoderou desta grande verdade e agiu fundamentada nela. Abram juntamente comigo em uma passagem de 1 Reis 18. Não vou pedir que leiam a passagem, mas que tenham suas Bíblias abertas nela. Tenho certeza de que todos estão familiarizados com esta passagem. A cena se passa no topo do Monte Carmelo. É uma cena da história de Elias, o tesbita, bem conhecida de todos, mas para a qual eu gostaria que olhassem com um objetivo em mente. Quero que olhem para ela como uma ilustração do poder da fé nesta grande verdade da unidade das doze tribos de Israel. Estou seguro de que vocês já leram várias vezes a respeito de Elias edificando se altar de doze pedras. Toda criança na escola dominical já leu. 

Mas confesso a vocês, amados irmãos, que por mais que esta passagem tenha sido lida, ultimamente ela tem se destacado aos olhos de minha alma com um brilho que nunca vi antes. Pergunto a mim mesmo: Por que Elias edificou um altar de doze pedras? Que autoridade ele tinha para fazer isso? O que, por assim dizer, impulsionou seu braço a agir assim? Ele estava na presença de oitocentos falsos profetas, estava diante de todo o poder de Jezabel e diante da ruína e apostasia. As dez tribos estavam separadas das outras duas. Do ponto de vista humano havia um rasgo na nação, porém Elias permanece sobre o Monte Carmelo e enxerga aquela nação da perspectiva de DEUS e com os olhos da fé. Ele não usa a razão; ele não diz: "Não vale a pena assumir esta posição arrogante, não vale a pena eu tentar edificar um altar com doze pedras agora. Já foi o tempo de fazer isso. Devo baixar o meu padrão para o nível da real condição das coisas que me cercam. Estaria bem e seria perfeitamente coerente para um Josué ou um Salomão ter edificado um altar assim, mas seria tolice da minha parte tentar fazer o mesmo. Seria o cúmulo da presunção ficar falando em um altar de doze pedras quando as dez tribos estão separadas das outras duas, e quando o cenário todo se encontra em completa ruína". 


Não, meus irmãos, Elias não raciocinou assim; ele se colocou sobre o indestrutível terreno da fé. Elias firmou seus pés onde eu gostaria que cada filho de Deus firmasse seus pés, ou seja, sobre a indestrutível revelação de Deus. Quero que leiam este ato à luz que emana das sete lâmpadas de ouro, e à luz que emana daquela mesa de ouro no santuário de Deus. Quero que vejam, meus amados irmãos, que as palavras "perpétuo, perpétua e continuamente" estão gravadas sobre toda a história da verdade de Deus e em Seus pensamentos concernentes a Israel. Elias não sabia coisa alguma desse princípio tão comum em nossos dias: "Não vale a pena ficar falando de unidade da igreja de Deus". As pessoas reagirão com desdém, desprezo e incredulidade se você falar da unidade do corpo de Cristo. Elas darão de ombros e dirão: "Não venha falar de unidade do corpo. Isso é coisa do passado. Está fora de moda. Não venha falar de unidade da igreja. Onde vai encontrar isso? Onde é praticada? Onde é representada?". Amados irmãos, por um momento façam com que seus pensamentos se voltem para o passado, ponham-se ao lado daquele homem de fé sobre o Monte Carmelo e façam a si mesmos a pergunta: Onde estão as doze tribos? Pode ter sido dito a Elias, o tesbita, com igual veemência: "Não venha falar de unidade da nação. Isso é coisa do passado. Já não existe. É o cúmulo da presunção pensar em edificar um altar de doze pedras diante de um povo dividido, diante de uma unidade quebrada". Mas que peso teria sugestões assim sobre o profeta de nossa passagem? Peso nenhum. Ele olhou para a nação de uma perspectiva divina e, como consequência disso, erigiu seu altar de doze pedras "conforme ao número das tribos dos filhos de Jacó, ao qual veio a palavra do Senhor, dizendo: Israel será o teu nome".

A questão que permanece é: Por quanto tempo Israel deveria manter o nome e por quanto tempo a unidade de Israel deveria subsistir? Continuamente, perpetuamente, para sempre. Foi essa a posição que Elias assumiu. E reparem ainda, amados, naquilo que considero de uma importância indescritível. Não se tratava de mera especulação da mente de Elias. Não se tratava de um dogma ineficaz, de uma opinião influente que ele pudesse sustentar. Elias poderia até conservar a verdade da unidade de Israel como uma fria teoria na esfera de seu intelecto; poderia até ir tranquilamente mais além e dizer em seu coração: "Creio na unidade da nação de Israel, mas não vou confessá-la. Não existe nada visível a respeito e, portanto, não sou eu quem irá trazer o assunto à tona; não vou, por assim dizer, assumir uma posição a esse respeito. 


Não vou levar isso adiante". Mas não foi assim. Elias sentiu claramente que se a unidade das doze tribos era uma verdade importante, portanto ela deveria ser expressa, não importa o quanto custasse, e por isso ele a expressou. Como? Edificando um altar de doze pedras, "conforme ao número das tribos dos filhos de Jacó, ao qual veio a palavra do Senhor, dizendo: Israel será o teu nome". A fé jamais poderia abrir mão disso. Tratava-se de uma importante verdade prática — para ser assumida e exercitada na presença de dezenas de milhares de dificuldades e de dezenas de milhares de oponentes. Elias não poderia baixar o padrão nem mesmo a espessura de um fio de cabelo. Ele não poderia deixar que a verdade de Deus fosse pisoteada pelos sacerdotes e profetas de Baal. Ele sentiu que o sacrifício que estava prestes a oferecer ao Deus de Israel só poderia ser apresentado sobre um altar de doze pedras. Isso era fé. Faço aqui uma pausa para que possam meditar nisso, pois é algo que realmente exige nossa profunda atenção. Não se trata de mera questão de opinião, que deve ou não ser aceita conforme a nossa vontade. As pessoas falam de manter a doutrina da unidade mística do corpo de Cristo, mas não existe uma verdade sequer que não seja designada para ser colocada em prática; nenhuma verdade que não seja destinada a causar uma influência no coração e na vida. Isto fica muito claro no caso de Elias. A unidade das doze tribos era para ele uma importante realidade, era algo que ele se sentia obrigado a confessar na presença dos oitocentos profetas de Baal, e diante de Jezabel e das perseguições que ela promovia. 

Elias não escondeu a verdade sob um alqueire ou debaixo da cama, mas a confessou aberta e destemidamente diante de homens e demônios. Ele edificou um altar de doze pedras e, ao fazer isso, expressou sua fé viva na grande verdade que é a unidade eterna da nação de Israel. Vejam que se ele não agisse assim estaria rebaixando o padrão da verdade de Deus até ao pó, para ser pisoteada pelos profetas de Baal. Isso ele não podia fazer. A verdade de Deus era algo sagrado, e não apenas isso, mas era e é algo que tem o poder de influenciar e formar. Assim como o profeta sentiu, assim foi a maneira como agiu. E podemos afirmar com segurança que se ele não tivesse edificado o altar de doze pedras, o fogo de Deus não teria caído sobre o sacrifício. Aquele fogo era a expressão da aprovação divina. Era como a glória do Senhor enchendo o antigo tabernáculo e o templo tempos depois, após tudo ter sido feito de acordo com a ordem divina. Que espetáculo sublime para o coração contemplar, amados irmãos! 


É por demais magnífico vermos Elias, o profeta, desfraldando o estandarte na presença daqueles oitocentos falsos profetas, para ler naquele estandarte, em caracteres indestrutíveis, a verdade da unidade da nação de Israel. Há nisso uma grandeza moral que cativa o coração. E mais — pois esta seria apenas uma pequena parte —, há nisso um poder moral capaz de sustentar nossos corações na confissão dessa excepcional verdade da unidade do corpo de Cristo, bem diante do escárnio da incredulidade, diante de todo desprezo e zombaria que venhamos a encontrar quando procuramos expressar esta preciosa verdade de que "há um só corpo e um Espírito". 

Mas permitam-me perguntar a vocês, irmãos: Vocês acham que Elias não tinha coragem de admitir que as dez tribos estavam separadas das outras duas? Será que passaria pela cabeça de vocês que com toda a sublimidade daquele espetáculo que nos foi apresentado sobre o Monte Carmelo, ele não era capaz de chorar pela ruína e desolação ao seu redor? Ah, não! Voltem a olhar para o profeta e onde vocês o encontram? Lá está ele, prostrado diante de Deus, com sua cabeça enfiada entre os joelhos, prostrado no pó. Esperando — esperando em Deus para quê? Até que uma nuvem aparecesse, um precursor da benção a ser derramada da infindável tesouraria de Deus que, apesar de toda a infidelidade de seu povo, está sempre pronto a corresponder à fé onde quer que ela exista. A fé assume a ruína, se prostra sentindo seu peso e, mesmo assim, se eleva sobre ela e confia em Deus, que nunca decepciona um coração confiante. Devo pedir a vocês que agora abram comigo no capítulo 29 do segundo livro de Crônicas.


Observem uma parte do versículo 24 daquele capítulo, a qual contém o mesmo princípio. "Porque o rei tinha ordenado que se fizesse aquele holocausto e sacrifício pelo pecado" — por quem? Por Judá e Benjamim? Não. Por "todo o Israel" (2 Cr 29:24). Temos aqui o mesmo princípio. Vocês veem aqui Ezequias assumindo sua posição sobre o mesmo terreno elevado que Elias ocupou em sua época. As dez tribos estavam divididas das outras duas. Jotão e Acaz faziam seu trabalho e as coisas iam de mal a pior. Mas eis aqui Ezequias fazendo o mesmo que Elias, e agindo na mesma fé. Não se trata de uma questão de medida de inteligência — não é este o ponto; mas, amados irmãos, trata-se de uma das preciosas características do assunto que está diante de nós esta noite, que é uma questão de simples fé, na verdade, da perfeita unidade de Israel aos olhos de Deus. Trata-se da fé simples fixando essas preciosas palavras que brilham como pedras preciosas em Levítico 24: "Um estatuto perpétuo", "uma aliança perpétua". Aqui não se trata de uma questão da conduta de Israel para com Deus. Isto certamente tem sua importância e lugar. Não estamos agora falando dos desertos do homem, mas das operações de Deus — não do fracasso de Israel, mas da fidelidade de Jeová. 

É nosso santo privilégio permanecer no santuário de Deus e contemplar com os olhos da fé fixados naqueles doze pães sobre a mesa de ouro puro, sob as sete lâmpadas do candelabro de ouro — um tipo do testemunho do Espírito Santo. E o que aquele testemunho representa? Da forma mais clara possível, que mesmo em meio às mais tristes e sombrias vigílias na noite da nação, as doze tribos permanecem diante dos olhos de Deus em sua perfeita unidade, intocadas por todas as oscilações, reviravoltas e agitações das nações. O blasfemo podia precisar ser apedrejado fora do arraial; as ações governamentais de Deus podiam ser manifestadas em toda a sua dura realidade; mas a fé enxerga os doze pães sobre a mesa de ouro. A fé tem a ver com realidades eternas. Ela permanece como que enxergando Aquele que é invisível. Ela olha para as coisas além do véu. 


Ela coloca Deus no seu devido lugar, e em circunstância alguma é abalada pelas aparências externas. Em suma, a fé conhece a Deus e pode confiar nEle em tudo. A fé é o conhecimento de Deus, é confiança em Deus — isto é fé. Ah, que realidade, amados irmãos! Insisto sinceramente com vocês, como na presença de Deus — insisto com cada um de vocês para que tome posse disso, dessa simples fé em Deus, que conduzirá sua alma através de toda sorte de circunstâncias. A mesma fé que susteve Elias no topo do Carmelo, a mesma fé que capacitou Ezequias a ordenar que a oferta queimada e a oferta pelo pecado fossem feitas por "todo o Israel" — ou seja, o sacrifício que devia ser o fundamento de todas as esperanças da nação, o sacrifício que, neste sentido, devia englobar todo o Israel de Deus. E agora, fazendo referência aos atos do bom rei Ezequias, vejamos como sua fé foi considerada; vamos assinalar como ele foi tratado quando procurou, dentro de sua capacidade, colocar em prática a verdade de Deus. Pois é bom lembrar que Ezequias não se satisfez apenas com a oferta do sacrifício por "todo o Israel". 

Ele não apenas estabeleceu a base sobre a qual o povo de Deus devia se reunir, mas procurou reunir o mesmo povo sobre essa base. E repare como ele fez isso. "E ordenaram que se fizesse passar pregão por todo o Israel, desde Berseba até Dã, para que viessem a celebrar a páscoa ao Senhor Deus de Israel, em Jerusalém; porque muitos não a tinham celebrado como estava escrito". "Foram, pois, os correios com as cartas, do rei e dos seus príncipes, por todo o Israel e Judá, segundo o mandado do rei, dizendo: Filhos de Israel convertei-vos ao Senhor Deus de Abraão, de Isaque e de Israel; para que ele se volte para o restante de vós que escapou da mão dos reis da Assíria. 


E não sejais como vossos pais e como vossos irmãos, que transgrediram contra o Senhor Deus de seus pais, pelo que os entregou à desolação como vedes. Não endureçais agora a vossa cerviz, como vossos pais; dai a mão ao Senhor, e vinde ao seu santuário que ele santificou para sempre, e servi ao Senhor vosso Deus, para que o ardor da sua ira se desvie de vós. Porque, em vos convertendo ao Senhor, vossos irmãos e vossos filhos acharão misericórdia perante os que os levaram cativos, e tornarão a esta terra; porque o Senhor vosso Deus é misericordioso e compassivo, e não desviará de vós o seu rosto, se vos converterdes a ele." (2 Cr 30:5-9). Quando visto da forma correta, aquilo era um apelo por demais tocante e poderoso. Ezequias se coloca no terreno mais elevado e quer que os outros façam o mesmo. Ele próprio estava conscientemente sobre o terreno divino e gostaria que outros ocupassem o mesmo lugar com ele. Seus olhos estavam fitos no Deus de Abraão — na terra de Israel — em Jerusalém — e em toda a nação do povo de Deus. Pode ser, e sem dúvida aconteceu, que no julgamento de muitos a atitude de Ezequias de usar de uma linguagem assim tão elevada, falando como se ele e aqueles que estavam com ele fossem os únicos que estavam certos e todos os seus irmãos errados, cheirava a presunção. Mas isso dependeria tão somente do espírito no qual a carta fosse recebida e lida. Para o orgulho e a autossuficiência um apelo assim seria absolutamente intolerável, mas onde existisse uma contrição e humildade genuínas, ela seria recebida com calorosa aprovação. E foi o que realmente aconteceu, pelo que lemos na passagem diante de nós. "E os correios foram passando de cidade em cidade, pela terra de Efraim e Manassés até Zebulom; porém riram-se e zombaram deles. 

T

odavia alguns de Aser, e de Manassés, e de Zebulom, se humilharam, e vieram a Jerusalém". Isso, irmãos, é exatamente o que sempre acontecerá. A fé e suas ações serão motivo de zombaria por aqueles que se encontram sobre um terreno falso, aqueles que andam nas faíscas do fogo que eles mesmos acendem. Mas o coração contrito e quebrantado obtém a bênção que sempre flui quando se crê no que Deus diz e quando se atua com base em Sua verdade eterna. Aqueles que humildemente acataram o apelo de Ezequias se reuniram sobre o terreno de Deus e reconheceram o centro de Deus. Eles não disseram: "Não vale a pena dotar um terreno tão elevado nas condições atuais da nação. É o cúmulo da tolice e presunção Ezequias tentar levar adiante princípios assim em meio à desalentadora ruína da atual dispensação". Não, eles "se humilharam" e foram a Jerusalém.


Em verdadeira humildade de propósito, eles se reuniram para levar adiante o objetivo de Deus — isto é, celebrar a páscoa. E qual foi o resultado? Ficaram todos desapontados? Será que aquilo mostrou que não passavam de meros entusiastas visionários agindo de acordo com alguma tola quimera inventada por Ezequias, ou consequência de alguma ideia maluca deles próprios? Ah, não! Eles tiveram o privilégio de experimentar uma bênção tão rica quanto a que foi experimentada nos mais brilhantes e prósperos dias da nação. "E os filhos de Israel, que se acharam em Jerusalém, celebraram a festa dos pães ázimos sete dias com grande alegria; e os levitas e os sacerdotes louvaram ao Senhor de dia em dia, com estrondosos instrumentos ao Senhor. E Ezequias falou benignamente a todos os levitas, que tinham bom entendimento no conhecimento do Senhor; e comeram as ofertas da solenidade por sete dias, oferecendo ofertas pacíficas, e louvando ao Senhor Deus de seus pais. E, tendo toda a congregação conselho para celebrarem outros sete dias, celebraram ainda sete dias com alegria. 


Porque Ezequias, rei de Judá, ofereceu à congregação mil novilhos e sete mil ovelhas; e os príncipes ofereceram à congregação mil novilhos e dez mil ovelhas; e os sacerdotes se santificaram em grande número. E alegraram-se, toda a congregação de Judá, e os sacerdotes, e os levitas, toda a congregação de todos os que vieram de Israel, como também os estrangeiros que vieram da terra de Israel e os que habitavam em Judá. E houve grande alegria em Jerusalém; porque desde os dias de Salomão, filho de Davi, rei de Israel, tal não houve em Jerusalém. Então os sacerdotes e os levitas se levantaram e abençoaram o povo; e a sua voz foi ouvida; porque a sua oração chegou até à santa habitação de Deus, até aos céus." (2 Cr 30:21-27). Aqui estava, portanto, a resposta de Deus à fé de Ezequias, pois Ele nunca desaponta um coração que conta com Ele. Aqueles quatorze alegres dias, passados pela congregação em torno do banquete pascal, forneceram a mais ampla prova da realidade de se confiar no Deus vivo, apesar de todo o fracasso e ruína que sempre marcam a história e os caminhos do ser humano. "Desde os dias de Salomão, filho de Davi, rei de Israel, tal não houve em Jerusalém". 


Deus pode preencher o coração do Seu povo com gozo, ações de graças e louvor, ainda que tudo ao redor esteja caracterizado por confusão e desolação. E é bom que se lembre — sim, que nunca nos esqueçamos disso — que todo esse gozo e bênção podem muito bem comportar o mais profundo senso do fracasso e infidelidade do homem. Aliás, são duas coisas que sempre serão encontradas juntas. Assim, no caso de Ezequias, nós o vemos reconhecendo da forma mais completa a verdadeira condição da nação, na prática. Isto é visto no fato de terem celebrado a páscoa no segundo mês ao invés de fazê-lo no primeiro. "Então sacrificaram a páscoa no dia décimo quarto do segundo mês; e os sacerdotes e levitas se envergonharam e se santificaram e trouxeram holocaustos à casa do Senhor". Observamos aqui a congregação se beneficiando da graça conforme mostrado em Números 9:10-12. Isso era feito dentro de uma adorável ordem moral. A fé sempre reconhece a verdadeira condição das coisas, mas conta com as mesmas amplas provisões da graça divina. Ezequias sentia que as pessoas não estavam em conformidade com o padrão divino, mas sabia que a graça de Deus podia atendê-las onde estivessem, desde que elas tão somente se colocassem em seu devido lugar. 


Portanto, ele orou por eles, dizendo, "o Senhor, que é bom, perdoa todo aquele que tem preparado o seu coração para buscar ao Senhor Deus, o Deus de seus pais, ainda que não esteja purificado segundo a purificação do santuário. E ouviu o Senhor a Ezequias, e sarou o povo". Assim foi nos dias de Ezequias e assim é hoje. Havia a confissão do fracasso humano e, todavia, a avidez pela fidelidade divina. Se Israel não estava em condições de celebrar a páscoa no primeiro mês, Deus podia abençoá-los no segundo mês. Embora a condição de Israel não estivesse de acordo com o padrão de Deus, a graça de Deus podia descer à condição de Israel. O segundo mês não era, evidentemente, o primeiro, mas se tão somente existisse um preparo do coração, Deus podia abençoar tanto em um como no outro. De nada adianta assumir o que não somos. Devemos assumir nosso verdadeiro lugar, e Deus pode nos encontrar ali, em conformidade com o que Ele é em Si mesmo.


É assim que a fé aumenta em Deus, e se apodera daquelas coisas que são decorrentes de Sua infalível fidelidade. Por conseguinte — e para aplicarmos nossa ilustração — leio no quarto capítulo da epístola aos Efésios que "há um só corpo", e descubro essa verdade colocada lado a lado com as grandes verdades cardeais da religião cristã, de tal modo que se você tocar uma deve tocar todas, se abalar uma irá abalar todas. Não vejo, amados irmãos, como alguém pode solene e verdadeiramente sustentar qualquer verdade de Deus se, ao mesmo tempo, deixa que outra verdade seja desprezada só por ela não estar visível, na prática. Suponha que vocês me perguntem: "Você crê nas doutrinas da justificação pela fé, do pecado original e da completa ruína do homem?" Certamente. "Você crê que há um só Senhor, uma só fé, um só batismo, um só Deus e Pai de todos?" "Por que você crê nestas coisas? Porque as sente, ou as vê?" Não. "Por que você crê nelas?" Creio nelas porque a palavra de Deus as revela. Esta é a única base de fé para qualquer uma das verdades da religião cristã e, portanto, se eu fosse rejeitar a importante doutrina da unidade do corpo de Cristo por causa das inumeráveis divisões da cristandade, estaria julgando por vista, ao invés de estar edificando sobre a verdade de Deus. 


Estaria raciocinando a respeito do que vejo, ao invés de crer naquilo que Deus me diz. Portanto, se eu for questionado da razão de crer na doutrina da justificação pela fé, responderei que é por ela ser apresentada no indestrutível volume da palavra de Deus. É baseado nisto também que creio na unidade do corpo, na deidade de Cristo, na perfeita humanidade de Cristo e na virtude sacrifical de Seu sangue. Creio na eficácia de Seu sacerdócio. Creio no fato de Sua glória vindoura. Creio em todas estas verdades porque estão escritas nas sagradas escrituras. Muito bem, fundamentado no mesmíssimo terreno, há um só corpo e um só Espírito. Vocês acham que eu deveria crer nisto com maior firmeza se todos os verdadeiros santos de Deus em Londres estivessem partindo o pão em um mesmo edifício a cada dia do Senhor? É certo que não. Eu creio, mas não é por ver acontecer na prática, mas por estar declarado no capítulo quatro de Efésios que "há um só corpo". Vamos agora abrir, por alguns momentos, nesta história tão interessante e instrutiva que é a de Josias, como está registrada em 2 Crônicas 34 e 35. Encontraremos ali uma impressionante ilustração deste mesmo importante princípio. Josias, assim como Ezequias e Elias, reconheceu a unidade das doze tribos e agiu sobre sua verdade em meio ao mais humilhante e deprimente estado de coisas. Ele agiu em conformidade com a verdade imutável de Deus, e não de acordo com a condição do povo de Deus, na prática. 


Ele levou adiante suas operações de reforma a todas as cidades que pertenciam a Israel e, ao falar aos Levitas, ordenou-lhes, no início daquele dia maravilhoso, que servissem ao Senhor e ao Seu povo, Israel. Veja bem este ponto. Ele ordenou que os Levitas servissem a Jeová, e não ao Seu povo, Judá; mas ao 'Seu povo Israel'. Ele só podia falar e agir para com a nação em conformidade com a vontade revelada de Deus, e não de acordo com a condição do povo, na prática. É o altar das doze pedras mais uma vez. É a "oferta queimada e a oferta para o pecado para todo o Israel". São os doze pães sobre a mesa de ouro, sob a luz das sete lâmpadas de ouro. É o Israel de Deus na perspectiva da fé. E mesmo assim Josias se colocou no ponto mais baixo. A nação estava prestes a se dissolver, Nabucodonosor estava quase diante dos portões — nada disso importava. A coisa toda estava a ponto de se desmoronar em decadência — não importava, a fé não iria desmoronar. Josias em espírito, Josias em princípio, voltou à mesa de ouro — o único lugar para a fé. Oh, irmãos, vocês veem isso? Pergunto a cada um de vocês: Você abastece sua alma da preciosa verdade de tal forma que, mesmo que faltasse alguém para apresentar isto a você em linguagem inteligível, você estaria certo — tão certo quanto aquelas lâmpadas ardem diante de mim — de que nos ocupamos neste momento com um princípio que, se você o agarrar, irá trazer reforço à sua alma e prover intrepidez e vigor em toda a sua carreira prática, não importa o que venha contra você? Não suponham que eu esteja conduzindo vocês por estas cenas históricas do Antigo Testamento meramente para ocupar uma hora. 


Não, irmãos, estou entregando a vocês os fatos que Deus tem colocado em meu coração para que eu fale. Pois qual é o grande objetivo desta assembleia? Qual a razão de estarem aqui? Passar uma hora? Não, vocês devem se lembrar de que o objetivo de uma assembleia como esta é levar as pessoas a um contato pessoal e real com a verdade de Deus. Tal é o objetivo de reuniões assim, e é um dever sagrado que cabe a cada homem que se encontra numa posição como esta falar aos ouvidos de seus irmãos. Digo que é seu dever sagrado — e deveria o único objetivo a ocupá-lo — colocar a alma e Deus em um vivificante contato pessoal. Isso é poder. Posso pregar um sermão, posso desenvolver uma série de palestras e nunca colocar a alma face a face com Deus, ou trazer a consciência à luz e autoridade das sagradas escrituras. Ora, foi isto o que Josias fez. Após sentir em sua própria alma a poderosa ação da palavra de Deus, ele procurou trazer as almas de seus irmãos sob a mesma influência poderosa. (Veja 2 Crônicas 34:29, 30). 


E qual foi o resultado? O resultado foi que desde os dias do Rei Salomão, desde aqueles dias prósperos e refulgentes, jamais havia ocorrido uma páscoa como a que foi celebrada por Josias bem no final da história da nação. Qual o significado disso? Trata-se de outro elo da corrente; trata-se de outra pérola do colar; trata-se de outra gema da tiara. Trata-se da resposta de Deus à fé de Seu servo. Josias assumiu sua posição de fé em Deus, e Deus correspondeu à fé. Nunca fora celebrada uma páscoa assim em todo o período dos reis. Pense nisto! O reinado de Salomão teve todas aquelas glórias, o reinado de Davi todas as suas vitórias, mas o testemunho do Espírito Santo é de que nunca fora celebrada uma páscoa como a do reinado de Josias. E você vê que Deus foi mais glorificado pela atitude de Josias do que jamais havia sido por todo o ouro e prata derramado no tesouro de Salomão, exatamente pelo fato das circunstâncias de Josias terem colocado uma auréola em torno de sua fé. Todavia, vou pedir que se voltem para outro exemplo. Aqueles casos que já abordamos são extraídos, conforme irão observar, do período antes do cativeiro. Agora quero que vocês vejam um exemplo tirado do período durante o cativeiro. 


Peço que abram no sexto capítulo de Daniel, e ali vocês encontram outra encantadora porção da história de fé. Este capítulo descortina para vocês o mesmo grande princípio. Aqui vemos um grupo de exilados, cativos de entre os filhos de Judá, sob as mais deprimentes e humilhantes circunstâncias. A glória e o poder tinham deixado Israel. Os atos judiciais de Deus, os atos governamentais de Deus, tinham exercido sua influência sobre eles. Foram todos quebrantados e levados cativos, a cidade fora deixada em ruínas, tudo estava acabado! Porém, irmãos, a palavra de Deus não estava em ruínas; a verdade de Deus não estava em ruínas; a fidelidade de Deus não estava em ruínas. E pela simples razão de a verdade de Deus e a fidelidade de Deus não estarem em ruínas, tampouco a fé do povo de Deus estava em ruínas. Esta última brilha com um fulgor peculiar nas atitudes daquele ilustre exilado Daniel. Na verdade, a julgar por sua história, poderia parecer que quanto maiores as trevas que engolfavam a nação como um todo, mais brilhantes eram os lampejos da fé individual. Assim aconteceu durante o cativeiro babilônico.

Embora os cativos tivessem que pendurar suas harpas nos salgueiros; embora a glória tivesse deixado Israel; embora os vasos da casa do Senhor estivessem no templo de um deus falso; embora tudo fosse lúgubre e opressivo como era de se esperar; ainda assim a fé de Daniel se elevou de forma majestosa acima da obscuridade das circunstâncias, e se apossou da imutável e eterna verdade de Deus; e não apenas se apossou dela, mas a colocou em prática. Daniel abriu sua janela e orou voltado para Jerusalém. 


Por que fez isso? Por que orar voltado para Jerusalém? Seria isso ideia sua, ou seria a consequência de algum importante princípio divino? Sem dúvida alguma era esta a razão, como logo se vê em 2 Crônicas 6:36-38. Esta passagem é um prenúncio da própria posição na qual Daniel se encontrava, e prescreve sua forma de agir. "E se converterem a ti com todo o seu coração e com toda a sua alma, na terra do seu cativeiro, a que os levaram presos, e orarem para o lado da sua terra, que deste a seus pais, e para esta cidade que escolheste, e para esta casa que edifiquei ao teu nome". 

Era este o fundamento do modo de agir de Daniel em Babilônia nos dias de Dario; aí estava a autoridade para agir assim. A fé sempre procura e encontra justificativa para suas ações na palavra de Deus. Isto é mais oportuno do que nunca. Se Daniel não tivesse um fundamento divino para orar voltado para Jerusalém, sua conduta teria sido completamente absurda. Teria sido o cúmulo da tolice se arriscar a ser lançado na cova dos leões meramente por causa de uma teoria inventada por ele. Todavia, se existia um princípio divino envolvido, então sua conduta era o que podemos chamar de perfeitamente sublime. Era, na verdade, "a oferta queimada e a oferta pelo pecado de Israel"; era a repetição do altar de doze pedras; eram os doze pães sobre a mesa genuína; era reconhecer o centro de Deus e se colocar sobre o fundamento divino, ao invés de basear-se na incorrigível ruína daquela dispensação e na escuridão moral que pairava sobre o horizonte da nação. 


A fé atua com base, na verdade de Deus, deixando de fora as circunstâncias, não importam quais sejam, e Deus sempre hora a fé e permite que ela faça sua colheita em um campo dourado em meio às mais terríveis e humilhantes circunstâncias. Portanto, assim vemos que Daniel simplesmente seguiu as pegadas dos Josias, Ezequias e Elias de outros tempos. Ele dividiu o palco com aqueles homens de Deus que, diante de pavorosas dificuldades, tinham erguido com mão firme o estandarte da verdade eterna. Ele tem o seu lugar em meio à "grande nuvem de testemunhas" das quais o Espírito Santo fala em Hebreus 11, testemunhas do poder e valor da fé no Deus vivo. 

Daniel abriu sua janela e orou voltado para Jerusalém, apesar de Jerusalém estar em ruínas; orou voltado para o templo, apesar de o templo ter sido transformado em cinzas. Ele não olhava para as coisas que podia ver, mas para aquelas que não eram visíveis. Ele reconhecia o centro de Deus — o ponto de reunião das doze tribos de Israel, embora aquele centro não estivesse dentro do alcance da visão humana, e as doze tribos estivessem espalhadas até os confins da terra. Ele não baixou o padrão de Deus a fim de adequá-lo às condições de Israel, mas o sustentou com a mão vigorosa da fé. E qual foi o resultado? Um esplêndido triunfo! É certo que ele precisou descer até a cova dos leões, mas saiu de lá. Desceu como testemunha e subiu como vencedor.


Todos os personagens de Deus descem antes de subir. É uma regra do reino. Daniel desceu até a cova, mas duvido que tenha passado uma noite mais feliz neste mundo do que aquela que passou na cova. Ele estava ali por Deus, e Deus estava ali com ele. Isto apenas para falar da noite. E o que dizer da manhã? Maior foi a vitória! O mais orgulhoso monarca do mundo é vencido pelo exilado cativo. Daniel pôde tornar realidade em sua própria pessoa a verdade da antiga promessa feita a Israel — "E o Senhor te porá por cabeça, e não por cauda". É sempre assim. A pessoa que age de acordo com a verdade de Deus, independente de quais sejam as circunstâncias exteriores, pode experimentar uma comunhão tão elevada como jamais conheceu ou poderia conhecer nos momentos mais brilhantes de sua dispensação. Este é um princípio de imensa importância; um princípio que sinceramente gostaria de incutir em todos os cristãos. Às vezes, sob as debilitantes influências da incredulidade, somos capazes de supor que é impossível desfrutar dos elevados privilégios que fazem parte de nosso chamado como cristãos, achando que a igreja fracassou e está em ruínas. Este é um terrível erro causado por uma incredulidade sombria e deprimente. A fé, ao contrário, conta com Deus. 


Ela mantém seus olhos fixos em sua imutável e indestrutível revelação. Ela descansa na infalível fidelidade de Deus e, deste modo, desfruta de comunhão com a mais elevada verdade que caracteriza a dispensação na qual atua. Daniel provou isso em seus dias, e o mesmo pode ser dito de todos aqueles que tão somente agirem sobre o mesmo grande princípio. Não há dúvida de que devem ter dito a ele, como não é incomum falarem em nossos dias: "É o cúmulo da presunção; você só pode ser um entusiasta visionário para ficar orando voltado para um lugar que não passa de uma cena de desolação. Ao invés disso você deveria lançar esse nome no esquecimento; deveria baixar uma cortina de silêncio sobre o próprio nome de Jerusalém, pois se trata da própria cena de sua ruína e humilhação". Todavia, ah, amados, Daniel estava imerso no profundo e precioso lugar secreto de Deus. Ele ocupava o lugar divino e via tudo daquela perspectiva; daí a precisão e amplitude de sua visão, daí a firmeza de sua carreira, daí o esplendor de sua vitória. 


E aqui, mais uma vez, permita-me lembrar-lhes daquilo que ressaltei antes, de que esta verdade não se tratava de especulação; não era algo que você pudesse conservar de modo quieto e confortável em algum secreto recanto de sua mente, enquanto permanecesse em casa, sentado muito confortavelmente em sua poltrona ao lado da lareira, professando que Israel era uma única nação. Não. Daniel agiu daquela forma tendo diante de si a cova dos leões. A cova dos leões já abria sua boca para recebê-lo, mas Daniel nunca se preocupou com ela; ele não tinha nada a ver com a cova dos leões — tanto quanto não tinha nada a ver com as ruínas de Jerusalém. Ele tinha a ver com a verdade de Deus. Ele se voltou para os doze pães, para a mesa de ouro com o candelabro no santuário de Deus — ele se voltou para aqueles doze pães e ali enxergou, com os olhos da fé, a fonte de luz viva que descia do céu sobre a ininterrupta união do amado Israel de Deus. Como podem ver não se tratava de especulação, tratava-se de uma verdade que deve ser confessada, custe o que custar, e ele a confessou. Sim, ele "orou voltado para Jerusalém".

Alguém que não entendesse o que ele fazia poderia dizer, "Não consigo de modo algum entender isso. Tenho certeza de que você poderia orar da forma mais sincera e confiante possível, com suas cortinas baixadas e sua janela fechada. Poderia se retirar para a privacidade de seus aposentos, mas por que orar assim?" Vocês acham que ele estava agindo com base em alguma ideia tirada de sua cabeça? Não, amados, gostaria que vocês enxergassem isso, e não posso continuar sem antes deixar clara esta verdade, de que Daniel estava agindo com base apenas e tão somente, na verdade, de Deus, quando abriu sua janela e orou voltado para Jerusalém. Daniel poderia muito bem ter dito, "Tudo bem, vocês podem me lançar na cova esta noite, mas jamais abrirei mão da verdade de Deus. Devo permanecer nela, custe o que custar. Não tenho nada a ver com os resultados — nada a ver com as consequências. Estas eu as deixo totalmente com Deus. Minha função é simplesmente obedecer". E é nisto que está o maior valor. 


Hoje em dia escutamos muito falar de ausência de poder na igreja. Dizem-nos que não há poder para isto, não há poder para aquilo. Nossa resposta para todo raciocínio desse tipo é simplesmente que não se trata, de modo algum, de uma questão de poder, mas de obediência. Acaso havia grande poder nos dias de Daniel? Havia. Havia o poder da fé e o poder da obediência. É este o tipo de poder que queremos. Não se trata de poder exterior — ou dons para exibir — ou milagres impressionantes, mas aquele quieto, humilde, constante espírito de obediência que conduz o homem de Deus pela estreita senda de Seus mandamentos. 


É isto que queremos. É com isto que nosso Deus se apraz e é a isto que Ele concede o doce selo de Sua presença. Digam-me, amados irmãos, em quê Deus coloca o selo de Sua presença? Ele concede isso onde existir fé para crer em Sua palavra, onde existir fé para confessar a verdade de Deus. Não importam quais sejam as dificuldades, não importa o quão desencorajados possamos estar, o padrão nunca deve ser baixado.

Alguém dirá: "Oh, não faz sentido falar assim; você deve abrir mão. Não vê que o próprio Deus está contra você?" No sentido governamental, se me permite, o blasfemo está sendo apedrejado fora do arraial, mas os doze pães continuam intactos sobre a mesa. É este o princípio — trata-se do duplo princípio que envolve toda a história dos caminhos de Deus, seja com o Israel do passado, seja com a igreja hoje. O juízo de Deus pode pairar sobre nossa condição prática, ao mesmo tempo, em que os olhos da fé permanecem fixos no indestrutível padrão de Deus. A fé individual se banha à luz da verdade eterna de Deus, apesar da ruína e dos destroços daquele que professa ser o povo de Deus. Este é um princípio da mais extrema simplicidade, mas da maior magnitude e valor prático. Sua aplicação para o assunto especial que temos diante de nós, a saber, a unidade da Igreja de Deus, é tão clara quanto convincente. Se olharmos ao redor — se julgarmos por aquilo que nossos olhos veem — se tirarmos nossas conclusões a partir das ruínas da cristandade, passará a ser mera quimera falar da unidade da igreja de Deus. 


Mas não, nós simplesmente confiamos na palavra de Deus, cremos no que Ele diz, não porque vemos ou sentimos algo, mas porque Ele diz. Isto é fé. Por que cremos no perdão dos pecados? Por que cremos na presença do Espírito Santo? Por que cremos em qualquer uma das grandes verdades fundamentais do cristianismo? Simplesmente porque as encontramos na eterna página inspirada. Portanto, é exatamente sobre a mesma base que cremos no um só corpo e na indissolúvel unidade da igreja de Deus. "Há um só corpo". Ele não diz, "havia um só corpo" ou "haverá um só corpo". 

Não, ele diz "há um só corpo". Eis aqui nossa autoridade para crer e confessar esta gloriosa verdade e usá-la em nosso testemunho prático contra tudo aquilo que venha negá-la. O primeiro passo ao confessar a unidade da igreja de Deus é sair das divisões da cristandade. Não devemos parar antes disso para perguntar qual deve ser nosso segundo passo.


Deus nunca dá luz para dois passos de uma só vez. É verdade que não há mais do que um só corpo? Isto é inquestionável. Deus o afirma. Bem, então as divisões, as seitas e os sistemas da cristandade estão totalmente contra o pensamento, a vontade e a palavra de Deus. É verdade. O que devemos fazer? Abandonar isso tudo. Este é, podemos estar seguros, o primeiro passo na direção certa. Se o lugar que ocupamos for falso, então toda a nossa perspectiva será falsa. Devemos adotar uma posição verdadeira e então nossa perspectiva será correta. É impossível fazer qualquer confissão prática da unidade da igreja de Deus e, ao mesmo tempo, permanecer ligado àquilo que nega isto, na prática. 

Acabaremos tendo a teoria nos domínios de nosso entendimento, enquanto negamos a realidade em nossa carreira prática. Porém, se desejamos confessar a verdade do único corpo, nosso primeiro compromisso — nosso dever primário — é estar em total separação de todas as seitas e divisões da cristandade. "Todavia" — alguns podem inquirir — "será que isso não resultaria na formação de uma nova seita, e não apenas isto, mas na formação da mais restrita e intolerante dentre todas as seitas?" De modo algum. Pode parecer isso, segundo o raciocínio meramente natural — até mesmo de natureza religiosa. Mas a questão é: As divisões da cristandade estão em conformidade com Deus? Os muitos corpos da igreja professa estão em conformidade com o "um só corpo" de Efésios 4? É claro que não. 

Portanto, é nosso dever divinamente designado sairmos fora disso tudo, e é impossível pensar que o fato de colocar em prática um dever divinamente ordenado poderia levar ao sectarismo ou ao cisma. Ao contrário, trata-se de um testemunho em direta e positiva oposição ao sectarismo e, além disso, o primeiro grande passo para a manutenção da unidade do Espírito no vínculo da paz é sair das divisões da cristandade. E depois? Olhar para Jesus, e isto significa continuar até o fim. Será que isto — repetimos a pergunta — significa formar uma nova seita ou se filiar a um novo corpo? De modo algum, trata-se de fugir das ruínas ao nosso redor para encontrar nossa fonte na total suficiência do nome de Jesus. Trata-se de abandonar o barco ao ouvir a ordem de Jesus, manter o olhar fixo nEle em meio ao lamaçal revolto, até chegarmos à segurança do porto de glória e descanso eternos.

9. A total suficiência de Cristo

A partir do momento em que a alma é levada a sentir a realidade de sua condição diante de Deus – a profundidade de sua ruína, culpa e miséria – sua completa e irremediável ruína, não poderá haver descanso até que o Espírito Santo revele ao coração um Cristo pleno e todo-suficiente. É esta a única solução possível, e o remédio perfeito de Deus, para nossa completa ruína. Trata-se de uma verdade muito simples, mas da maior importância; e podemos dizer, com toda a segurança, que quanto mais completa e profundamente o leitor aprender isso para si mesmo, melhor será. 

O verdadeiro segredo da paz está em se descer até o fundo de um eu irremediavelmente culpado, arruinado e sem esperanças, e aí encontrar um Cristo todo-suficiente como a provisão de Deus para nossa mais profunda necessidade. Isto é verdadeiramente descanso – um descanso que nunca pode ser perturbado. Pode haver tristeza, pressão, conflito; pode existir um exercício de alma, e o fardo de se ter que passar por múltiplas tentações, por subidas e descidas e por toda sorte de dificuldade e tribulação; mas sentimo-nos persuadidos de que quando uma alma é verdadeiramente levada pelo Espírito de Deus a enxergar o fim do seu próprio eu, e a descansar em um Cristo pleno, ela encontra uma paz que nunca poderá ser interrompida. O estado de incerteza em que vivem muitos dos queridos do povo de Deus é o resultado de não terem recebido em seus corações um Cristo pleno, como a provisão exata do próprio Deus para eles. 


Não há dúvida de que este resultado triste e doloroso pode ser gerado com a ajuda de diversas causas, como uma mentalidade legalista, uma consciência mórbida, um coração que se ocupa consigo mesmo, um ensino errôneo, um anseio secreto pelas coisas deste mundo, alguma reserva no coração em se aceitar as reivindicações de Deus, de Cristo e da eternidade. Mas qualquer que possa ser a causa que esteja produzindo isso, cremos que, na maioria dos casos, se descobrirá que a falta de uma paz bem alicerçada, um problema tão comum entre o povo do Senhor, é o resultado de não se enxergar, de não se crer, naquilo que Deus fez o Seu Cristo ser para eles e por eles, e isso para todo o sempre. Assim, o que propomos neste artigo é mostrar ao leitor ansioso, buscando nas preciosas páginas da Palavra de Deus, que em Cristo se encontra entesourado para ele tudo o que possa vir a necessitar, seja para atender às necessidades de sua própria consciência, aos ardentes desejos de seu coração, ou às exigências de seu caminho. 


Buscaremos provar, pela graça de Deus, que a obra de Cristo é o único lugar de repouso verdadeiro para a consciência; que Sua Pessoa é o único objeto para o coração; e que Sua Palavra é o único guia verdadeiro para o caminho. E para começar, vamos nos deter um pouco na obra de Cristo como o único lugar de descanso para a consciência. Ao considerarmos este importante assunto, há duas coisas que exigem nossa atenção: primeiro, o que Cristo fez por nós; segundo, o que Ele está fazendo para nós. Na primeira, temos a expiação; na última, a intercessão como Advogado. Ele morreu na cruz por nós: Ele vive para nós assentado no trono. Por Sua preciosa morte expiatória Ele supriu plenamente tudo o que dizia respeito à nossa condição como pecadores. Ele carregou nossos pecados, e os levou para todo o sempre. 

Ele levou a culpa por todos os nossos pecados – os pecados de todos os que creem no Seu nome. Jeová lançou sobre Ele todas as nossas iniquidades (Isaías 53). "Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o Justo pelos injustos, para levar-nos a Deus" (1 Pedro 3.18). Esta é uma verdade imensa, e de total importância para a alma ansiosa – uma verdade que se assenta no próprio alicerce de toda a posição cristã. É impossível que qualquer alma despertada, que qualquer consciência espiritualmente esclarecida, possa desfrutar da paz divinamente estabelecida até que esta tão preciosa verdade seja recebida em simplicidade de fé. 


Devo saber, com base na autoridade divina, que todos os meus pecados foram tirados da vista de Deus para sempre; que Ele próprio Se desfez deles de um modo que viesse a satisfazer todas as exigências do Seu trono e todos os atributos da Sua natureza; que Ele glorificou a Si próprio por lançar fora os meus pecados, e isto numa maneira muito mais tremenda e maravilhosa do que se tivesse me mandado para um inferno eterno por causa deles. Sim, foi Ele mesmo Quem o fez. É esta a essência e o cerne – o âmago de toda a questão. Deus colocou os nossos pecados sobre Jesus, e Ele nos diz isto em Sua santa Palavra, a fim de podermos saber disso com base na autoridade divina – uma autoridade que não pode mentir. Deus planejou assim; Deus fez assim; e assim Deus o diz. Tudo vem de Deus, do princípio ao fim, e nós (tão) somente temos que descansar nisso como uma criança. Como sei que Jesus levou meus pecados em seu próprio corpo sobre o madeiro? Pela mesma autoridade que me diz que eu tinha pecados para serem levados. 

Deus, em Seu maravilhoso e inigualável amor, me assegura, a mim, um pobre e culpado pecador, merecedor do inferno, que Ele próprio cuidou da questão toda dos meus pecados, e Se livrou deles de um modo tal que veio a trazer uma rica colheita de glória para o Seu eterno Nome, por todo o universo, na presença de toda a inteligência criada. É nisto que a fé viva deve tranquilizar a consciência. Se Deus satisfez a Si próprio com a solução para os meus pecados, devo ficar igualmente satisfeito. Sei que sou um pecador – pode até ser que seja o principal dos pecadores. Sei que meus pecados são em maior número do que os cabelos da minha cabeça; que são negros como a meia-noite – negros como o próprio inferno. Sei que qualquer um desses pecados, o menos importante deles, merece as chamas eternas do inferno. Sei – porque a Palavra de Deus me diz – que uma simples partícula de pecado não pode jamais entrar em Sua santa presença; e que, por conseguinte, não havia para mim outro destino senão a eterna separação de Deus. 


Tudo isso eu sei, com base na clara e inquestionável autoridade daquela Palavra que está para sempre firmada no céu. Mas, oh, o profundo mistério da cruz! – o glorioso mistério do amor redentor! Vejo o próprio Deus levando todos os meus pecados – pecados da pior espécie – todos os meus pecados, do modo como Ele os viu e avaliou. Eu O vejo colocando-os todos sobre a cabeça de meu bendito Substituto, e tratando com Ele ali por causa dos pecados. Vejo todas as ondas e vagas da justa ira de Deus – Sua ira contra os meus pecados – Sua ira que deveria ter queimado a mim, alma e corpo, no inferno, por toda uma terrível eternidade; eu as vejo rolando sobre o Homem que ficou em meu lugar, que me representou diante de Deus, que suportou tudo o que eu merecia, com Quem um Deus santo tratou como se tivesse tratado comigo. 

Vejo a imparcialidade de um Juiz, a santidade, verdade e justiça tratando com meus pecados, e livrando-se deles eternamente. Não deixando escapar nenhum deles por tratar! Sem conivência, sem paliativos, sem distinção, sem indiferença. Coisas como estas não poderiam mesmo se fazer presentes, já que o próprio Deus tomou o caso em Suas mãos. Sua glória estava em jogo; Sua imaculada santidade, Sua eterna majestade, as sublimes reivindicações de Seu governo. Tudo isso tinha que ser satisfeito numa medida tal que O glorificasse diante de anjos, homens e demônios. Ele podia ter me mandado para o inferno – com justiça; podia justamente me mandar para o inferno – por causa dos meus pecados. 


Eu não merecia nada mais do que isto. Todo o meu ser moral, desde o mais profundo, merecia isto – e deveria recebê-lo. Não tenho uma palavra sequer a dizer como desculpa para um simples pensamento pecaminoso, isso para não falar de uma vida manchada pelo pecado, do princípio ao fim – sim, uma vida de rebelião e de arrogante e deliberado pecado. Outros podem argumentar como quiserem acerca da injustiça de uma eternidade de punição para uma vida de pecado – a completa falta de proporção que há entre alguns anos de práticas más e infindáveis eras de tormento no lago de fogo. Podem argumentar, mas creio plenamente, e confesso sem reservas, que por um simples pecado contra um Ser tal como é o Deus que vejo na cruz, eu mais que merecia a punição eterna no profundo, escuro e sombrio abismo do inferno. 

Não estou escrevendo como um teólogo; se fosse um, seria realmente uma tarefa bem simples adornar isto com uma inegável lista de evidências das Escrituras a fim de provar a solene verdade da punição eterna. Mas não; estou escrevendo como alguém que foi divinamente instruído do verdadeiro deserto que é o pecado, e este deserto eu, calma, deliberada e solenemente declaro, é, e só pode ser nada menos do que a eterna exclusão da presença de Deus e do Cordeiro – tormento eterno no lago que arde com fogo e enxofre. Porém – e eternas aleluias sejam ao Deus de toda a graça! – ao invés de nos mandar para o inferno por causa de nossos pecados, Ele enviou o Seu Filho para ser a propiciação por esses mesmos pecados. E no desdobramento do maravilhoso plano da redenção, vemos um Deus santo tratando com a questão dos nossos pecados, e executando juízo sobre eles na Pessoa de Seu tão amado, eterno e co-igual Filho, a fim de que o pleno manancial do Seu amor pudesse fluir em nossos corações. "Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou a nós, e enviou Seu Filho para propiciação pelos nossos pecados" (1 João 4.10). 


Portanto, isto deve trazer paz à consciência, se tão somente for recebido com simplicidade de fé. Como é possível que uma pessoa creia que Deus satisfez a Si mesmo quanto aos pecados dela, e, ao mesmo tempo, ela própria não ter paz? Se Deus nos diz: "Nunca mais Me lembrarei dos seus pecados" (Jeremias 31.34), o que mais poderíamos desejar como fundamento de paz para nossa consciência? Se Deus me assegura que todos os meus pecados estão invisíveis como que em denso nevoeiro – que foram lançados para trás de Si – tendo saído para sempre de diante de Seus olhos, por que é que eu não teria paz? 

Se Ele me mostra o Homem que carregou meus pecados sobre a cruz, agora coroado à destra da Majestade nas alturas, porventura minha alma não deveria entrar no perfeito descanso no que diz respeito à questão de meus pecados? Com toda a certeza. Pois, permita-me perguntar, como foi que Cristo chegou ao lugar que Ele agora ocupa no trono de Deus? Será que foi como Deus sobre tudo, bendito para sempre? Não; Ele sempre o foi – sempre esteve no seio do Pai – sempre foi o objeto do prazer eterno e inefável do Pai. Será que foi como um Homem perfeito, santo e sem mancha alguma – alguém cuja natureza seria absolutamente pura, perfeitamente livre de pecado? Não; pois nesse caráter, e nessa posição, Ele poderia ter, a qualquer momento, da manjedoura à cruz, exigido um lugar à destra de Deus. Como foi então? Eterno louvor seja ao Deus de toda a graça! 

Foi como Aquele que, por Sua morte, cumpriu a gloriosa obra da redenção – Aquele que foi carregado com todo o peso dos nossos pecados – Aquele que satisfez perfeitamente todas as justas reivindicações daquele trono no qual Ele agora Se assenta. Este é um ponto de cardeal importância para o leitor angustiado se agarrar. E não falhará em emancipar o coração e tranquilizar a consciência. Não é possível que tenhamos, por fé, o Homem que foi pregado no madeiro, e está agora coroado no trono, e não tenhamos paz com Deus. Após o Senhor Jesus Cristo ter tomado sobre Si os nossos pecados, e o juízo que a eles era devido, Ele não poderia estar onde agora está se um só daqueles pecados tivesse ficado por expiar. 

Ver Aquele que carregou os pecados, coroado de glória, é ver nossos pecados tirados para sempre de diante da divina presença. Onde estão nossos pecados? Estão todos apagados. Como sabemos disso? Aquele que os levou sobre Si atravessou os céus e chegou ao mais alto pináculo de glória. A justiça eterna coroou Sua bendita cabeça com um diadema de glória, como o Consumador de nossa redenção – o Carregador de nossos pecados; provando assim, acima de qualquer dúvida, ou acima de qualquer possibilidade de se questionar, que nossos pecados foram todos tirados da vista de Deus para sempre. 


Um Cristo coroado e uma consciência limpa estão, na bendita dispensação da graça, inseparavelmente ligados. Tremendo fato! Bem podemos cantar, com todas as nossas forças remidas, os louvores do amor redentor. Mas vejamos como esta verdade tão consoladora nos é apresentada nas Sagradas Escrituras. Em Romanos 3 lemos: "Mas agora se manifestou sem a lei a justiça de Deus, tendo o testemunho da lei e dos profetas; isto é, a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem; porque não há diferença. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus; sendo justificados gratuitamente pela Sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no Seu sangue, para demonstrar a Sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus; para demonstração da Sua justiça neste tempo presente, para que Ele seja Justo e justificador daquele que tem fé em Jesus" (Romanos 3.21-26). Outra vez, no capítulo 4, falando da fé de Abraão lhe sendo imputada como justiça, o apóstolo acrescenta, "Ora, não só por causa dele está escrito, que lhe fosse tomado em conta, mas também por nós, a quem será tomado em conta, os que cremos naquele que dentre os mortos ressuscitou a Jesus nosso Senhor; O qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa justificação" (Romanos 4.23-25). 


Temos Deus aqui apresentado à nossa alma como Aquele que ressuscitou de entre os mortos ao Carregador de nossos pecados. E por que o fez? Porque Aquele que foi entregue por causa das nossas ofensas O havia glorificado perfeitamente no que dizia respeito àquelas ofensas, e as havia levado para sempre. Deus não apenas enviou o Seu Filho Unigênito ao mundo, mas moeu-O por causa das nossas iniquidades, e ressuscitou-O de entre os mortos, a fim de que pudéssemos saber e crer que nossas iniquidades foram todas tratadas de uma maneira que glorificou a Deus, infinita e eternamente. Ao Seu nome seja dada eterna e universal honra! Mas temos um testemunho ainda mais extenso desta grande verdade fundamental. Em Hebreus 1 lemos palavras que mexem com nossa alma, como estas: "Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho, a Quem constituiu herdeiro de tudo, por Quem fez também o mundo. O qual, sendo o resplendor da Sua glória, e a expressa imagem da Sua Pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do Seu poder, havendo feito por Si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-Se à destra da Majestade nas alturas" (Hebreus 1.1-3). 

Nosso Senhor Jesus Cristo – bendito seja o Seu nome! – não tomaria o Seu lugar no trono de Deus até que tivesse, pela oferta de Si mesmo na cruz, purificado nossos pecados. Portanto, um Cristo ressurreto à destra de Deus é uma prova gloriosa e inquestionável de que nossos pecados todos já se foram, pois Ele não poderia estar onde agora está, se restasse um só daqueles pecados. Deus ressuscitou de entre os mortos, Aquele mesmíssimo Homem sobre o qual Ele mesmo havia posto todo o peso dos nossos pecados. Portanto, tudo está resolvido – divina e eternamente resolvido. É tão impossível que um só pecado possa ser achado no mais fraco crente em Jesus, quanto no próprio Jesus. Isto é algo extraordinário de se afirmar, mas trata-se da sólida verdade de Deus, estabelecida em diversos lugares das Sagradas Escrituras, e a alma que crê nisto deve possuir uma paz que o mundo não pode dar e nem tirar.


A completa libertação do atual poder do pecado

Até aqui temos nos ocupado com aquele aspecto da obra de Cristo que trata da questão do perdão dos pecados, e cremos sinceramente que o leitor deve estar já bem esclarecido e firmado neste importante ponto. Certamente é seu feliz privilégio estar assim, se tão somente receber o que Deus afirma em Sua Palavra. "Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o Justo pelos injustos, para levar-nos a Deus" (1 Pedro 3.18). Se, portanto, Cristo sofreu por nossos pecados, acaso não deveríamos conhecer a profunda bênção que é estarmos eternamente libertos do fardo desses pecados? Poderia, porventura, estar de acordo com a vontade e com o coração de Deus que alguém por quem Cristo sofreu devesse continuar em perpétua escravidão, preso e ligado com a corrente de seus pecados, e clamando, semana após semana, mês após mês, e ano após ano, que o fardo de seus pecados é intolerável? Se uma condição assim for verdadeira e apropriada para o cristão, então o que foi que Cristo fez por nós? 

Seria possível que Cristo tivesse levado nossos pecados e ainda estivéssemos atados e presos pelas correntes deles? Será verdade que Ele tenha carregado o pesado fardo de nossos pecados e ainda assim tenhamos ficado agora esmagados sob esse mesmo peso intolerável? Alguém poderia querer nos persuadir de que não é possível sabermos que nossos pecados estão perdoados – que devemos seguir até o fim de nossa vida em um estado de completa incerteza sobre este assunto de importância tão vital. Se for assim, o que dizer do precioso evangelho da graça de Deus – das boas novas de salvação? Do ponto de vista de um ensino tão miserável, que significado teriam aquelas ardorosas palavras do bendito apóstolo Paulo na sinagoga de Antioquia? – "Seja-vos, pois, notório, homens irmãos, que por Este se vos anuncia a remissão dos pecados. E de tudo o que, pela lei de Moisés, não pudestes ser justificados, por Ele é justificado todo aquele que crê" (Atos 13.38,39). S

e estivéssemos fundamentados na lei de Moisés, em nossa observância dos mandamentos, em nosso cumprimento do dever, em nosso sentimento em como deveríamos agir, em nossa avaliação de Cristo e em nosso amor por Deus, o raciocínio lógico seria que certamente estaríamos em dúvidas e obscura incerteza, visto que não poderíamos ter nenhuma base possível de certeza. 


Se a nós, coubesse fazer algo, ainda que fosse o movimento de uma pálpebra, então, verdadeiramente, seria uma enorme presunção de nossa parte pensar em ter certeza. Mas se, por outro lado, escutamos a voz do Deus vivo, que não pode mentir, proclamando em nossos ouvidos as boas novas de que por intermédio de Seu amado Filho, que morreu na cruz, foi sepultado, ressuscitou de entre os mortos, e está assentado na glória – que por meio dele somente – por meio dele, sem qualquer coisa vinda de nós – por meio da única oferta de Si mesmo de uma vez para sempre, é pregada a completa e eterna remissão dos pecados, como uma realidade presente, para ser desfrutada agora por cada alma que simplesmente crê no precioso registro de Deus, como poderia ser possível para quem quer que fosse continuar em dúvida e incerteza? A obra de Cristo foi consumada? Ele disse que sim. O que foi que Ele fez? Ele levou os nossos pecados. 

Terão eles sido, então, levados, ou estarão ainda sobre nós? – quais deles? Leitor, diga-me quais deles! Onde estão os seus pecados? Estão eles invisíveis como em denso nevoeiro, ou estão ainda, como um grande peso de culpa, em todo o seu poder condenador, colocados sobre a sua consciência? Se eles não foram levados pela morte expiatória de Cristo, jamais serão levados; se Ele não os levou sobre a cruz, você terá que levá-los nas atormentadoras chamas do inferno, para sempre, e sempre, e sempre. Sim; fique ciente disto, pois não há outro modo de se livrar dessa grande e solene questão. Se Cristo não resolveu o assunto na cruz, você deve resolvê-lo no inferno. 

Assim deve ser, se a Palavra de Deus for verdade. Mas, glória seja dada a Deus, o testemunho que Ele dá nos assegura que Cristo já sofreu pelos pecados, o Justo pelo injusto, para levar-nos a Deus; não meramente levar-nos para o céu quando morrermos, mas levar-nos a Deus agora. E como é que Ele nos leva a Deus agora? Acaso é estando nós presos e ligados com a corrente de nossos pecados? Com um intolerável peso de culpa sobre nossa alma? Não, de modo algum. Ele nos leva para Deus sem mancha ou mácula, ou qualquer acusação que seja. Ele nos leva a Deus em toda a Sua própria aceitabilidade. Acaso há qualquer culpa sobre Ele? Não. 


Havia, bendito seja o Seu nome, quando Ele permaneceu em nosso lugar, mas ela já se foi – para sempre – lançada como um peso de chumbo nas insondáveis águas do divino esquecimento. Ele foi carregado com nossos pecados sobre a cruz. Deus colocou sobre Ele todas as nossas iniquidades, e tratou com Ele ali por causa delas. A questão toda de nossos pecados, conforme a estimativa que Deus tinha disso, foi abordada em sua totalidade e de modo definitivo, pois foi divinamente abordada, resolvida entre Deus e Cristo, em meio às horrendas trevas do Calvário. Sim, tudo foi resolvido ali, de uma vez para sempre. Como sabemos disso? Pela autoridade do único Deus verdadeiro. Sua Palavra nos assegura que temos redenção por intermédio do sangue de Cristo, a remissão dos pecados, em conformidade com as riquezas da Sua graça. 

Ele nos declara, em notas da mais doce, rica e profunda misericórdia, que de nossos pecados e iniquidades nunca mais Se lembrará. Será que isto não é suficiente? Será que devíamos continuar clamando que estamos presos e ligados com a corrente de nossos pecados? Será que devíamos manchar assim a obra perfeita de Cristo? Será que devíamos tornar opaco o brilho da graça divina, e tomar como mentira o testemunho do Espírito Santo nas Escrituras da Verdade? Longe de nós tal pensamento! De modo nenhum. 

Ao invés disso, saudemos com ações de graças o bendito benefício que tão graciosamente nos foi outorgado pelo amor divino, através do precioso sangue de Cristo. O gozo do coração de Deus está em perdoar nossos pecados. Sim, Deus agrada-Se em perdoar a iniquidade e a transgressão. É algo gratificante para Ele, e que O glorifica, derramar dentro do coração quebrantado e contrito o precioso bálsamo de Sua misericórdia e Seu amor perdoador. Ele não poupou Seu próprio Filho, mas O entregou, e O moeu no madeiro maldito, a fim de poder deixar fluir, em perfeita justiça, o rico manancial de graça que brota do Seu imenso e bondoso coração, em direção ao pobre, culpado, arruinado pecador, esmagado sob o peso de sua consciência. Mas se o leitor ainda assim se sentisse disposto a inquirir acerca de como pode obter a certeza de que essa bendita remissão dos pecados – deste fruto da obra expiatória de Cristo – aplica-se a ele, que escute estas magnificentes palavras que saíram dos lábios do Salvador ressuscitado quando comissionava os primeiros arautos de Sua graça: "E disse-lhes: Assim está escrito, e assim convinha que o Cristo padecesse, e ao terceiro dia ressuscitasse dentre os mortos, e em Seu nome se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações, começando por Jerusalém" (Lucas 24.46,47). 


Temos aqui a grande e gloriosa comissão – sua base, sua autoridade, sua esfera. Cristo sofreu. É esta a base meritória da remissão dos pecados. Sem derramamento de sangue não há remissão de pecados; mas pelo derramamento de sangue, e pelo derramamento de sangue somente, há remissão de pecados – uma remissão tão plena e completa quanto o precioso sangue de Cristo é capaz de efetuar. Mas onde está a autoridade? "Está escrito." Bendita e indisputável autoridade! Nada jamais a poderá abalar. Sei, com base na autoridade sólida da Palavra de Deus, que meus pecados foram todos perdoados, todos tirados de vista, todos levados para sempre, todos lançados para trás de Deus, de modo que nunca, em hipótese alguma, poderão levantar-se outra vez contra mim. Finalmente, quanto ao que diz respeito à esfera. É para "todas as nações". Isto, sem dúvida, inclui também a mim. Não há nenhum tipo de exceção, condição ou qualificação. As benditas boas novas deveriam ser levadas, sobre as asas do amor, a todas as nações – a todo o mundo – a toda criatura sob o céu. 

Como poderia eu excluir a mim mesmo de uma comissão de tão amplo alcance? Será que por algum momento duvidaria de que os raios do sol que Deus criou sejam para mim? Certamente que não. E por que iria eu questionar o precioso fato de que a remissão dos pecados é para mim? Nem por um instante sequer. É para mim tão certo como se eu fosse o único pecador sob a abóbada celeste de Deus. A universalidade disso impede qualquer dúvida quanto a ser ou não designada para mim. E certamente, se precisamos ainda de mais encorajamento, encontraremos no fato de que os benditos embaixadores deviam começar a partir de Jerusalém – o lugar mais culpado sobre a face da Terra. Deviam oferecer a primeira oferta de perdão aos próprios homicidas do Filho de Deus. E é isto o que o apóstolo Pedro faz naquelas palavras de tão maravilhosa e transcendente graça: "Primeiro O enviou a vós, para que nisso vos abençoasse, no apartar, a cada um de vós, das vossas maldades" (Atos 3.26). 


Não é possível conceber algo mais rico ou abundante, ou magnificente do que isto. A graça que poderia alcançar os homicidas do Filho de Deus pode alcançar qualquer um: o sangue que poderia limpar a culpa de um crime assim pode limpar o mais vil pecador fora dos limites do inferno. Será que você pode ainda hesitar quanto ao perdão de seus pecados? Cristo sofreu pelos pecados. Deus prega a remissão dos pecados. Ele garante isto em Sua própria Palavra. "A Este dão testemunho todos os profetas, de que todos os que nele creem receberão o perdão dos pecados pelo Seu nome" (Atos 10.43). O que mais você poderia ter? Como é que pode continuar duvidando; como é que pode continuar esperando? E o que está esperando? Você já tem a obra consumada de Cristo e a fiel Palavra de Deus. Isto, com toda certeza, deveria satisfazer seu coração e tranquilizar sua consciência. Permita-nos, então, insistir para que aceite a plena e eterna remissão de todos os seus pecados. Receba em seu coração as doces novas de divino amor e misericórdia, e siga seu caminho jubiloso. Escute a voz de um Salvador ressurreto, falando do trono da Majestade nas alturas, e assegurando a você que seus pecados estão todos perdoados. 

Deixe que as tranquilizadoras palavras, saídas da própria boca de Deus, penetrem, com seu emancipador poder, em seu espírito atribulado: "Nunca mais Me lembrarei dos seus pecados" (Jeremias 31.34). Se Deus me fala assim, se Ele me assegura que não Se lembrará mais de meus pecados, não deveria eu estar plena e eternamente satisfeito? Por que deveria seguir adiante duvidando e questionando, quando Deus já falou? O que mais pode dar certeza, se não há Palavra de Deus que é viva e permanece para sempre? Ela é a única base de certeza; e nenhum poder na Terra ou no inferno – humano ou diabólico – pode jamais abalá-la. A obra consumada de Cristo e a fiel Palavra de Deus são a base e a autoridade do pleno perdão de pecados. Mas, bendito para sempre seja o Deus de toda a graça, não é apenas a remissão de pecados que nos é anunciada através da morte expiatória de Cristo. 


Só isto já seria um benefício e uma bênção da mais elevada ordem; e, como já vimos, desfrutamos disso em conformidade com a amplitude do coração de Deus, e em conformidade com o valor e a eficácia da morte de Cristo, na estima que Deus tem dela. Mas além da plena e perfeita remissão de pecados, temos também completa libertação do presente poder do pecado. Este é um grande assunto para todo verdadeiro amante de santidade. Em conformidade com a gloriosa dispensação da graça, a mesma obra que assegura a completa remissão dos pecados rompeu para sempre o poder do pecado. Não se trata apenas de terem sido apagados os pecados da vida, mas o pecado da natureza está condenado. O crente tem o privilégio de considerar-se como morto para o pecado. Ele pode cantar, com um coração grato, Por mim, oh, Senhor, aqui já morreste, E eu bem o sei, que em Ti morri assim; Bem vivo estás, a morte venceste, Agora Senhor Tu vives sempre em mim. A face do Pai, de graça a irradiar, Já brilha pra mim, a me iluminar. Esta é a aspiração apropriada a um cristão. "Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim" (Gálatas 2.20). 

Isto é cristianismo. O velho "eu" crucificado, e Cristo vivendo em mim. O cristão é uma nova criação. As coisas velhas já passaram. A morte de Cristo encerrou para sempre a história do velho "eu"; e, portanto, embora o pecado habite ainda no crente, seu poder está rompido e eliminado para sempre. Não somente a culpa que ele levava está cancelada, mas seu terrível domínio foi totalmente destruído. É esta a gloriosa doutrina dos capítulos 6 ao 8 de Romanos. O estudante atento desta tão magnificente epístola irá observar que a partir do capítulo 3.21, até o capítulo 5.11 temos a obra de Cristo aplicada à questão dos pecados; e do capítulo 5.12 até o final do capítulo 8 temos outro aspecto da obra de Cristo, ou seja, sua aplicação à questão do pecado – "nosso homem velho" – "o corpo do pecado" – "pecado na carne". Não há, nas Escrituras, algo como perdão de pecado. Deus condenou o pecado; Deus não o perdoou – uma distinção que é imensamente importante. 


Deus demonstrou Sua eterna aversão ao pecado na cruz de Cristo. Ele expressou e executou Seu juízo sobre o pecado, e agora o crente pode se enxergar como ligado e identificado com Aquele que morreu na cruz e que está ressurreto dentre os mortos. Ele saiu da esfera do domínio do pecado e entrou naquela esfera nova e bendita onde a graça reina pela justiça. "Mas graças a Deus", diz o apóstolo, "que, tendo sido servos do pecado (antes, mas não mais agora), obedecestes de coração à forma de doutrina a que fostes entregues. E, libertados do pecado, (não meramente tendo os pecados perdoados), fostes feitos servos da justiça. Falo como homem, pela fraqueza da vossa carne; pois que, assim como apresentastes os vossos membros para servirem à imundícia, e à maldade para maldade, assim apresentai agora os vossos membros para servirem à justiça para santificação. Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça. E que fruto tínheis então das coisas de que agora vos envergonhais? Porque o fim delas é a morte. Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida eterna" (Romanos 6.17-22). 

Aqui está o precioso segredo de uma vida santa. Estamos mortos para o pecado; vivos para Deus. O reino do pecado terminou. O que é que o pecado tem a ver com um homem morto? Nada. Bem, então, o crente morreu com Cristo; está sepultado com Cristo; está ressuscitado com Cristo, para andar em novidade de vida. Ele vive sob o precioso reino da graça, e tem seu fruto para santidade. O homem que faz uso da abundante graça divina como desculpa para viver em pecado nega o próprio fundamento do cristianismo. "Nós, que estamos mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?" (Romanos 6.2). Impossível. Seria uma negação de toda a posição cristã. Imaginar o cristão como alguém que deve seguir, dia após dia, semana após semana, mês após mês, e ano após ano, pecando e arrependendo-se, pecando e arrependendo-se, é degradar o cristianismo e falsificar a posição cristã como um todo. Dizer que um cristão deve seguir pecando porque ele tem a carne em si é ignorar a morte de Cristo em um de seus grandes aspectos, e reputar como mentira todo o ensino dos apóstolos em Romanos capítulos 6 a 8. 


Graças a Deus, não existe razão por que o crente deva cometer pecado. "Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis" (1 João 2.1). Não deveríamos nos justificar nem mesmo no mais simples pensamento pecaminoso. Trata-se de nosso doce privilégio andar na luz, como Deus está na luz; e com toda a certeza, quando estamos andando na luz, não estamos cometendo pecado. Oh! Saímos da luz e cometemos pecado; mas a ideia normal, verdadeira e divina de um cristão é a de alguém andando na luz, e não cometendo pecado. Um pensamento pecaminoso é estranho ao verdadeiro caráter do cristianismo. Temos pecado em nós, e devemos continuar tendo enquanto estivermos no corpo; mas se andamos no Espírito, o pecado em nossa natureza não irá se manifestar na vida. Dizer que não precisamos pecar é a afirmação de um privilégio cristão; dizer que não podemos pecar é um engano e ilusão.


O presente ofício de Cristo por nós

Daquilo com que já nos ocupamos, aprendemos que o grande resultado da obra de Cristo no passado é o de nos conceder uma posição divinamente perfeita diante de Deus. "Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados" (Hebreus 10.14). Ele nos introduziu na Divina Presença, em toda a Sua perfeita aceitabilidade, na credibilidade e virtude do Seu nome, Sua Pessoa e Sua obra; de modo que, como declara o apóstolo João, "qual Ele é, somos nós também neste mundo" (1 João 4.17). Tal é a firme posição da mais débil ovelha de todo o rebanho de Cristo, comprado com Seu sangue. E nem poderia ser diferente. Ou é isso, ou é eterna perdição. Não há espaço nem para um fio de cabelo, entre esta posição de absoluta perfeição diante de Deus, e uma condição de culpa e ruína. Ou estamos em nossos pecados, ou em um Cristo ressurreto. Não há meio-termo. Ou estamos cobertos de culpa, ou completos em Cristo. Mas o crente é declarado, pela autoridade que tem a voz do Espírito Santo nas Escrituras, como alguém que está completo em Cristo – perfeito, quanto à sua consciência – aperfeiçoado perpetuamente – limpo de toda mancha – agradável no Amado – feito justiça de Deus em Cristo. Tudo isso por intermédio do sacrifício da cruz. Aquela preciosa morte expiatória de Cristo forma o fundamento sólido e irrefutável da posição cristã. "Mas Este, havendo oferecido para sempre um único sacrifício pelos pecados, está assentado à destra de Deus" (Hebreus 10.12). 

Um Cristo assentado é a gloriosa prova e a perfeita definição do lugar do crente na presença de Deus. Nosso Senhor Jesus Cristo, havendo glorificado a Deus acerca de nossos pecados, e tendo suportado Seu juízo contra tudo aquilo que a nossa condição como pecadores exigia, havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, assentou-Se para sempre em um lugar que não é só de perdão, aceitação e paz, mas de total libertação do domínio do pecado – um lugar de vitória assegurada sobre tudo o que possivelmente poderia ser contra nós, seja o pecado que habita em nós, o medo de Satanás, a lei ou este presente mundo mau. Esta é, repetimos, a posição absolutamente firme que o crente ocupa, se é que nos sujeitamos a aprender das Sagradas Escrituras. E rogamos insistentemente para que o leitor cristão não se satisfaça com nada menos do que isto. 

Não continue a aceitar os confusos credos da cristandade, com seus serviços litúrgicos, os quais apenas levam as almas de volta às trevas, à distância de Deus e ao jugo do judaísmo – esse sistema no qual Deus encontrou falta, e que aboliu para sempre por não estar em conformidade com Sua santa vontade, ou por não satisfazer Seu bondoso coração que concede ao adorador perfeita paz, perfeita liberdade, perfeita proximidade Consigo, para todo o sempre. Nós solenemente nos dirigimos a todo o povo do Senhor, espalhado pelos vários segmentos da Igreja professa, para que considerem onde se encontram, e para que analisem até onde estão compreendendo e desfrutando da verdadeira posição cristã, conforme nos é apresentada nas diversas passagens das Escrituras que já citamos, as quais podem ser ainda facilmente multiplicadas uma centena de vezes. Comparem, fiel e diligentemente, o ensino da cristandade com a Palavra de Deus, e vejam o quanto se distanciam. 


Fazendo assim, descobrirão de que modo o cristianismo professo de nossos dias forma um contraste com os ensinamentos vivos do Novo Testamento; e uma das consequências é que as almas são privadas dos preciosos privilégios que a elas pertencem como cristãs, e são mantidas naquela distância moral que caracterizou a economia mosaica. Tudo isso é por demais deplorável. Entristece o Espírito Santo, fere o coração de Cristo, desonra a graça de Deus, e contradiz as mais claras afirmações das Sagradas Escrituras. Estamos por demais persuadidos de que a condição de milhares de almas preciosas neste exato momento é suficiente para fazer sangrar o coração; e tudo isso se deve, em grande parte, aos ensinos da cristandade com seus credos e fórmulas. 

Onde é que você irá encontrar, em meio às fileiras comuns à profissão cristã, uma pessoa desfrutando de uma consciência perfeitamente purificada; uma consciência de paz com Deus, produzida pelo Espírito de adoção? Acaso não é verdade que as pessoas são ensinadas pública e sistematicamente, que se trata de uma atitude presunçosa alguém dizer que seus pecados estão todos perdoados – que está selado com o Espírito Santo – que não pode mais se perder, pois está verdadeiramente unido a Cristo pelo Espírito que nele habita? Porventura não são todos estes privilégios cristãos praticamente negados e ignorados na cristandade? E acaso as pessoas não estão sendo ensinadas que é perigoso ser muito confiante – que é moralmente mais seguro viver em dúvida e temor – que o máximo que podemos querer almejar é irmos para o céu após a morte? Onde é que as almas estão sendo ensinadas das gloriosas verdades ligadas à nova criação? Onde estão elas arraigadas e fundamentadas no conhecimento de sua posição em uma Cabeça ressuscitada e glorificada nos céus? Onde estão elas sendo introduzidas no gozo daquelas coisas que são graciosamente dadas por Deus ao Seu povo amado? 

Oh, lamentamos ao pensar na única resposta verdadeira que pode ser dada a tais indagações. O rebanho de Cristo está espalhado pelas tenebrosas montanhas e desolados atracadouros. As almas do povo de Deus são abandonadas na enevoada distância que caracterizava o sistema judaico. Desconhecem o significado do véu rasgado, da proximidade de Deus, da consciente aceitação que desfrutam no Amado. A própria mesa do Senhor encontra-se encoberta com as negras e frias névoas da superstição, e cercada pelas repulsivas barreiras de um legalismo negro e deprimente. 


A redenção efetuada, a completa remissão de pecados, a perfeita justificação diante de Deus, a aceitação em um Cristo ressuscitado, o Espírito de adoção, a bendita e brilhante esperança da vinda do Noivo – todas estas realidades gloriosas – estes patentes privilégios da Igreja de Deus são, na prática, postos de lado pela máquina religiosa da cristandade e pelo seu ensino. Alguns, talvez, poderão pensar que pintamos um quadro muito obscuro. Podemos apenas dizer – e o dizemos com toda a sinceridade – que quisera Deus fosse só isso! Tememos que este quadro esteja ainda longe da realidade – sim, a realidade é muito mais horrenda do que a pintamos. Estamos profunda e dolorosamente espantados com o fato de que a condição, não apenas da Igreja professa, mas de milhares de verdadeiras ovelhas do rebanho de Cristo, é tal que se a enxergássemos do modo como Deus a enxerga, isso partiria nosso coração. 

Todavia, devemos continuar com nosso assunto e, fazendo assim, apresentar o melhor remédio que já poderia ter sido receitado para a deplorável condição de tantos dentre o povo do Senhor. Falamos da preciosa obra que nosso Senhor Jesus Cristo consumou por nós, levando nossos pecados, e condenando o pecado, nos assegurando a perfeita remissão dos primeiros e a total libertação do último, como poder dominador que era. O cristão é aquele que não está apenas perdoado, mas liberto. Cristo morreu pelo cristão, e este morreu em Cristo. Portanto, encontra-se livre, como alguém que ressuscitou de entre os mortos e está vivo para Deus, por Jesus Cristo, nosso Senhor. O cristão é agora uma nova criatura. Passou da morte para a vida. A morte e o juízo ficaram para trás e nada, além da glória, é o que se encontra diante dele. Ele possui agora uma posição imaculada e um futuro sem nuvens. Ora, se tudo isso é verdade para cada filho de Deus – e as Escrituras garantem isso – o que mais desejamos? Nada, quanto ao que somos, nada quanto à posição que ocupamos, nem quanto à esperança que temos. Em tudo isso possuímos a mais perfeita e absoluta perfeição; todavia, nosso estado não é perfeito, nosso andar não é perfeito. 

Continuamos no corpo, cercados de inúmeras fraquezas, expostos a inúmeras tentações, aptos a tropeçar, a cair e a nos desviar. Por nós mesmos, somos incapazes de ter um único pensamento bom, ou de nos mantermos por um momento sequer na bendita posição onde a graça nos colocou. 


É verdade que temos vida eterna, e que estamos ligados à Cabeça viva no céu, pelo Espírito Santo que foi enviado à Terra, de modo que estamos eternamente seguros. Nada poderá jamais tocar nossa vida, ainda mais se considerarmos que ela está "escondida com Cristo em Deus" (Colossenses 3.3). Mas enquanto nada pode tocar nossa vida, ou interferir em nossa posição, ainda assim, considerando que nossa condição é imperfeita e que nosso andar é imperfeito, nossa comunhão é suscetível de ser interrompida, e é por esta razão que necessitamos do atual ofício de Cristo por nós. Jesus vive à destra de Deus por nós. Sua ativa intervenção a nosso favor nunca cessa por um momento sequer. Ele atravessou os céus, em virtude da expiação consumada, e ali exerce continuamente Sua perfeita intercessão por nós diante de Deus. 

Ele está ali como nossa justiça permanente, a fim de nos manter sempre na divina integridade da posição e do relacionamento ao qual Sua morte expiatória nos introduziu. Por isso lemos em Romanos 5.10: "Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de Seu Filho, muito mais, tendo sido já reconciliados, seremos salvos pela Sua vida". Assim também, lemos em Hebreus 4.14-16: "Visto que temos um grande sumo sacerdote, Jesus, Filho de Deus, que penetrou nos céus, retenhamos firmemente a nossa confissão. Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém, um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado. Cheguemos, pois, com confiança ao trono da graça, para que possamos alcançar misericórdia e achar graça, a fim de sermos ajudados em tempo oportuno". E, mais uma vez, no capítulo 7.24,25: "Mas este, porque permanece eternamente, tem um sacerdócio perpétuo. Portanto, pode também salvar perfeitamente os que por Ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles". 


E no capítulo 9.24: "Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora comparecer por nós perante a face de Deus". Temos também, na primeira Epístola de João, o mesmo assunto apresentado sob um aspecto um pouco diferente: "Meus filhinhos, estas coisas vos escrevo, para que não pequeis; e, se alguém pecar, temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo. E Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo" (1 João 2.1,2). Quão precioso é tudo isso para o cristão sincero, que está sempre consciente – perfeita e dolorosamente consciente – de sua fraqueza, necessidade, debilidade e fracasso! 

Como é possível – podemos indagar justamente – que alguém que tenha seus olhos sobre estas passagens que acabamos de citar, sem mencionar sua consciência própria – o senso de imperfeição de sua própria condição e do seu andar possa colocar em dúvida a necessidade do cristão de um ininterrupto ministério de Cristo em seu favor? Não é espantoso que algum leitor da epístola aos Hebreus, algum observador da condição e do andar do crente mais fiel, pudesse ser achado negando a aplicação do sacerdócio e intercessão de Cristo pelos cristãos hoje? 

Em favor de quem – permita-nos perguntar – está Cristo vivendo e atuando agora à destra de Deus? Será que é em favor do mundo? Certamente que não; pois Ele diz, em João 17.9, "Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que Me deste, porque são Teus". E quem são esses? Será que se trata do remanescente judeu? Não; esse remanescente ainda está para entrar em cena. Quem são eles, então? 

Crentes – filhos de Deus – cristãos, que estão agora passando por este mundo pecaminoso, sujeitos a falharem e a serem enganados a cada passo do caminho. São estes o objeto do ministério sacerdotal de Cristo. Ele morreu para os tornar limpos: Ele vive para mantê-los limpos. Por Sua morte Ele expiou a nossa culpa, e por Sua vida Ele nos limpa por meio da ação da Palavra pelo poder do Espírito Santo. "Este é Aquele que veio por água e sangue, isto é, Jesus Cristo; não só por água, mas por água e por sangue" (1 João 5.6). 

Temos expiação e somos limpos por meio de um Salvador crucificado. A dupla fonte emanou do lado ferido de Cristo, morto por nós. Todo louvor seja dado ao Seu nome! Temos tudo, em virtude da preciosa morte de Cristo. O problema é nossa culpa? Ela foi cancelada pelo sangue da expiação. 

O problema está em nossas faltas diárias? Temos um Advogado para com o Pai – um grande Sumo Sacerdote para com Deus. "Se alguém pecar" (1 João 2.1). Ele não diz 'se alguém se arrepender'. Não há dúvida de que há, e deve haver arrependimento e juízo-próprio; mas como é que são produzidos? Aqui está: "Temos um Advogado para com o Pai". É a Sua sempre prevalecente intercessão que consegue, para aquele que peca, a graça do arrependimento, juízo-próprio e confissão. É algo de extrema importância para o leitor cristão ter bem claro em seu entendimento o que se refere a esta verdade cardeal da intercessão advocatícia ou sacerdócio de Cristo. 


Costumamos erroneamente pensar que quando falhamos em nosso trabalho, precisamos fazer algo de nós mesmos para resolver a questão entre nossa alma e Deus. Nós nos esquecemos até do porquê de estarmos conscientes de nossa falha – antes de nossa consciência se tornar realmente ciente do fato, nosso bendito Advogado esteve diante do Pai para tratar disso; e é à Sua intercessão que devemos a graça de nosso arrependimento, confissão e restauração. "Se alguém pecar, temos..." – o que? O sangue ao qual devemos recorrer? Não; repare cuidadosamente o que o Espírito Santo declara. "Temos um Advogado para com o Pai, Jesus Cristo, o justo". E por que Ele diz "o justo"? Por que não dizer, o bondoso, o misericordioso, ou o que se compadece de nós? Porventura Ele não é tudo isso? Certamente; mas nenhum desses atributos caberia aqui, ainda mais por estar, o bendito apóstolo, colocando diante de nós a consoladora verdade de que em todos os nossos erros, pecados e falhas, temos um representante "justo" diante do Deus justo, o Pai santo, de modo que nossas questões nunca terminem em fracasso. Ele vive sempre para fazer intercessão por nós, e porque Ele vive sempre, "pode também salvar perfeitamente" – salvar até o fim – "os que por Ele se chegam a Deus". Que firme consolo existe aqui para o povo de Deus! E quão necessário para nossas almas é estarmos fundamentados no conhecimento e compreensão disso! 


Há alguns que possuem uma compreensão imperfeita da verdadeira posição de um cristão, por não enxergarem o que Cristo fez por eles no passado; outros, pelo contrário, têm uma visão tão unilateral da condição do cristão que não enxergam nossa necessidade daquilo que Cristo está agora fazendo por nós. Ambos devem ser corrigidos. Os primeiros ignoram a extensão e o valor da expiação; os últimos ignoram o lugar e a aplicação que tem a intercessão advocatícia. A imperfeição de nossa posição é tal, que o apóstolo disse: "Porque, qual Ele é, somos nós também neste mundo" (1 João 4.17). Se isso fosse tudo, certamente não teríamos necessidade de sacerdócio ou de intercessão advocatícia; todavia a nossa condição é tal, que o apóstolo precisa dizer: "Se alguém pecar". Isto prova o quão continuamente necessitamos do Advogado. E, bendito seja Deus, nós O temos continuamente; nós O temos vivendo sempre por nós. Ele vive e serve nas alturas. Ele é nossa justiça substitutiva diante de nosso Deus. Ele vive para nos manter sempre justos no céu, e para nos tornar justos quando andamos errado na Terra. Ele é o vínculo divino e indissolúvel entre nossas almas e Deus.


Cristo como um Objeto para o coração

Havendo procurado descortinar, nos três capítulos anteriores, as grandes verdades fundamentais ligadas à obra de Cristo por nós – Sua obra no passado e sua obra no presente – Sua expiação e Sua intercessão, devemos agora procurar, pela graciosa ajuda do Espírito de Deus, apresentar ao leitor algo daquilo que as Escrituras nos ensinam quanto ao segundo ramo de nosso assunto, a saber, Cristo como um objeto para o coração. Trata-se de algo maravilhosamente bendito poder dizer: "Encontrei Alguém que satisfaz perfeitamente meu coração – encontrei a Cristo". É isto o que nos coloca verdadeiramente acima do mundo. Nos torna completamente independentes dos recursos, aos quais o coração inconverso sempre se apega. Nos concede um descanso permanente. Nos dá uma calma e quietude de espírito que o mundo não pode compreender. O pobre amante do mundo pode pensar que a vida do verdadeiro cristão é muito parada, insípida, chegando até mesmo a ser uma ocupação idiota. Talvez ele fique espantado de ver como alguém pode seguir adiante sem aquilo que ele chama de diversão, distração e prazer; sem teatros, sem festas ou jogos de bola, sem concertos, sem baralho ou bilhar, sem caçadas ou corridas, sem clube ou bate-papo, sem campeonatos de críquete. 


Privar o inconverso dessas coisas seria quase o mesmo que levá-lo ao desespero ou à loucura; mas o cristão não deseja tais coisas – ele não as praticaria. Elas seriam até mesmo um aborrecimento para ele. Falamos aqui, evidentemente, do verdadeiro cristão, de alguém que não é meramente cristão de nome, mas de verdade. 

Oh, há muitos que professam ser cristãos, e até ocupam uma posição elevada em sua profissão cristã, e que, todavia, encontram-se misturados em todas as buscas vãs e frívolas dos homens deste mundo. Pessoas assim podem ser encontradas à mesa de comunhão no dia do Senhor, e no teatro ou em um concerto na segunda-feira; podem ser vistas tomando parte em algum dos ramos da obra cristã no domingo, e durante a semana podem ser encontradas no salão de bilhar, no hipódromo ou em algum outro cenário de vaidade e futilidade. É mais do que evidente que uma tal pessoa não sabe nada de Cristo como um objeto para o coração. 

Pode-se até questionar como é que alguém com uma única centelha de vida divina na alma possa achar prazer nos desprezíveis anseios de um mundo ímpio. O cristão sincero e verdadeiro desvia-se instintivamente; e isso não meramente por causa do erro ou do mal que há nessas coisas – apesar dele certamente sentir que são coisas erradas e más – mas porque ele não tem nenhum gosto por elas, e porque encontrou algo infinitamente superior, algo que satisfez perfeitamente todos os desejos da nova natureza. Poderíamos imaginar um anjo do céu tendo prazer em um jogo de bola, em um teatro ou em uma corrida? O simples pensamento disso já é sobremaneira ridículo. Lugares assim são totalmente estranhos a um ser celestial. E o que é um cristão? É um homem celestial; um participante da natureza divina. Ele está morto para o mundo – morto para o pecado – vivo para Deus. Não tem nem mesmo uma única ligação com o mundo: pertence ao céu. Assim como Cristo, seu Senhor, ele não pertence mais ao mundo. Poderia Cristo tomar parte nos divertimentos, brincadeiras e festejos deste mundo? A própria ideia disso seria uma blasfêmia. 


Bem, então, o que dizer do cristão? Será que é para ele ser encontrado em lugares onde o seu Senhor não estaria? Pode ele tomar parte em coisas que ele sabe em seu coração serem contrárias a Cristo? Pode ele ir a lugares, frequentar ambientes e se envolver em circunstâncias onde, ele tem que admitir, seu Salvador e Senhor não podem tomar parte? Pode ele ter comunhão com um mundo que odeia Aquele a Quem ele professa dever todas as coisas? Talvez a alguns de nossos leitores possa parecer que estamos falando de um terreno muito elevado. A estes perguntaremos: Que terreno devemos tomar? Certamente, terreno cristão, se somos cristãos. 

Bem, então, se devemos assumir uma posição cristã, como podemos saber o que é uma posição cristã? Evidentemente buscando no Novo Testamento. E o que é que ele ensina? Acaso ele dá qualquer autorização para que o cristão se misture, em qualquer forma ou medida, com os divertimentos e os vãos anseios deste presente século mau? Escutemos com atenção as importantes palavras de nosso bendito Senhor em João 17. Escutemos de Seus próprios lábios a verdade quanto à nossa porção, nossa posição, e nosso caminho aqui neste mundo. Ao se dirigir ao Pai, Ele diz: "Dei-lhes a Tua palavra, e o mundo os odiou, porque não são do mundo, assim como Eu não sou do mundo. Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal. Não são do mundo, como Eu do mundo não sou. Santifica-os, na verdade; a Tua Palavra é a verdade. Assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo" (João 17.14-18). Será possível conceber uma medida mais próxima de identificação do que a que nos é apresentada nestas palavras? Por duas vezes, nesta breve passagem, nosso Senhor declara que não somos do mundo, assim como Ele não é. O que é que nosso bendito Senhor tinha a ver com o mundo? Nada. O mundo O rejeitou completamente e o expulsou. 


O mundo pregou-O numa vergonhosa cruz, entre dois malfeitores. O mundo continua tão atual e plenamente sob a acusação de tudo isso como se o ato da crucificação tivesse ocorrido ontem, bem no centro de sua civilização e com o consentimento unânime de todos. Não existe nem mesmo um único vínculo moral entre Cristo e o mundo. Sim, o mundo está manchado com Seu assassinato, e nada terá a dizer a Deus por seu crime. Quão solene é isto! Que assunto sério para ser considerado pelos cristãos! Estamos passando por um mundo que crucificou a nosso Senhor e Mestre, e Ele declara que não somos deste mundo, assim como Ele não é. Daí vem que se tivermos alguma comunhão com o mundo estaremos sendo falsos para com Cristo. O que pensaríamos de uma esposa que se sentasse, e risse, e contasse anedotas com um grupo de homens que tivesse assassinado seu marido? E é exatamente o que os cristãos professos estão fazendo quando se misturam com o presente mundo mau, e se fazem parte e porção dele. 

Talvez alguém pergunte: O que devemos fazer? Devemos sair do mundo? De modo nenhum. Nosso Senhor diz expressamente: "Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal" (João 17.15). No mundo, mas não do mundo, é o verdadeiro princípio para o cristão. Para nos valermos de uma figura, o cristão no mundo é como um mergulhador equipado com um escafandro. Ele está imerso em um elemento que o destruiria, se não estivesse protegido de sua ação, e mantido por uma contínua comunicação com o cenário que está acima dele. E o que deve o cristão fazer com o mundo? Qual é a sua missão aqui? Esta: "Assim como Tu me enviaste ao mundo, também Eu os enviei ao mundo". "Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós" (João 17.18; 20.21). Tal é a missão do cristão. Ele não deve se trancar entre as paredes de um mosteiro ou convento. O cristianismo não consiste em se fazer membro de uma irmandade, como monges ou freiras. Nada disso. Somos chamados para estarmos ocupados nas diversas responsabilidades da vida, e para agirmos nas esferas que nos são divinamente designadas, para a glória de Deus. 


Não é uma questão do que estamos fazendo, mas de como estamos fazendo. Tudo depende do objeto que governa nossos corações. Se for Cristo o que comanda e cativa o coração, tudo estará bem; se não for Ele, nada estará bem. Duas pessoas podem se sentar à mesma mesa para comer; uma come para satisfazer seu apetite, a outra come para a glória de Deus – come simplesmente para conservar seu corpo em forma como vaso de Deus, como templo do Espírito Santo, instrumento para o serviço de Cristo. Assim deve ser em todas as coisas. Trata-se de nosso doce privilégio colocarmos o Senhor sempre diante de nós. Ele é nosso modelo. 

Assim como Ele foi enviado ao mundo, nós o somos também. O que foi que Ele veio fazer? Glorificar a Deus. Como foi que Ele viveu? Pelo Pai. "Assim como o Pai, que vive, Me enviou, e Eu vivo pelo Pai, assim quem de Mim se alimenta, também viverá por Mim" (João 6.57). Isso torna tudo muito simples. Cristo é o padrão e o gabarito para tudo. Já não se trata meramente de uma questão de certo e errado de acordo com as regras humanas; é simplesmente uma questão do que é digno de Cristo. Será que Ele faria isso ou aquilo? Será que Ele iria ali ou acolá? Ele deixou-nos "o exemplo, para que sigais as Suas pisadas" (1 Pedro 2.21). E com toda a certeza, nunca deveríamos ir aonde não pudéssemos enxergar suas benditas pegadas. Se vamos de um lado para o outro unicamente para satisfazer a nós mesmos, não estamos seguindo Suas pisadas, e não podemos esperar desfrutar de sua bendita presença. 

Aqui está o verdadeiro segredo do assunto todo. A grande questão é só esta: É Cristo o meu objeto? Para que estou vivendo? Será que posso dizer que "a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, O qual me amou, e Se entregou a Si mesmo por mim" (Gálatas 2.20)? Nada menos do que isto é o que cabe a um cristão. 

Trata-se de algo demasiadamente miserável, estar contente apenas em ser salvo, e então seguir adiante de braços dados com o mundo, vivendo para a satisfação própria e em busca de seus próprios interesses – aceitar a salvação como o fruto da paixão e tribulação de Cristo, e depois viver longe dele. O que iríamos pensar de uma criança que só se importa com as coisas boas que seu pai lhe dá, e que nunca procura a companhia de seu pai – sim, que prefere até a companhia de estranhos? Certamente seria alguém digno de desprezo; mas quão mais desprezível é o cristão que deve todo o seu presente e todo o seu futuro eterno à obra de Cristo e, ainda assim, se contenta em viver a uma fria distância de Sua bendita Pessoa, sem se preocupar nem um pouco com a promoção da Sua causa – com a promoção da Sua glória!


A Palavra de Cristo como guia todo-suficiente para o nosso andar

Se o leitor foi, por graça, capacitado a se apossar do que nos foi apresentado nestes capítulos, terá à disposição o remédio perfeito para toda intranquilidade de consciência e para toda inquietude de coração. A obra de Cristo, quando tão somente apropriada por uma fé simples, deverá, por bendita necessidade, atender a intranquilidade de consciência; e a Pessoa de Cristo, quando tão somente contemplada com um olho simples, irá atender perfeitamente toda inquietude de coração. 

Se, por conseguinte, não nos encontramos desfrutando de paz de consciência, só pode ser por não estarmos descansando na obra consumada de Cristo; e se o coração não estiver à vontade, é prova de que não estamos satisfeitos com o próprio Cristo. E mesmo assim, quão poucos, mesmo dentre o amado povo do Senhor, conhecem a paz de consciência e a quietude de coração. Quão raro é encontrar uma pessoa desfrutando da verdadeira paz de consciência e de tranquilidade de coração! Os cristãos, de um modo geral, não se encontram nem um pouquinho mais adiantados da condição dos santos do Antigo Testamento. 


Eles não conhecem a bênção de uma redenção consumada; não estão desfrutando de uma consciência limpa; não podem se aproximar com verdadeiro coração, em inteira certeza de fé, com os corações purificados da má consciência, e o corpo lavado com água limpa; não compreendem a grande verdade que é serem habitados pelo Espírito Santo, que os capacita a clamar "Aba, Pai". Encontram-se, no que diz respeito à sua experiência, sob a lei; na realidade, nunca entraram na profundidade da bênção que é estar sob o reinado da graça. Eles têm vida. É impossível duvidar disso. 

Eles amam as coisas divinas; suas preferências, seus hábitos, suas aspirações – sim, até mesmo seus exercícios, conflitos, ansiedades, dúvidas e temores, tudo isso demonstra a existência de vida divina. Eles se encontram, de um certo modo, separados do mundo, mas sua separação é mais negativa que positiva. É mais por verem a completa vaidade do mundo, e sua inabilidade em satisfazer seus corações, do que por terem encontrado em Cristo um objetivo. Perderam o gosto pelas coisas do mundo, mas não encontraram seu lugar e porção no Filho de Deus, onde Ele agora está à destra de Deus. As coisas do mundo não podem satisfazê-los, e não se encontram desfrutando da posição, objetivo e esperança celestiais que lhes são próprias; portanto, se encontram em uma condição totalmente anômala; não têm certeza, nem descanso, nem constância de propósitos; não são felizes; não conhecem qual o verdadeiro ponto de apoio; não são nem uma coisa, nem outra. 


Será que é assim com o leitor? Esperamos sinceramente que não. Cremos que o leitor seja um daqueles que, por graça infinita, conhecem "o que nos é dado gratuitamente por Deus" (1 Coríntios 2.12); que sabem haver passado da morte para a vida – que têm vida eterna; que desfrutam do precioso testemunho do Espírito; que entendem sua associação com uma Cabeça ressurreta e glorificada nos céus, a Quem estão ligados pelo Espírito Santo, que neles habita; que encontraram seu objetivo na Pessoa daquele Ser bendito cuja obra consumada é a base divina e eterna de sua salvação e paz; e que estão sinceramente ansiando pelo bendito momento quando Jesus virá para recebê-los para Si mesmo, para que onde Ele estiver, eles possam estar também, para de lá nunca mais saírem, eternamente. Isto é cristianismo. Nada mais merece este nome. 

É algo que permanece em evidente e notável contraste com a religiosidade espúria de nossos dias, a qual não é nem puro judaísmo, nem puro cristianismo, mas uma péssima mistura, composta de alguns elementos de cada, cujo povo inconverso pode adotar e seguir, pois concede liberdade às concupiscências da carne e lhes permite desfrutar dos prazeres e vaidades do mundo, em busca de contentamento para seus corações. O arqui-inimigo de Cristo e das almas foi bem-sucedido ao produzir um horrível sistema de religião, meio judaico, meio cristão, combinando, da maneira mais habilidosa, o mundo e a carne, com um certo montante de passagens das Escrituras, utilizadas de modo a destruir sua força moral e impedir sua correta aplicação. 

As almas ficam, assim, emaranhadas e sem esperança. Por um lado os inconversos são enganados com a ideia de que são cristãos realmente muito bons, e que estão seguindo direto para o céu; e, por outro lado, o querido povo do Senhor é roubado de seu lugar e privilégios que lhe são próprios, e arrastados para baixo pela escura e depressiva influência da atmosfera religiosa que o cercam e quase o sufocam. Não está, cremos, ao alcance da língua humana expressar as aterrorizantes consequências dessa mistura do povo de Deus com o povo do mundo em um sistema comum de religiosidade e crença teológica. Seu efeito sobre os que pertencem ao povo de Deus é o de cegar seus olhos para as glórias morais do cristianismo, como são apresentadas nas páginas do Novo Testamento; e isto a um ponto tal que se alguém tentar desvendar essas glórias aos seus olhos, será reputado como um entusiasta visionário ou um perigoso herege. 


O efeito de tudo isso, sobre os que pertencem ao mundo, é o de enganá-los totalmente quanto à sua verdadeira condição, caráter e destino. Ambas as classes de pessoas recitam as mesmas fórmulas, compartilham do mesmo credo, fazem as mesmas orações, são membros da mesma comunidade, tomam parte do mesmo sacramento, estão, em suma, eclesiasticamente, teologicamente, religiosamente unidas. Talvez se diga em resposta a tudo isso, que nosso Senhor, em Seu maravilhoso sermão de Mateus 13, ensina de modo distinto que o trigo e o joio devem ser deixados a crescer juntos. Sim; mas onde? Na Igreja? Não; mas "no campo"; e Ele nos diz que "o campo é o mundo". Confundir estas coisas é falsificar a posição cristã como um todo, e se livrar de toda a piedosa disciplina que deve ser exercida na assembleia. É colocar o ensino de nosso Senhor em Mateus 13 em oposição ao ensino do Espírito Santo em 1 Coríntios 5. Todavia, não vamos nos deter mais neste assunto. Ele é importante e extenso demais para ser tratado em um artigo tão breve quanto este. Talvez venhamos a discuti-lo melhor em alguma outra ocasião. Estamos completamente convencidos de que ele exige a consideração séria do leitor cristão, apoiado, como está de modo tão manifesto, na glória de Cristo, nos verdadeiros interesses do Seu povo, no progresso do evangelho, na integridade do testemunho e serviço cristãos, de modo que seria praticamente impossível superestimar a sua importância. Mas devemos deixá-lo por enquanto, e direcionar este artigo para seu encerramento com uma breve referência ao terceiro e último ramo de nosso assunto, a saber, a Palavra de Cristo como o guia todo-suficiente para nosso caminho. Se a obra de Cristo é suficiente para a consciência, se Sua bendita Pessoa é suficiente para o coração, então, com toda a certeza, a Sua preciosa Palavra é suficiente para o caminho. 

Podemos admitir, com toda a confiança possível, que possuímos no divino volume das Sagradas Escrituras tudo o que poderíamos precisar, não apenas para atender as necessidades de nossa senda individual, mas também para as variadas necessidades da Igreja de Deus, nos mínimos detalhes de sua história neste mundo. Estamos bem cientes de que ao fazermos uma tal afirmação nos expomos a muita zombaria e oposição, vindas de mais de uma direção. Seremos confrontados, por um lado, com os que defendem a tradição e, por outro, por aqueles que lutam pela supremacia do raciocínio e vontade humana; mas isto nos deixa verdadeiramente muito pouco preocupados. Consideramos as tradições dos homens, sejam eles pais, irmãos ou doutores, quando apresentadas como sendo de alguma autoridade, como uma partícula de poeira na balança; e no que se refere ao raciocínio humano, só pode ser comparado ao morcego, ao sol do meio-dia, cego pela luz, e se lançando contra obstáculos que não pode ver. É do mais profundo gozo para o coração do cristão poder se desvencilhar das conflitantes tradições e doutrinas dos homens e entrar na tranquila luz das Sagradas Escrituras; e quando diante dos impudentes raciocínios do ímpio, do racionalista, do cético, sujeitar todo o seu ser moral à autoridade e poder das Sagradas Escrituras. Ele reconhece, com gratidão, na Palavra de Deus o único padrão perfeito para doutrina, moral, e tudo mais. "Toda a Escritura é divinamente inspirada, e proveitosa para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente instruído para toda a boa obra" (2 Timóteo 3.16,17). 


De que mais podemos precisar? De nada. Se as Escrituras podem tornar um menino "sábio para a salvação", e se elas podem tornar um homem "perfeito e perfeitamente instruído para toda a boa obra", o que é que queremos com a tradição ou com o raciocínio humano? Se Deus escreveu um volume para nós, se Ele condescendeu em nos dar uma revelação do Seu pensamento, quanto a tudo o que devemos conhecer, pensar, sentir, crer e fazer, iríamos nós nos voltar para um pobre mortal nosso semelhante – seja ele ritualista ou racionalista – para nos ajudar? Longe de nós um tal pensamento! 

Seria o mesmo que nos voltarmos ao nosso semelhante a fim de acrescentarmos algo à obra consumada de Cristo; a fim de fazê-la suficiente para a nossa própria consciência, ou suprir o necessário para cobrir alguma deficiência que encontrássemos na Pessoa de Cristo, visando fazer dele um objeto que fosse suficiente para nosso coração. Seria como nos entregarmos à tradição ou ao raciocínio humano para suprir alguma deficiência que encontrássemos na revelação divina. Todo louvor e graças sejam ao nosso Deus por não ser este o caso. Ele nos deu, em Seu amado Filho, tudo o que necessitamos para a consciência, para o coração, para o caminho aqui – para o tempo, com todos os seus cenários em constante mutação – para a eternidade, com suas eras incontáveis. Podemos dizer: Tu, Oh, Cristo, és tudo de que precisamos; Mais que tudo em Ti encontramos. Não há, e nem poderia existir, qualquer falta no Cristo de Deus. Sua expiação e Sua intercessão devem satisfazer todos os anseios da consciência mais profundamente exercitada. 


As glórias morais – a poderosa atração de Sua divina Pessoa – devem satisfazer as mais intensas aspirações e desejos do coração. E sua inigualável revelação – esse volume sem preço – contém entre suas capas tudo o que possamos necessitar, do princípio ao fim de nossa carreira cristã. Leitor cristão: acaso essas coisas não são assim? Acaso você não reconhece a verdade que há nelas, do mais íntimo do seu ser moral renovado? Se assim for, será que você está descansando, em tranquilo repouso, na obra de Cristo? Está se deleitando em Sua Pessoa? Está se sujeitando, em todas as coisas, à autoridade da Sua Palavra? Deus queira que assim possa ser com você, e com todos os que professam o Seu nome! Possa haver um testemunho cada vez mais pleno, mais claro e mais decidido para a total suficiência de Cristo, até aquele dia.